A arte é um jogo para se perder

Claro que a arte sempre foi relacional em diferentes graus. Uma das particularidades da imagem é seu poder de acomodar narrativas, de gerar vínculos simbólicos com o fruidor

Semana passada comecei uma nova disciplina, como ouvinte, na USP: “Estética e Arte Contemporânea”, na esperança de encontrar uma orientação para (quiçá) um segundo doutorado, desta vez na filosofia. Parece pomposo, não? E também cansativo. Pois é.

“Já não chega? Não está bom o suficiente? Você já não é doutora? Onde isso vai parar, meu Deus?”

Mas, antes de pensar onde chegar, lembro de onde eu vim (alerta de spoiler: este será um texto sobre partidas).

Eu fui uma criança tímida. Daquelas ensimesmadas que brincam sozinhas no quarto por horas, em silêncio. Do outro canto da casa, vez ou outra, escutava minha mãe gritar: “Nicole!” Depois de uma longa pausa sem resposta, seguia-se o segundo grito: “o que você está fazendo?” E então eu respondia, invariavelmente: “nada!”

Mas além de “nadar” (como nesse miniconto da Lygia Fagundes Telles, chamado “Confissão”: – Fui me confessar ao mar / – O que ele disse? / – Nada), eu também desenhava e construía cenários para histórias que nunca aconteciam. Aqueles pequenos mundos eram um refúgio e também uma forma de existir sem precisar erguer os olhos ou a voz em direção a alguém de carne e osso. Porque eu precisava construir outros escudos que não o meu próprio corpo, e engenhar formas de estar, sem ter que estar lá.

Yoko Ono, Cut Piece, 1964.

E então, eu resolvi ser artista. Fim.

Não.

Antes, fui estudar arquitetura. O motivo: ouvi alguém dizer, numa palestra, que a arquitetura “servia” para projetar espaços onde as pessoas poderiam construir suas memórias. Achei bonito (e também útil). Mas depois de me decepcionar com o mercado ordinário, um tanto perverso e pouco poético da construção civil, eu resolvi ser artista, e agora sim: fim.

Não.

Porque eis que um tal Marcel Duchamp, exímio enxadrista e talvez o artista mais influente do século XX, havia dito antes algo mais ou menos assim:

“A arte é um jogo entre todos os homens de todas as épocas.”

E eu não sei jogar.

Já contei que nas aulas de educação física eu mentia que estava com dor de barriga só para não passar pela humilhação de ser a última a ser chamada para o time? Imagina ser convocada para um jogo entre TODOS OS HOMENS DE TODAS AS ÉPOCAS?

Acompanhem o desenrolar da minha angústia: primeiro, a principal finalidade de qualquer jogo é a diversão. Então a arte não é séria? Algo profundo, visceral, e ao mesmo tempo totalmente livre e poético? A arte não emana das profundezas do ser, do espírito, da mística?

Segundo, para que qualquer jogo aconteça, é preciso que seus integrantes se submetam às regras que estabelecem quem vence e quem perde. Qual o sentido dessa ideia de jogo, na arte? Há perdedores e vencedores? Há regras? Como assim, UM JOGO, Senhor Duchamp?

Bom, já temos a resposta para por que é preciso estudar mais: para entender as regras, para entrar no jogo.

(Por muito tempo eu pensei que podia ficar fora dele, fingindo dor de barriga, sentada no banquinho olhando os outros se divertirem, mas agora, sim, com licença, posso jogar também?).

Marina Abramovic, The Artist Is Present, 2012.

Só que, veja, são milhares de anos de história da arte. E as regras continuam mudando. Assim como a arte continua mudando, e o sentido da sua existência, e as instituições, e todos os homens de todas as épocas (e também as mulheres, que não foram incluídas na primeira frase). Então, ler sobre o assunto não pode nunca ser suficiente, porque mesmo que o treinador diga que o jogo só termina quando o juiz apita, esse é um daqueles campeonatos em que, lá no finalzinho, depois da prorrogação e bem na hora de bater o pênalti decisivo, rola um abalo sísmico que abre um buraco no gramado e devolve a gente para o início da partida.

Mas voltemos à filosofia.

Eu obviamente tenho consciência de que jamais, mesmo que eu leia todos os livros da biblioteca do Umberto Eco, alcançarei a infinidade de sentidos que a arte jamais produziu. Nem preciso de tanto. O que eu tenho buscado compreender são algumas repetições nas estratégias. Quem está no jogo? Que perguntas nos fazem? Como nos convocam à partida?

Rirkrit Tiravanija, Tomorrow Is the Question, 2019.

