Algo soa falso em “Uma tristeza infinita”, de Antônio Xerxenesky

Depois de uma belíssima introdução, o livro se perde. Talvez as discussões sejam muito profundas e ainda falte fôlego ao autor

Este texto trata do romance “Uma tristeza infinita”, de Antônio Xerxenesky, publicado pela Companhia das Letras.

Já comentei várias vezes que uma característica marcante da literatura atual é a facilitação. Como pesquisador da área de Letras e estudioso do discurso, já comentei em outros lugares que há “discursos facilitadores”. De que se trata? Eu tomo um assunto extremamente complexo, como a misoginia, e transformo isso numa rede de estruturas facilitadoras. Como discutir a misoginia exige erudição, tempo, dinheiro, estudo com afinco, é mais fácil repetir as estruturas mais simples sobre a misoginia. Algo similar se dá com temas complexos e amplos como “violência”, “mercado”, “liberalismo”, e até mesmo “discurso”.

Na época em que vivemos, alguns discursos – ou redes de discursos – se mostram mais presentes que outras, e isso é benéfico. Discutir a misoginia, usar o vocabulário da sociologia, da psicanálise, da linguística, da história, é extremamente importante. Divulgar, ampliar, fazer disseminar uma discussão é de suma importância para que determinado tabu social se torne mais acessível como objeto de observação, mais presente na linguagem cotidiana, mais palpável e até mesmo plausível. Precisamos do vocabulário e precisamos discutir assuntos complexos. Que façam parte do nosso dia a dia. Muitas conquistas, por exemplo, da comunidade LGBT vieram com certa “normalização” das discussões. O que era tabu, feio, horripilante, desagradável, tornou-se natural (até certo ponto) e acessível à maioria dos falantes. Bom se conseguíssemos falar da sexualidade, da fé… e do mercado, como esses assuntos merecem.

Corremos riscos, todavia. Não é de hoje que sabemos que muitas pautas de lutas de grupos minoritários/marginalizados/subalternizados são tomadas pelo grande mercado como mais um produto. Assim, tomam-se de assalto o corpo negro, o corpo gordo, a “performance” de gênero, entre tantas outras pautas, para que elas vendam produtos, de cosméticos a roupas, de contas de banco a cirurgias “reparadoras”, que vão no caminho diametralmente oposto aos dos grupos que lutam por igualdade.

Algo parecido ocorre com a literatura – ou a literatura, como uma “antena da raça” funcione exatamente como isso: uma antena que capta sinais e os retransmite… e que bom que assim o faça – e este seria o raciocínio mais rápido e igualmente “facilitador”. O risco contrário também é presente e comum: a literatura servir ao mercado e não aos grupos que lutam por direitos e por seu lugar ao sol. Essa pequena e provisória introdução eu a escrevi para falar de um certo tipo de literatura que vem a ser um problema antes de uma solução. Grande parte da produção romanesca atual é feita com discursos facilitadores. Não há exatamente um projeto de escrita literária e sim uma escrita que trate na negritude/branquitude, da sexualidade, da fome, da opressão, etc.  Escrever uma obra literária não é uma atitude cotidiana, como escrever uma carta ou mesmo uma matéria de jornal.

A lista é bem grande e está nas premiações do Jabuti e do Oceanos, nas publicações das grandes editoras e na divulgação de uma centena de “críticos” literários. Então, discutem-se pautas – importantes, friso, ainda que mais uma vez – mas o conteúdo literário fica em segundo plano (linguagem, estrutura narrativa, riqueza cultural, etc.). Há, também, um certo receio mesmo nos cursos de Letras de se fazer críticas “com juízo de valor” sobre as obras publicadas – e isso só tem sido negativo.

Antônio Xerxenesky

Para este texto não parecer muito pessoal, conversei com três colegas de escrita sobre literatura. Todos me disseram o mesmo: que o autor tem muito a dizer, mas que talvez falte experiência com textos mais elaborados. Veja-se o comentário de Daniel Galera sobre o romance: “’Uma tristeza infinita’ dá ao leitor de Antônio Xerxenesky a impressão de que ele vinha se preparando desde sempre para escrever este romance. Depois de incursões por diversos gêneros narrativos, ele nos brinda com sua obra mais densa e angustiante, um romance de ideias gelado e cristalino como os alpes suíços que o emolduram (…)”. Esse comentário ecoou na voz dos meus entrevistados: “alguém que fez incursões por outros gêneros da narração”, incluindo pontes com games, filmes, policial noir, etc. O comentário de Galera aponta para as obras anteriores, sem uma suposta importância dada a esta última… e ainda traz lugares comuns de crítica como “gelado como os Alpes suíços” porque a história se passa ali…

“Uma tristeza infinita”

A história se passa nos Alpes Suíços, fato, logo após o fim da Segunda Grande Guerra, com um casal como protagonista. A montanha como elemento, como cenário, já serviu para tantas outras obras literárias e fílmicas. Difícil dizer, mas talvez “A montanha mágica” seja uma das obras-primas, em termos de romance, sobre uma história que se passa numa montanha – e como a montanha tem um aspecto simbólico importante na fatura romanesca de Thomas Mann. O casal vive problemas pessoais e outros mais.

