A arte é inútil?

Pela lógica de Kant, se tratamos a arte como um divertimento, uma distração para a nossa angústia de existir, não estamos experienciando a arte, em si, mas vendo nela uma utilidade que está fora dela

Anteontem eu li uma postagem no Instagram que me colocava a seguinte pergunta: “Para você, qual é a função da arte?”

Por curiosidade, joguei a pergunta nos meus stories, imaginando a infinidade de atualizações possíveis para a semente que lançara. Para minha surpresa, uma mesma resposta volta e meia pipocava, travestida em diferentes versões: “A arte não tem que ter função! Quem tem função é _________________ (relógio, espremedor de fruta, parafusadeira…)”

Claro que a função da arte não pode ser apertar parafusos, nem mesmo dentro da sua cabeça. Mas dá pra sustentar esse pensamento usando um pouco mais que fita dupla face. Kant, por exemplo, concebeu a ideia de que a beleza verdadeira era “uma finalidade sem fim”. Por exemplo, se eu digo que uma máquina é bela, tenho em vista o seu fim, ou seja: a sua beleza está naquilo que ela produz, fora dela, e não na máquina em si. Se eu me relaciono com alguém pela satisfação dos meus desejos (materiais, carnais, emocionais, financeiros), se eu digo “que bela casa” pensando em quanto ela vale no mercado, então eu digo que vejo “utilidade” nessas coisas, ou que vejo essas pessoas como coisas úteis: máquinas de me satisfazer. Mas não posso dizer que as amo ou percebo nelas beleza pelo que elas são em si, desinteressadamente. Porque, ao menos para Kant, nenhum prazer estético pode ser ligado ao seu fim. Então, se a arte nos fosse útil, não poderíamos apreciá-la em si. Mediríamos seu valor pelo seu desempenho, fora da obra, numa relação de causa e efeito. Faz sentido?

Robert Mapplethorpe, autorretrato (1980).

Guardem esse pensamento mais um pouco.

Vamos pensar na utilidade da arte para nós, pessoas. Mas, antes, vamos definir melhor esse “nós, pessoas”. Para Shopenhauer, “nós” estamos presos entre o enfado e o divertimento. No enfado, o tédio é o fruto das vidas miseráveis e vazias que levamos na modernidade, empenhados que estamos em ser, veja só: úteis. Assim, hoje medimos o valor humano pelo seu saldo na conta bancária, pela sua “empregabilidade” (lembrando que ser empregado nada mais é do que servir de ferramenta para um sistema), pelo seu “sucesso nas vendas”, ou pelo seu “número de seguidores”. Damos medalhas para o “funcionário do mês” e medimos, com precisão científica, o valor de um pesquisador pelos metros lineares de citações e publicações no currículo lattes. O nosso valor, assim, não é intrínseco, mas exterior a nós. Se nossas vidas se tornam vazias é porque o valor do que produzimos é depositado fora delas.

E o que “nós” fazemos para preencher o vazio do tédio enfadonho? Buscamos o divertimento, nas suas mais variadas formas. Gastamos o que resta da nossa energia no consumo compulsivo ou na busca desenfreada por encontrar mais pessoas, emendando uma balada na outra ou no deslizar ansioso das telas nas redes sociais. E quando nada disso é possível, porque não podemos sair, não temos mais dinheiro, ou porque já “consumimos” todas as pessoas, serviços e produtos disponíveis, nos anestesiamos: com drogas, com álcool, com os 357 canais da TV, com videogames, com pornografia, com comida, ou jogando candy crush. Tudo para não ter que olhar de frente para o vazio, para nos distrair do pânico de ficar a sós com um perfeito estranho: nós mesmos. Soa familiar?

White Gauze (1984) – Fotografia de Robert Mapplethorpe.

Pois bem, definido o nós, vamos à arte. Qual a sua função? Pela lógica de Kant, se tratamos a arte como um divertimento, uma distração para a nossa angústia de existir, não estamos experienciando a arte, em si, mas vendo nela uma utilidade que está fora dela. E aí aquele cinema que a gente chama de arte, vira só “um filme pra relaxar”, aquela música “serve” pra ouvir lavando louça, e aquela série nova que é praticamente idêntica à ultima que você maratonou te ajuda a “dormir mais rápido”. Mas não me diga que você aprecia aquela obra. Porque você não estava lá para apreciar, já que colocou o valor na sua utilidade.

Mas isso é mal? Você não pode gostar da diversão, dos minutos gastos fora de si, do esquecimento da sua dor? Pode, mas veja, não importa. Aquilo continua existindo em si e você apreciando o fora, a utilidade. A questão é: como apreciar o dentro? Ou, ainda: existe algum tipo de arte que possa ser vivida e sentida em si mesma? E, nesse caso, insisto na pergunta: qual a sua função?