Perceba que, na palavra “partida” está implicada, de certa maneira, uma despedida de quem éramos antes de atravessar aquele espaço-tempo do tabuleiro. Partir também é quebrar, partilhar o sensível. Na comunhão, re-partimos.

Então essa poderia ser a regra primordial: a arte deve produzir partidas, descontinuidades naqueles que a atravessam. Que toda arte nos desloque de ser quem éramos no ponto A, ainda que não se saiba ao certo quem seremos no ponto B.

Mas, para isso, é necessário construir um dispositivo para ser atravessado. Catalogar todos os dispositivos utilizados na arte contemporânea, claro, também seria uma tarefa interminável. Mas hoje, para a mesa que compõe o exercício desse breve texto, eu queria convidá-los à leitura de apenas um livro, que com certeza não é o mais incrível e mais importante de todos os tempos, mas que me fez perceber pela primeira vez as nuances dessa ideia de jogo na arte.

Felix Gonzalez-Torres, Sem título (Retrato de Ross em L.A.), 1991.

Esse livro se chama Estética Relacional, escrito pelo Nicolas Bourriaud, publicado, em francês, em 1998, e em português, em 2009, quando eu o li, no mestrado (não porque eu quis, mas por insistência do meu orientador, José Luiz Kinceler, um apaixonado pela vida e pelas relações humanas, que me ensinou a fazer perguntas e a quem dediquei a minha tese e a continuidade dos meus estudos, depois da sua morte prematura, em 2015).

Bourriaud, é preciso dizer, é um crítico de arte, não um teórico. Suas observações partem da arena, do jogo, do meio do campo. Já nas primeiras páginas do livro ele afirma: “É preciso aceitar que certas questões não são mais pertinentes.” E pergunta: “Quais são os verdadeiros interesses da arte contemporânea e suas relações com a sociedade, a história e a cultura?”

Rirkrit Tiravanija, Free, 2011, MoMa.

Com base na observação das práticas de alguns artistas, Bourriaud percebeu que, em todos, a ideia de arte como um campo de trocas, como uma atividade voltada a “produzir relações com o mundo”, era comum. Sob esse prisma, a Estética Relacional funda uma teoria que nos permite “julgar as obras de arte em função das relações inter-humanas que elas figuram, produzem ou criam”. Ou seja, entender a arte contemporânea a partir do jogo a que ela nos convoca.

(Mãos erguidas em direção ao céu, em gesto incontido de gratidão, seguido de autoabraço segurando o pequeno livro contra o peito: obrigada, Nicolas Bourriaud.)

Claro que a arte sempre foi relacional em diferentes graus. Uma das particularidades da imagem é seu poder de acomodar narrativas, de gerar vínculos simbólicos com o fruidor. Mas já não se pode tomar essa experiência de um espaço fixo (um museu, um quadro na parede, um livro, um filme) a ser apenas percorrido. A estética que Bourriaud nos propõe observar contém uma duração a ser construída em tempo real por aqueles que se apresentam ao jogo. Aqui, as próprias posições e definições de artista e espectador são colocadas em disputa. Vemos emergir um tipo específico de arte que, para existir, nos conduz à colisão com outros corpos, verdades e subjetividades.

Lygia Clark, Rede de Elásticos (1974).

Aliás, sobre colisões, na tradição filosófica materialista, Epicuro descrevia que os átomos tendiam a cair paralelamente no vazio, numa trajetória infinita, a menos que, por algum motivo, um deles se desviasse do seu curso, o que provocaria uma colisão com o átomo vizinho e, de colisão em colisão, um engavetamento e o nascimento de um novo mundo. Assim nascem todas as formas: do desvio e do encontro aleatório entre dois elementos que até então corriam paralelos ― do barro apertado entre as mãos, da caneta pressionada contra o papel, do meu corpo abraçando o seu. Para criar um mundo, qualquer mundo, no entanto, esse encontro tem que se tornar duradouro, os elementos têm que “dar liga”, formar “um bloco de afetos e perceptos”, como definiram Deleuze e Guattari.

Gabriel Orozco, Mis Manos Son Mi Corazón, 1991.

Como o lugar geométrico dessa negociação, a forma da obra relacional seria então a estrutura responsável por desviar esses corpos de sua trajetória paralela e colocá-los em risco de colisão. Trata-se, pois, justamente de criar aquele espaço que a arquitetura prometera erguer para que os outros ali possam brincar, jogar, habitar e constituir suas memórias (e viva aquela faculdade, que afinal “serviu” para alguma coisa, ainda que, como já conversamos aqui, a arte seja inútil).

E com essa descoberta, eu me tornei artista.

Sim.

