E a polenta?

Aliando o costume de comer polenta do norte da Itália, já à base do milho indígena, à fartura do cereal, os imigrantes fazem com que o consumo do prato aumente na região de Santa Felicidade, inclusive nas mesas dos não descendentes, na medida em que suas culturas são fundidas

Temos um italiano na redação do Plural. Desses que piram quando recebem release de desgraças gastronômicas, especialmente relacionadas a pizza. “Mandam para mim, Felipe. Para mim!” Desabafa indignado, fazendo com as mãos um gesto de desaprovação, Andrea Torrente, editor de gastronomia do Plural e apresentador do podcast Gastronautas. Nos encontramos no final de semana passado e entre chopes, histórias e risadas, conversamos sobre gastronomia, naturalmente. Um dos papos foi sobre polenta, prato “típico italiano” que, para o nosso italianíssimo, não soa tão típico assim. “A não ser que seja de alguma cidade ou região específica, que eu desconheço, acho que frango com polenta é uma comida D.O.C: Denominação de Origem Curitibana”, brinca o jornalista.

A aparente desconexão entre o prato e o italiano não parece ser tão infundada assim. Apesar de vivermos em uma cidade onde a narrativa ítalo-gastronômica impera, o milho, a polenta e os imigrantes de Santa Felicidade têm origens talvez muito distantes e a dita herança da tradição italiana pode ter sido mera obra do acaso. Aqui não se pretende desvincular o consumo do prato ligado às famílias imigrantes, que é legítimo, mas talvez trazer elementos que aprofundem a discussão colonialista eurocentrada da nossa gastronomia.

A começar pelo fato do milho ser nosso. O milho é uma planta das Américas ou Índias Ocidentais, como diria o colonizador. Em seu livro, A Culinária Caipira da Paulistânia, Carlos Alberto Dória escreve sobre a gastronomia que tem como ponto comum a região que integrou os sertões brasileiros, a miscigenação entre as culturas do português e do índio, as tradições autênticas provenientes desta mistura e o uso de insumos comuns dentro desta grande área que ele chama de Paulistânia, compreendendo desde o interior do Rio de Janeiro, São Paulo, passando pelas Gerais, se estendendo até o Mato Grosso, ao oeste, Goiás, ao norte, e à Santa Catarina, ao Sul.

“O milho, as abóboras variadas, a araruta, a mandioca, o inhame, a batata ariá, e o amendoim já estavam domesticados no continente sul-americano entre 10 mil e 7 mil anos A. P. [antes do presente]… Descobriram-se, ainda, resíduos cerâmicos com traços do consumo de milho, abóbora, amendoim, feijão e pacay (ingá) na costa peruana e do Equador, datados de 5.300 a 4.950 anos A.P. Também sobre o Brasil, há estudos modernos que frisam a presença do milho, além de outros alimentos, nos vastos sertões pré-coloniais, quebrando o monolitismo da interpretação baseada nas crônicas quinhentista e setecentistas sobre a alimentação indígena centrada na mandioca.” Segundo o autor, o milho aparece como uma cultura extremamente importante para os povos originários. Entre os Guaranis, a colheita do primeiro milho era ritualística, divergindo da mandioca, e as espécies cultivadas eram profusas.

Não para por aí, além é claro da produção, o milho era uma iguaria usada regularmente na “mesa” indígena. “As comidas derivadas do milho eram muitas, e algumas delas, com pequenas modificações, podem ser identificadas até hoje como ancestrais de muitos alimentos da tradição considerada brasileira.” Nesse cardápio variado havia pães (mbodjape, mbyta), preparos com sua farinha (cai repoti, huiti piru) e, claro, a polenta (mbayapi). O milho é levado à Europa por Colombo, se espalha por Espanha, Portugal, França e Itália em meados do século XVI e, através dos portugueses, chega tão longe quanto à China e à Birmânia em 1597.

Tão interessante quanto a origem do vegetal é a organicidade e identidade da história da polenta. Em sua dissertação, “Santa Felicidade (Curitiba, Paraná): Na polenta, uma história de hospitalidade”, Elsa Féder nos conta que “o milho levado ao continente europeu entra no norte da Itália entre 1530 e 1540, chamado de milhete graúdo. Naquele tempo, a polenta era confeccionada com trigo-mouro e era chamada de polenta cinza. O trigo mouro veio do nordeste da Europa e se espalhou no século XVI até chegar ao norte da Itália. A polenta produzida com milho possuía a coloração amarelo-clara. Em função do cereal escolhido para a fabricação, a coloração se modificava e ainda hoje é diferenciada como polenta branca, polenta amarela, etc. Os italianos do norte tem há muito tempo o hábito de comer polenta: polenta branca, feita de milhete na Idade Média, depois polenta cinza, de trigo-mouro na renascença e por fim polenta amarela, de milho, que fez desaparecer as anteriores.

