Nossa (cada vez mais longa) vida em lives

Tendências na indústria da música e do entretenimento surgidas com a pandemia revelam capacidade de transformação e interatividade rumo a um futuro incerto

As indústrias do entretenimento e da música viveram, nos últimos meses, de lives e do esforço de artistas. Nunca se viu tanta coisa nas redes sociais, uma das ferramentas que têm à disposição na internet, ainda bem. Não fosse isso, boa parte da produção dos últimos sete meses, de inúmeros artistas, passaria em branco. Aumentaram as notificações e convites nas redes e no seu feed. Foram muitas, o tempo todo, até a exaustão, até quase nos cansarmos delas, também pela dificuldade de acompanhar tudo que gostaríamos de ver.

Por enquanto, ninguém sabe o que virá depois, além dos protocolos já anunciados. As indústrias de que tratamos aqui sofreram os mesmos efeitos de qualquer outro setor produtivo da economia. Segundo o portal norte-americano da Variety, que começou como uma revista em 1933 e continua a ser uma das referências nesse mercado, a indústria do entretenimento nunca enfrentou uma crise como essa. Houve cortes em toda a cadeia e em todas as áreas, para quem tinha um trabalho regular ou prestava serviços em uma complexa rede de fornecedores para que um trabalho desse certo e viesse a público.

O tamanho da indústria

Quando se fala em entretenimento, embora esse enfoque mais amplo não seja o caso aqui, falamos também de outros setores como cinema; mídia; televisão; teatro; publicidade; games; museus e galerias; viagens, turismo, hotelaria e esportes, entre outros, além da música. Tudo foi grandemente impactado pela pandemia. Os números divulgados esse ano pelo “Projeto Pulse/OLCB”, plataforma criada em 2015 para divulgar pesquisa e produção de conteúdo em festivais, colocou em seu site que o mercado do entretenimento no Brasil representa 13% do PIB brasileiro, quase R$ 25 bilhões anualmente com eventos, festivais, festas, feiras e congressos. Na mesma pesquisa, o site afirma que profissionais da indústria de entretenimento representam 6% do trabalho brasileiro e ocupam cerca de 25 milhões de empregos diretos e indiretos em TVs, agências, eventos, teatros, cinemas etc.

Festivais como o South By Southwest na cidade de Austin, Texas, foi cancelado, fato inédito em 34 anos de existência. Pelo menos cinco grandes lançamentos de filmes estavam programados para o SXSW, além da divulgação de discos, shows, eventos e projetos de inovação e tecnologia. O Festival Internacional de Criatividade de Cannes em sua 66.ª edição foi totalmente online pela primeira vez e sem as suas principais categorias de premiação. O festival Coachella, que nesse ano receberia as artistas brasileiras Anitta e Pabllo Vitar, também foi cancelado. O Ultra Music Festival e o Tomorrowland Winter, idem. O Lollapalooza Brasil também, transferido para abril do ano que vem, aqui e na América Latina. A Broadway, em Nova York, parou totalmente. Estima-se que a receita perdida possa chegar a 100 milhões de dólares. Tóquio contabiliza os prejuízos pelo cancelamento das Olimpíadas 2020. A poderosa Walt Disney Company, que depende de seus parques em Orlando, na Flórida, e do Disneyland Resort, na Califórnia, responsáveis por 34% do faturamento, terá que rever investimentos em produções no seu complexo de mídia que inclui vários canais a cabo e streaming como o Disney+ (Disney Plus). A própria Disney comunicou que pode demitir 28 mil pessoas com a indefinição sobre a reabertura dos parques nos Estados Unidos. Falar em “fato inédito” ou “pela primeira vez” chega a ser um pleonasmo nesses dias em que estamos pensando e fazendo coisas pela primeira vez, fato inédito.

Lives forever

Caetano Veloso e filhos. Crédito da foto: Marcos Hermes/divulgação.