Mas também uma pesquisadora, curadora e crítica apaixonada por todas as obras que se abrem para o jogo. Como as das figuras que você já percorreu com os olhos ao longo desse texto (e em cujos links convido você a clicar para saber um pouco mais sobre cada uma), ou essa instalação da Dominique Gonzalez-Foerster, intitulada Desert Park, construída em 2010 para o Inhotim:

Dominique Gonzalez-Foerster, Desert Park, 2010.

Nela, a artista propõe um ambiente externo composto por uma pequena coleção de pontos de ônibus pré-fabricados em concreto sobre um grande campo de areia branca desértica, em contraste com a floresta tropical que o circunda. As estruturas fazem uma alusão em miniatura à arquitetura modernista de Brasília. As peças de mobiliário urbano ​​parecem deslocadas, apontando para o que a artista chama de elementos “psico-geográficos” de um lugar.

Mas não se trata, como eu já disse, de percorrermos a obra. Esse parque deserto pode ser habitado e alterado quando nós entramos no jogo. Quem nunca (salvo alguns curitibanos-raiz) sentou para conversar com um perfeito estranho no ponto enquanto esperava o ônibus chegar?

Dominique Gonzalez-Foerster, Desert Park, 2010.

Note também que a disposição enviesada dos elementos e as sombras que eles projetam nos convidam a sentar e contemplar as diferentes paisagens que cada ponto (de ônibus ou de vista) inaugura. Há também um outro convite, a uma paisagem interior: em cada banco, livros são deixados para serem lidos, folheados, visitados, trocados (alguém ousaria roubá-los?).

Dominique Gonzalez-Foerster, Desert Park, 2010.

Se a regra primordial de todos esses jogos é que nos convoquem a uma partida, não há, no entanto, qualquer promessa de chegada. E de espera em espera por um ônibus que nunca virá, jogamos e perdemos juntos. E são tantas as perdas possíveis: de tempo, de verdades absolutas e também de nós mesmos, ao nos perdemos do que acreditávamos ser até então, ao colidirmos com outros corpos, átomos, paisagens.

A arte é, definitivamente, um jogo para se perder.

Dominique Gonzalez-Foerster, Desert Park, 2010.

Deixo aqui um singelo convite para que você também se perca. Abaixo, seguem 3 instruções elaboradas por diferentes artistas para uma proposta do Curador Hans Ulrich Olbricht, intitulada DO IT. Você pode ver muitas outras aqui, ou ainda criar as suas próprias. Caso escolha produzir alguma delas, se quiser, você pode me contar postando uma foto no seu Instagram e marcando @ocorpodaimagem.

Boa partida.

EXERCÍCIO 1:

(Sol Lewitt)

Desenhe uma linha preta e não reta aproximadamente no centro de uma parede de um lado para o outro. Convide outras pessoas para desenhar linhas, alternando entre vermelho, amarelo e azul, acima e abaixo da linha preta, até que toda a parede esteja preenchida.

EXERCÍCIO 2:

(Rirkrit Tiravanija)

Ingredientes:

½ xícara de cebola picada

8 dentes de alho

10 pimentões jalapeño secos

100 gramas de gengibre fresco picado

2 colheres de sopa de salsa chinesa picada

½ colher de chá de cominho

1 colher de chá de pasta de camarão (opcional)

1 colher de chá de sal

3 colheres de sopa de óleo

Misture todos os ingredientes, exceto o óleo, no liquidificador e bata até ficar homogêneo. Aqueça uma pequena frigideira em fogo médio-alto e acrescente o azeite. Frite a pasta lentamente por 5 minutos até que fique perfumada. Remova e armazene em frascos para distribuição. Repita conforme necessário.

EXERCÍCIO 3:

(Philippe Parreno)

Que tal um jogo de 20 perguntas? Você pensa em um objeto e os outros jogadores fazem uma série de no máximo vinte perguntas. Você só pode responder dizendo sim ou não. O objetivo do jogo é adivinhar o que alguém estava pensando com a ajuda de no máximo vinte dicas. Agora, vamos imaginar uma versão ligeiramente diferente desse mesmo jogo. Você não pensa em nada e os outros jogadores lhe fazem perguntas. No início, você responde às perguntas de forma arbitrária. (Você deve ter cuidado para não se contradizer ao responder sim ou não). Por exemplo, você não pode dizer que é grande no início e depois dizer que é pequeno. Você tem que seguir a lógica de suas respostas. Depois de responder a vinte perguntas, você verá em sua cabeça um objeto que você nunca imaginou antes. Algo em que você nunca pensou.


Para ir além

Estética Relacional, Nicolas Bourriaud. Editora Martins Fontes. 152 páginas.

A arte é inútil?
O produto é você!
Precisamos falar mais sobre o egoísmo

Sobre o/a autor/a

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