Histórias por meio de receitas afetivas

O mais legal é que todas essas histórias são contadas por meio de receitas afetivas, oriundas de seus países, eleitas pelos próprios protagonistas

Acabo de chegar de viagem. Fui visitar o lugar da ascendência dos Petrys, com ‘y’, os originais. Os com ‘i’, como eu, são mazelas do tabelionato brasilis, que nos fez mais brasileirinhos, por assim dizer. Muitos quilômetros andados a pé, muitas fotos, muitas brochuras de monumentos e museus lidas – sou desses nerds – confirmei uma grande certeza que possuía: eu e o alemão, da região de onde saíram imigrantes famélicos – que chamo de bisavós – não temos absolutamente nada que ver. Porém, a diferença vai por água abaixo quando estou diante de uma mesa de comida típica daquele país. Se hoje em dia sou um colecionador de esquisitices, quando criança comer dankler senf, eisebein e sauerkraut no Méier, era ainda mais incomum. Apesar de incompreendido pelos vizinhos, nossos hábitos alimentares nos ligavam ao nosso pai, primos, tios e avós, e consequentemente a um fio de ancestralidade, iniciado em Santa Catarina, que eu não entendia muito bem, mas sabia que ali estava.

Sobre o mesmo tema, duas amigas curitibanas – ou quase – Isadora Hofstaetter e Luciana Patricia de Morais, compilaram um álbum de fotografias e histórias de futuros bisavós de um hipotético Petri mal grifado, ainda por nascer. “De Lá Para Cá” reúne 10 testemunhos de imigrações recentes que tiveram como destino final Curitiba. O mais legal é que todas essas histórias são contadas por meio de receitas afetivas, oriundas de seus países, eleitas pelos próprios protagonistas. O livro faz parte de um projeto que ainda conta com um documentário – que teve sua estréia no Cine Passeio – e uma grande doação de livros para hospitais, escolas e bibliotecas públicas de Curitiba, relacionados ao tema.

Como todo projeto brasileiro, o caminho das duas para executá-lo teve lá seus obstáculos, “a ideia surgiu em 2017 e virou um projeto pela lei de incentivo à cultura em 2018. Em 2019 tivemos problemas de ordem pessoal e adiamos para 2020”, me conta Isadora, em entrevista com as duas autoras presentes, na semana antes do lançamento do documentário. “Porém, em 2020, com tudo pronto para começar o livro, veio a pandemia, e todo o propósito original, que consistia em ir à casa das pessoas, cozinhar juntos e comer juntos, foi por água abaixo”, completa. Da mesma forma que muitas ideias que resistiram às intempéries dos últimos anos, Luciana, que é doutora em história da comida, celebra que a pandemia não as impediu, “fazendo dos limões limonada, conseguimos chegar a um trabalho que talvez seja até um pouco mais maduro que o projeto original. Além do tempo extra, a adversidade abriu a oportunidade para que a escuta fosse um pouco mais aprofundada”, explica.

É muito interessante que o contar dessas histórias se dê desde este lugar de brandura e carinho. A comida, e principalmente as receitas familiares, têm lugar nas memórias afetivas de muitas pessoas. É natural, como na experiência dos meus antepassados, que ela represente um elo com as ancestralidades de um povo e seja ela também, seu fio condutor ao cerne de cada um de nós. Além de ser um momento íntimo, para as autoras, o comer é ainda mais profundo, “quando oferecemos comida para alguém, estamos fazendo dois movimentos que em tese são incompatíveis mas acontecem juntos. Por um lado você está estabelecendo a diferença, porque oferece algo que você tem e a outra pessoa não tem, não sabe ou não conhece. Por outro você está dando a mão, entregando um pedaço de si. Marcel Mauss nos dizia que a maior dádiva que possa ser oferecida para alguém, no sentido de estabelecer uma relação, é a comida. Porque quando alguém come algo que você oferece, ele está incorporando a sua substância”, conclui a mineira, nascida em Belo Horizonte, Luciana.

Outra coisa que chama atenção sobre a obra é o corte imigratório proposto. Se no imaginário coletivo da construção de Curitiba figuram os italianos, poloneses, ucranianos e outros loiros de olhos claros, o livro traz, de maneira pouco fortuita, fenótipos muito diferentes. “A questão dos novos fluxos migratórios trouxe à tona vários sentimentos e várias formas de se relacionar que exigem reflexão. Há no Paraná essa tradição de se falar muito dos italianos e em Santa Catarina, dos alemães, por exemplo. Pensamos que talvez seja necessário evidenciar essas outras culturas que estão aqui e fazem parte de nós e da Curitiba que já não é mais uma cidadezinha. Ainda que haja muita resistência com relação a esse sentimento, nós como cidade temos que abraçar todos que estão aqui habitando este lugar. Como tornar essa convivência mais humana, mais afetiva, sensível e honesta nas suas trocas? Vamos conversar sobre isso?, nos convida a curitibana Isadora.

O namoro do brasileiro com a ancestralidade européia inventada, não vem de hoje. Como muito bem salientou Luciana, devemos considerar muitas itálias e alemanhas para falar de ancestralidade. Quando me refiro a essa pluralidade, há de se levar em conta também não só seus aspectos culturais e demográficos mas o seu tempo cronológico. No Brasil, em especial no sul do país, parece que as pessoas preferem relacionar-se com esse imaginário projetado, muitas vezes distante ao factual de suas raízes. “No meu doutorado, eu pesquisei identidade mineira e paranaense por meio do Guia Quatro Rodas e me perguntava porque você consegue falar de uma cozinha mineira e não consegue construir uma cozinha paranaense? Porque as pessoas ainda estão querendo se identificar com uma ancestralidade que ainda não é aqui”, explica Luciana.

O livro, “De Lá para Cá”, que pode ser baixado gratuitamente, serve como um pedido de atenção para problemas atuais e, através do afeto proporcionado pela gastronomia, como um convite à reflexão do que entendemos como a narrativa da cidade, em especial, a de Curitiba. “Quando a gente sai, a gente percebe que não há volta para o original. Não há mais como ser o que se era, e isso é a vida. O imigrar, o ir para longe, o olhar distante talvez seja necessário para entendermos o que é o lá, e conseguir entender o que é o aqui”, explica Isadora. “Quando você torna isso estático, não consegue ir além e isso deixa de ser assunto porque já está posto, está definido. Essas pessoas chegam aqui e, com a sua bagagem, misturam-se as panelas. Elas trazem as suas lembranças consigo, lembranças da cozinha, fundindo-as com a cozinha daqui. Com essa incorporação, a comida destes migrantes é transformada também”, completa a outra autora.

Imaginem o que aconteceria se os italianos que aqui chegaram e fundaram Santa Felicidade encontrassem essas barreiras: o quão pobre não seria a história da capital, sem o seu legado italiano, que possibilitou a criação de uma culinária própria? Os fluxos migratórios são cíclicos e inerentes à espécie humana: se hoje são venezuelanos é porque já foram europeus e não poderão deixar de sê-lo novamente. Portanto, a cidade inventada, como diz, Cristiano Castilho, deveria começar a criar-se, ou melhor, reconhecer-se, pelo que é e não pelo o que gostaria de ser. Dessa forma ganharíamos todos que chamamos esse frio planalto de nosso tão amado lar. Muito obrigado pelo convite, meninas!

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