A ideia de lives que ganhou força durante o isolamento tem de tudo. Lives mais e menos estruturadas para pequenos e grandes eventos, cenários e locações diversas como casas, apartamentos, varandas, salões; quintais e até estúdios. Lives em drive-ins e camarotes fechados, intervenções urbanas, show de drones, aplicativos criados especialmente para dar apoio e criar interações com o evento e kits personalizados enviados para a casa das pessoas entre o público interessado, incluindo influenciadores e influenciadoras para participar do evento. Claro, tudo encaminhado e viabilizado pelas redes sociais.

Um dos exemplos de lives mais bem-sucedidos durante a pandemia foi a de Caetano Veloso para comemorar seus 78 anos. Apesar da idade, peso e importância, foi a primeira live de Caetano em 60 anos de carreira. Gilberto Gil, companheiro de geração, também fez lives pela primeira vez, ambos apoiados por grandes marcas. Os números da Live, Lenda de Caetano, exibida em 07/08, no Globoplay, impressionam. Caetano gravou em casa com seus filhos Moreno, Tom e Zeca, produção de Paula Lavigne, sua esposa. Caetano continuou a pontificar e a aumentar a audiência e engajamento no Globoplay com o lançamento, exclusivo na plataforma, do documentário Narciso em Férias, um mês depois, e não por acaso no dia em que se comemorou a Independência do Brasil no mês passado. Narciso em Férias é um depoimento sobre a prisão de Caetano e Gil em 68 depois do AI-5. O filme foi exibido com sucesso na edição desse ano do Festival de Veneza. Narciso em Férias também acaba de ser lançado em livro pela Companhia das Letras. Não é novidade, mas pode atrair leitores e leitoras mais jovens não apenas para Caetano Veloso, mas, principalmente, para o buraco e a barbárie em que o Brasil se meteu. Narciso em Férias ocupa toda a parte 3 do livro Verdade Tropical, lançado em 1997 e relançado, revisto e atualizado, em 2017.

Gil, Gilberto, 78 anos

Gilberto Gil foi ainda mais ativo que Caetano nas lives. Fez três até agora. “Fé na Festa do Gil”, no seu canal no YouTube, apresentada por sua filha Bela Gil e gravada no sítio da família em Petrópolis, comemorando o São João. “As Canções de Gilberto Gil por Gil e Iza”, no Globoplay, em julho passado. E participou com o trio Gilsons, formado por seus filhos e netos (o nome é perfeito), da edição online do Coala Festival no mês passado. Gil ainda regravou “Parabolicamará”, lançada em 1991 em disco do mesmo nome, com a família para a série Amor e Sorte que acabou de terminar na Globo. Foi o tema de abertura e a música ficou ainda melhor, o que parecia impossível. Gil também foi homenageado na série com versões de suas músicas pelas novas gerações. Sandy e Lucas Lima regravaram “Estrela”. Liniker, “Barato Total”. Elza Soares (veterana como Gil e na ativa) e Renegado, “Divino Maravilhoso”. Rubel, “Palco”. O casal Céu e Pupilo, “Aqui e Agora”, uma das melhores faixas da série. Milton Nascimento e Amaro, “Drão”. Anavitória, “Retiros Espirituais”. Amor e Sorte trouxe histórias de relacionamentos durante o isolamento e foi uma homenagem a Fernanda Young.

“É o tempo-rei no seu reinado absoluto permanente, mas ao mesmo tempo abrindo diálogos variados com todos.”

Gilberto Gil.

