Uma fábula sobre a imigração

O prêmio Nobel dado a Abdulrazak Gurnah nesta quinta (7) parece uma tardia homenagem a Euphrase Kezilahabi, o mais conhecido escritor da moderna Tanzânia, e à tradicional poesia daquela parte do mundo

A Tanzânia é conhecida pela literatura tradicional, notadamente a poética. Lá, há um tipo de poesia escrita em suahíli conhecida por poucos, por variados motivos: o distanciamento dos países ricos dessa língua falada em quase toda a costa da África, que olha para a Índia de longe, e ainda o desinteresse das editoras “ocidentais” por esse tipo de literatura.

O mais conhecido escritor da moderna Tanzânia é Euphrase Kezilahabi, poeta e romancista morto ano passado. É uma pena que o Nobel não o tenha alcançado. O prêmio dado a Abdulrazak Gurnah parece uma tardia homenagem a Kezilahabi e à tradicional poesia daquela parte do mundo, em particular a da famosa ilha de Zanzibar. (Eu tenho um poema traduzido de Kezilahabi em algum lugar da minha página no Face…)

Zanzibar é local de passagem. Muitos povos passaram por ali. Na Antiguidade, acredita-se que chineses chegaram até os portos de Zanzibar. Com certeza, indianos, árabes, outros povos africanos. Ou seja, a riqueza cultural desse lugar é única na África.

Os portugueses foram os primeiros europeus a chegar à Tanzânia e depois alemães e por fim os ingleses. Dominar aquele litoral africano era de suma importância para dominar um rico comércio marítimo oriental, durante séculos. Depois, você já pode imaginar o que ocorreu: a presença europeia na África foi catastrófica. E ali nasceu, em 1948, o laureado deste ano.

Afora isso, a Tanzânia, muito além do Serengeti e do maior monte do continente, tem uma variedade linguística pouco vista em outros lugares (mais de cem idiomas são falados no país) e os conflitos culturais gerados pela presença de diferentes povos também não foi algo fácil de controlar. O nome da principal cidade tanzaniana, inclusive, é árabe: Dar es Salaam. Conheci muitos tanzanianos em outros países africanos, alguns de origem indiana e outros de origem árabe do norte da África. São educadíssimos e multilíngues.

De todo modo, o preconceito em relação a esse país africano não difere do preconceito em relação a demais países do continente. A Tanzânia é um país próspero e talvez estivesse melhor não fosse a marca do chicote europeu lá deixado. Caso vá visitá-la, Zanzibar é obrigatório.

Bem; não é a primeira vez que o Prêmio Nobel chega atrasado a algum lugar. E não é a primeira vez que o Prêmio Nobel faz um arco torto para “homenagear” um grupo ou um idioma. Nos anos 1980, por exemplo, o comitê do Nobel usava raciocínios esdrúxulos para a premiação: no ano da escolha de Karol Wojtila para o trono de Pedro, por exemplo, escolheram um poeta polonês e assim a coisa caminhava. As casas de apostas ficavam olhando para essas situações para apontar qual escritor seria o mais indicado. Choveu enxofre no Tibete? Opa: deve ganhar um poeta tibetano. O novo presidente guatemalteco é indígena? Opa: o escritor premiado deve vir de lá…

Agora, a escolha se deu para um escritor que “trata da situação dos refugiados”, sendo ele mesmo um refugiado. Em termos políticos, isso é muito bom: temos um escritor negro, africano, que tratou da vida dos refugiados em várias de suas obras. Temos um escritor da África pobre, temos um escritor “marginal”. A parte ruim é a Europa desejar limpar sua barra premiando alguém com essas características. Melhor seria que as terríveis condições de vida dos africanos fossem amenizadas com uma melhor distribuição da riqueza mundial. E há outros escritores africanos, digamos, com uma obra literária mais consistente.

Em termos culturais, temos também mais um escritor de expressão inglesa a vencer o Nobel. Mais um. Há pelo menos 6.000 idiomas falados no mundo.

Caso você tenha interesse em ler Gurnah, sugiro começar por “Memory of Departure”. A linguagem do escritor é bem simples e acessível e sua escrita é muito cativante e emocionante. Não espere nada suntuoso: a premiação não se deu pela qualidade da escrita e sim pelo conteúdo dela.

Sobre o/a autor/a

1 comentário em “Uma fábula sobre a imigração”

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

O Plural se reserva o direito de não publicar comentários de baixo calão, que agridam a honra das pessoas ou que não respeitem níveis mínimos de civilidade. Os comentários são moderados por pessoas e não são publicados imediatamente.

Rolar para cima