Eu devia ter uns sete ou oito anos, meados dos anos 1990. Por travessuras da memória – essa criança inquieta – não me recordo em absoluto dos pormenores. Lembro que fazia sol, os raios amarelados salpicavam a calçada acinzentada ao passar entre as folhas da árvore da casa ao lado. Estávamos na rua, minha avó materna parada em frente ao portão dos vizinhos – provavelmente proseando com alguma conhecida.
Os porquês daquela cena me escapam, mas talvez sequer importem diante da simbologia dos acontecimentos. Foi a primeira vez que ouvi o termo “puta”, ou melhor, uma de suas variantes mais incomuns, pouco usuais nos dias atuais. A palavra veio travestida, disfarçada pelos artifícios da linguagem, ao sair da boca da minha avó. “Biscate!”, bradou a matriarca cujos excessos religiosos deixá-la-iam mortificada, caso soubesse da existência de tal lembrança.
Em seguida, veio o incômodo – me peguei incessantemente tentando decifrar aquele código. Franzi o cenho com a mesma severidade com que o faço ainda hoje, a expressão se repetindo sem parar naquele tom tão familiar. O “bis-” mais aveludado, em contrate com o marcado “-ca-”, e o fechamento em um pontuado “-te”. A princípio, não ousei repetir a palavra em voz alta, soava como uma agressão.
A resolução do caso, à época, não foi simples. Depois de muito matutar, questionei minha avó. A resposta veio sem constrangimentos: “É quem trabalha fazendo bicos, biscateiro”, atalhou. E por que, cargas d’água, trabalhar dessa forma, sem emprego fixo, seria ofensivo? Não era trabalho?
Só anos mais tarde a lembrança ganhou novos contornos, quando apreendi seu significado mais trivial – não sei precisar quando. O fato é que as indelicadezas do cotidiano são, muitas vezes, inexoráveis: eventualmente, todas sentimos na pele o viés pejorativo de sermos livres.
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