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Três narrativas para Gonçalo Tavares, juntas, serão sempre um tríptico

Oxímoro falso, palíndromo falso, oroboro talvez, nada é impossível na escrita de Gonçalo Tavares, este que é um dos mais inventivos escritores vivos em língua portuguesa, já o disse várias vezes e repito. Não se trata de um escritor fácil, todavia.

Já apontei aqui e ali a relação dele com as artes contemporâneas e as minhas inquietações a este respeito: até que ponto a linguagem e as estruturas narrativas pouco convencionais de Gonçalo Tavares teriam a ver com a arte contemporânea e em particular com a arte conceitual. Até a distribuição gráfica dos textos deve ser levada em consideração na “leitura” das obras.

Certo fascínio por cidades e lugares (O Bairro, O Reino, etc.), certo fascínio por lugares imaginários, escritas simbólicas, metafóricas, a ficção dentro da ficção como um mise-en abyme; tudo isso o leitor vai enfrentar. Já escrevi como diferentes escritores modernos, de Milorad Pavić a Haruki Murakami fazem isso, não como fuga das coisas do mundo. Em verdade, lugares imaginários como reais e lugares reais como imaginários são sempre existentes na literatura. Nenhuma novidade aí. A novidade estaria no modo como esses escritores, em diferentes lugares e línguas, fazem isso.

Neste livro, temos o encontro de três contos, agrupados, como o autor diz no posfácio, não aleatoriamente. Não é apenas a letra “b” que une as cidades desses contos, mas certa atmosfera do leste europeu, ou como um europeu do oeste a lê.

No primeiro – e brilhante – conto, dois homens tentam levar uma estátua de Lênin para fora do país, enquanto um terceiro tenta levar o corpo da mãe. Fica claro que se trata de dois corpos, dois pesos mortos, duas histórias mortas, ou ainda, e pior, a História morta. Em algum momento da narrativa, alguém diz: “ninguém dá a mínima para a estátua de Lênin”, embora o ato de levar a estátua para fora do país seja ilícito, ou seja, há algum resquício de importância para, pelo menos, o objeto ali. Depois da queda da Cortina de Ferro e do Muro de Berlim, depois da derrubada das estátuas de Lênin, talvez algo tenha ficado, mesmo que seja o interesse obscuro de alguém que encomenda uma estátua de Lênin.

É muito interessante perceber isso, esses resquícios, em várias cidades do mundo, como em cidades chinesas em que estátuas de Mao, de todos os tamanhos, são vendidas na rua como souvenir. Viraram produto. Ao mesmo tempo, em alguns templos – mesmo os caseiros ou em particular nesses – há divindades e… estátuas de Mao.

A morte da História – ou das histórias – aparece em outros momentos. Uma personagem, frente a frente com uma das maiores coleções de arte médio-oriental (também roubada) do planeta se pergunta pela importância da civilização egípcia. Naquele momento, importam apenas os seus sentidos corpóreos. Alguém comenta com ela: “A História, minha senhora? Trata-se de propaganda. Uma forma de publicidade (…)”. São os riscos que corremos: eles, os portugueses; os outros, os europeus do Leste; nós, os brasileiros. O risco de a História se transformar num produto de consumo é sempre preocupante.

No segundo conto, não menos assombroso, um vampiro não se alimenta de sangue. Ele se alimenta de fotografias. As fotografias comidas levam para dentro dele a imagem das coisas. Se ele come pontes ou montanhas, não fere ninguém, mas tudo se complica quando ele furta a fotografia de uma criança. Numa das cenas escrita com economia de palavras mas muito efeito, o vampiro como uma foto dos portões de Brandenburgo, que “remetem a algo tão fascinante e calmo” como “o nome da terceira paz mundial”.

No terceiro conto, uma mulher percorre as ruas de Berlim como num roteiro de filme conceitual ou como num sonho (aqui e ali talvez você se lembre das narrativas de Cārtārescu), mas em verdade a narrativa derivou de um rascunho para o teatro. Como lembra o próprio Gonçalo, as três narrativas têm, sim, a ver com o tempo, ao menos o cronológico. As duas primeiras, segundo ele, centram-se em acontecimentos “do exterior” e a terceira em acontecimentos “do interior” da personagem.

Sempre é incrível perceber como Tavares consegue com tão pouca economia de palavras dizer tanta coisa. Há de se ler várias vezes os mesmos trechos. (Eu mesmo deixei o livro descansando e voltei a ele dias depois: era como lesse outro livro – e isso me fez relê-lo.)

Bom: para quem não passeou muito pela obra dele (ele é um escritor copioso e tem muita coisa publicada), este livro tem a ver com um projeto seu, que seria o “Projeto das cidades”. Para ele, este projeto tem a ver com cidades, claro, mas desde que observadas como algo móvel, como algo habitado por seres que as fazem caminhar. Segundo ele mesmo, é um projeto entre “O Bairro” e “O Reino”, citados acima. Já comentei aqui – e valeria lembrar – que a obra de Gonçalo é como um grande livro sozinho, que um dia alguém vai juntar num imenso volume só.

Dos lançamentos de 2021 no Brasil, este sem dúvida um dos melhores. A edição é da editora carioca Oficina Raquel, super bem cuidada. Excelente presente de Natal para amantes de Gonçalo ou para quem precisa adentrar seus bairros e cidades.

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