Vamos pensar então exatamente no agora. Estamos confinados, isolados do convívio social, há mais de um ano. Perdemos a conta de quantas vidas, amadas ou anônimas, se foram. Sentimos medo uns dos outros, medo de morrer, medo de perder alguém, medo. O ar escapa. Qual o papel da arte nesse período?

Robert Mapplethorpe, autorretrato (1988).

Desde o começo da pandemia eu tenho me perguntado exatamente isso: qual a função da arte em meio a uma pandemia? Como a arte se comportou e respondeu às outras grandes epidemias? Em maio de 2020, eu dei um workshop sobre o tema, e fui entrevistada aqui mesmo, pelo Irinêo. Na época, uma das perguntas que ele me fez foi justamente sobre o divertimento:

“Hoje, isoladas em casa, as pessoas precisam de arte para rebater a ansiedade (umas) e o tédio (outras). Então buscam a música, o cinema, as séries, a literatura… mas parecem fazer isso como uma forma de escapismo, como se ninguém mais aguentasse ouvir falar da pandemia, embora ela não vá passar tão cedo. Na abordagem proposta por você, no minicurso, parece que as artes plásticas funcionam de maneira um pouco diferente e, em vez de distrair das dificuldades, fazem pensar e, de certa forma, sentir os problemas que retratam. Essa afirmação faz sentido para você?”

Na época, eu respondi:

Sim, faz todo sentido. Apesar de a arte moderna e contemporânea há muito tempo não se ocupar mais da busca pelo belo, exclusivamente, as pessoas em geral ainda esperam ir aos museus e encontrar alguma espécie de divertimento, algo que sirva, como você disse, como uma fuga da realidade, algo que lhes conforte, ou até mesmo obras que muitas vezes servem apenas de fundo colorido para selfies. E daí, quando elas entram nos museus de arte contemporânea, se deparam com o estranhamento, com instalações que as perturbam e que as provocam a pensar e sentir coisas que talvez não estivessem preparadas para sentir. O cinema também faz isso, nos dá socos no estômago, mas enfrentamos a ficção com mais desenvoltura e até usamos o choro como uma forma de catarse. Essa arte não trata da ficção, ela nos apresenta o real da forma mais crua que pode. Não que os artistas queiram nos causar mal, pelo contrário, mas talvez busquem estabelecer um vínculo com o que temos de mais humano, com a crueza da realidade, sem idealizações.

Acho que uma parte da busca das pessoas pela arte nesse período da pandemia da Covid-19 é ainda o conforto do divertimento. Mas também acho que outras procuram alguma forma de reflexão mais profunda que traduza esse incômodo que estamos vivendo. Paradoxalmente, encontrar a angústia na arte nos deixa menos angustiados, porque sabemos que não estamos sozinhos.

Robert Mapplethorpe, autorretrato (1988), pouco antes de sua morte, em decorrência da aids.

Se, na época, enquanto ainda pesquisava preliminarmente sobre o assunto, eu já acreditava que encontrar a angústia nos deixaria menos angustiados, um ano depois, tendo visto e estudado mais de uma centena de obras que tentaram e tentam dar forma ao sofrimento humano ao longo de todas as grandes epidemias, tenho certeza absoluta. Se a distração nos traz alguma forma de anestesia para o sofrimento, a arte quando experienciada em si mesma, nos oferece comunhão. Em respeito à nossa dor, ela nos diz, seguidamente, que não estamos sozinhos. Se a utilidade do divertimento é nos tirar do agora, a função da arte é nos jogar pra dentro dele. É nos fazer sentir vivos com tanta intensidade que o tédio, o enfado e o vazio perdem de lavada para o sublime, para o sentimento de estar verdadeiramente diante de algo que, mesmo sendo matéria inerte — uma pintura, uma melodia, um soneto — parece tão humano quanto um humano de carne osso. Esse sentimento é a ânima que anima a alma, de que Aristóteles falava. Talvez seja também o ânimo, o ar, que tanto nos falta.

Para terminar, deixo a citação da @cultura_parana que deu início a isso tudo, que era do Nuno Ramos, esse artista que tanto já me afundou na matéria viva do aqui e agora:

“A função da arte

não é dar resposta,

é dar ar,

dar vontade

de viver.

Mesmo quando

fala da morte.”

Se interessou pelo tema? Quer aprender como a arte ajudou a humanidade a resistir e atravessar as maiores epidemias da história? Peço licença para um momento merchand.

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Para ir além

Homenagem a uma gentil caçadora

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