No dia do seu aniversário de 78 anos, 26 de junho, Gil recebeu homenagem com a participação da esposa Flora Gil, filhos, netos, netas, nora; admiradores e admiradoras, amigos e amigas como Fernanda Montenegro, Fernanda Torres, Regina Casé e Carolina Dieckmann; os companheiros de geração Caetano, Chico Buarque, Jorge Ben Jor e Milton Nascimento; Alcione, Zeca Pagodinho e Djavan. Vários cantores-compositores que devem a Gil sua existência como artistas, intérpretes e inventores de canções também prestaram homenagem ao mestre: Ana Carolina; Claudia Leitte; Daniella Mercury; Emicida; Fióti; Frejat; Ivete Sangalo; Iza; Lenine; Lulu Santos; Margareth Menezes; Marisa Monte; Nando Reis; Rael; Roberta Sá; Rogério Flausino; Silva; Tereza Cristina. Gerações diferentes mais uma vez e todo mundo cantando “Andar com Fé”, faixa do disco Um Banda Um, de 1982, lançado há quase 40 anos. Quem mais, além de Gil, pode ter Stevie Wonder cantando “Birthday” em sua festa de aniversário?

Novas direções

O VMA 2020 – Video Music Awards, criado em 1984, quando a MTV era o que havia de mais relevante e inovador na televisão, na música e no entretenimento – mostrou um pouco do que será essa indústria daqui para a frente. No caso da MTV, um futuro e um horizonte caros, mas deslumbrantes e, principalmente, corretos: plateias virtuais; apresentações remotas; inclusão; ninguém se toca; máscaras fashion como acessórios de estilo; cenários com animações e imagens reais muitas vezes modificadas na pós-produção; vinhetas integradas aos cenários; pessoas participando parecendo reais que são só efeitos de computação; execuções perfeitas; ninguém se aproximando de ninguém.

Lady Gaga em três momentos no VMA 2020. Crédito da foto: Getty Images.

O VMA pareceu uma grande live de Lady Gaga, detentora de alguns dos principais prêmios da noite, com todos os seus excessos, ainda que estivesse integrada ao momento e às causas que o evento amplificou: igualdade; tolerância; crítica ao racismo estrutural na sociedade americana etc. Se você está conectada(o) a isso, ok. Talvez, tenhamos que ser menos ingênuos em nossos sonhos, agir mais e deixar um pouco de lado as redes que vem alimentando vaidades, divisões e necessidades de afirmação.

Mais importante premiação da televisão americana, a 72.ª edição do Emmy no mês passado foi na mesma linha do VMA: produção adequada com cuidado, precaução e afastamento, sem o brilho e a pompa do tradicional tapete vermelho, entrega de prêmios virtual e mais causas. Foi o ano com o maior número de negros indicados nas categorias de atuação. O Emmy reforçou discursos ativistas que já tinham aparecido no VMA e trouxe mais um: a necessidade de votar nas eleições presidenciais em novembro, em clara manifestação contra a reeleição de Donald Trump. O voto nos Estados Unidos não é obrigatório. A 77.ª edição do Festival de Cinema de Veneza até teve um tapete vermelho, discreto e distante para impedir aglomerações. Produtores e realizadores independentes apostam no formato de festivais de cinema on-line como forma de evitar vícios antigos (veja há quanto tempo esses festivais acontecem), dar mais acesso ao público e visibilidade aos artistas, com mais ousadia e independência aos curadores desse tipo de evento. É mais uma aposta que surge em um ano ruim, péssimo, mas não totalmente perdido.

Na primeira parte dessa pesquisa, publicada aqui mesmo, você viu que os serviços de streaming de vídeo e música cresceram com a pandemia. A indústria de games também, embora não faça parte dessa pesquisa. Recebi cerca de 100 lançamentos de discos todos os meses desde o início do ano. Parte da indústria da música não parou, pelo contrário. E acredite: você não precisa de Lady Gaga.

De certa forma, esse texto dialoga e tem relação com a matéria publicada aqui mesmo no Plural, sobre os impactos da pandemia na indústria da música e do entretenimento.

Errei

Por favor, me desculpem. Na matéria anterior, primeira parte dessa pesquisa, disse que a Folha de S.Paulo e o Datafolha substituíram o TOP OF MIND pela pesquisa “A Nova Realidade de Hábitos e Consumo.” A Folha e o Datafolha irão publicar a 30.ª edição do TOP OF MIND esse mês, outubro.

LINK PROJETO PULSE

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