Li algumas críticas que apontavam as falhas do livro devido ao distanciamento do autor com a realidade por ele descrita. Nada mais falso. Noemi Jaffe, por exemplo, trata da esposa de Mandelstam, assim como autores brasileiros ou não se voltam ao passado, a lugares imaginários, ou ainda a investigações sobre a loucura. A questão, então, não é o espaço físico e temporal em que o enredo se dá.

Algo soa falso, após uma belíssima introdução com a descrição de um passeio na floresta. O que parece dar o tom do livro se perde depois, logo em seguida. Talvez as discussões sejam muito profundas e ainda falte fôlego no tratamento a personagens e a discussões mais filosóficas. O restante do livro parece escrito às pressas.

Importância literária

Agora volto ao que disse no começo deste texto: algumas obras recém-publicadas no Brasil têm uma recepção calorosa mais pelo que tentam discutir do que pela importância literária que têm. Talvez algo similar ocorra com o universo das artes plásticas, o que, por vezes, dá a impressão de um vale-tudo, que precisa ser defendido por curadores, donos de galerias e críticos de arte. Se se lê o texto do curador, veem-se maravilhas, que a exposição não mostra. Ou a exposição é linda porque cenográfica, mas de conteúdo chinfrim. No mundo das letras, tenho visto mais descrições dos livros do que exatamente uma crítica literária contundente. E mais elogios à escrita, à linguagem, ao enredo, do que uma boa literatura de fato.

Algo que poderíamos voltar a discutir seria o tipo de literatura que temos divulgado. Nos aos 1970-1980, por exemplo, muito se discutia a relevância de autores tão díspares quanto Morris West, Mario Puzo, Judith Krantz, os Goulon. Todos eles, cada um a seu modo, faziam uma literatura de entretenimento. Algo contra? Nada contra. Essa discussão ficou datada e non grata nos principais meios literários e parece ter morrido com Paulo Coelho. A pergunta que me fiz ao longo da semana – e após entrevistar outros críticos – era: será que não temos publicado uma versão da literatura de entretenimento? Krantz discutia o padrão de beleza feminino em pavorosas obras como “Luxúria”, em que pervertia todo o discurso feminista de então. Morris West corria pela lateral da alta literatura discutindo ética, como fosse os Karnais de hoje. Os Goulon fizeram uma impressionante pesquisa histórica de modo a “atualizar” o romance do tipo grego, com uma heroína que não envelhecia e que sofria situações como um estupro coletivo, num misto de erotismo equivocado e… outras espécies de equívoco.

Romances de entretenimento

Talvez estejamos vivendo uma época de grande número de lançamentos, numa releitura de romances de entretenimento (fica até difícil acompanhar os lançamentos). São qualquer outra coisa, menos alta literatura.

Obviamente, como já disse em outras situações (escritos, aulas e palestras), o mercado editorial é uma das possibilidades de se entender a produção romanesca. Quem já foi jurado de concurso literários (de grandes concursos que não privilegiam somente as grandes editoras) teve contato com escritores incríveis, os quais vão acabar enterrados numa vala comum pelo mercado, que tem tido predileção por obras facilitadoras e frágeis, mal-acabadas e sem muito a acrescentar. O pior é que a maioria delas é recebida como “genial”, etc., seguindo o discurso dos donos das grandes editoras, como é o caso da Companhia das Letras. É uma pena.

Nos países de língua espanhola, por exemplo, também há de tudo, mas o espaço para obras potentes e bem-acabadas é maior. Autoras e autores dessa língua de expressão talvez não vivam das vendas de seus livros, mas os leitores podem ter acesso a obras incríveis. Nossos vizinhos argentinos e chilenos, por exemplo, nos dão um banho, em termos de traduções agilizadas de grandes autores e em termos de produção própria. Logo, logo, escreverei sobre alguns deles.

Talvez o autor de “Uma tristeza infinita” tenha muito a dizer ainda. Ele é jovem e tem doutorado na área, o que deve aproximá-lo de discursos sobre (diversas) literaturas. Sua guinada atual, em relação aos demais livros publicados, deve ser vista com bons olhos.

Livro

“Um tristeza infinita”, de Antônio Xerxenesky. Companhia das Letras, 256 páginas, R$ 64,90. Romance.

Sobre o/a autor/a

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