Pelos mares, ao final do século XIX e começo do século XX, chegaram os imigrantes italianos. Estima-se que em uma faixa de 50 anos (1880-1930) tenha chegado ao Brasil um contingente de mais de um milhão de pessoas vindas do país europeu. É inegável sua influência na nossa cultura de modo geral, principalmente aqui no sul, que foi o destino de muitas dessas famílias, vindas majoritariamente da região do Vêneto Italiano, que à época era arrasado pela fome, peste e pobreza. “Quando os vênetos saíram em busca de uma vida melhor, ficou claro que a procura seria antes de tudo por comida, anterior mesmo à necessidade de adquirir um pedaço de terra para plantar. A fome e a miséria foram os fatores do êxodo dessa população, de maior importância que os atrativos que levaram metade da população a emigrar para a América”, nos conta Féder.

A mão de obra dessa imigração era importante para o abastecimento das vilas e pequenas cidades brasileiras, pois o Brasil acabara de lançar a sua população negra escravizada a própria sorte, com a abolição da escravatura, e iniciara o processo de branqueamento e europeização da população local. Neste sentido, Curitiba obteve rotundo êxito, fazendo ao mesmo tempo que artesãos, no centro, e agricultores, aos arredores da capital, abastecessem a capital e tingissem de branco costumes e práticas locais.

É neste contexto que os “italianos polenteiros”, denominação dada aos descendentes ou oriundos do Vêneto por conta do grande consumo da iguaria, se instalam em Santa Felicidade e começam a fazer mais conhecidos seus hábitos alimentares. Ainda na dissertação de Elsa Féder, descobrimos que, “segundo a professora Altiva Balhana, setenta anos depois dos primeiros imigrantes chegarem ao Brasil e iniciarem a colonização de Santa Felicidade, o prato principal continuava a ser a polenta. O pão branco raramente era consumido: era encontrado o pão de centeio e a broa caseira. A falta de trigo levou-os ao pouco consumo de pão, macarrão ou outras massas. Na década de 1950, a polenta ainda era tida como prato principal dos colonos no bairro de Santa Felicidade. Conforme Marzano (1985, p.135) relata: “O milho é o alimento quotidiano dos colonos, que chegam a fazer polenta até três vezes por dia. […] nossos colonos não querem saber de sair de seus antigos hábitos. Preferem a polenta e a sopa de feijão temperada com banha”.

Não seria qualquer exagero dizer que os italianos que aqui chegaram juntaram “a fome com a vontade de comer”. Aliando o costume de comer polenta do norte da Itália, já à base do milho indígena, à fartura do cereal, os imigrantes fazem com que o consumo do prato aumente na região, inclusive nas mesas dos não descendentes, na medida em que suas culturas são fundidas, contrastando com a escassez de outros ingredientes mais representativos na cultura italiana, como o trigo para massas e pães. A assimilação da polenta pelo brasileiro seria natural, dado que, com outros nomes e variações de receitas território afora – angu, curau, pamonha – o consumo do ingrediente não lhe era estranho. E não poderia sê-lo, já que, oriundo dessas terras, o ingrediente tem sido comido, cultivado e até adorado por centenas de anos pelos nativos e mamelucos da Paulistânia.

Portanto, o ineditismo da polenta trazida pelos italianos, não se sustenta. É certo que, como dito no começo do texto, a ligação geodemográfica à cultura de consumo do prato é verdadeira, porém, não qualifica nenhuma novidade e nem costume geral do país de origem, reservando-se mais a um costume histórico-regional ligado ao Vêneto. Sobre o prato, pesa uma “Itália imaginária” representada pela amostra de imigrantes que aqui chegaram, ainda que a sua ligação afetiva seja factual. Dito isso, cabe a crítica à narrativa eurocêntrica que embala a notoriedade do prato como um legítimo prato italiano. A polenta com frango adorada, com toda a razão e predicados que a ela se possam atribuir, está muito mais para um prato brasileiro que italiano, e dele devemos morrer de orgulho, pois é fruto autêntico da mescla de culturas originárias do Brasil.

Precisamos nos lembrar de que não há a necessidade de nos vestirmos de verde, branco e vermelho e dançarmos a tarantela para chancelar comida boa em nosso território. Num Brasil ideal, reconhecimentos da influência indígena como fontes autênticas deveriam prevalecer sobre buscas eurocêntricas de justificativas ao que é produzido e motivo de orgulho por aqui.

No final das contas, o nosso Italian mad at food, Andrea Torrente, que já aprendeu a sambar há muito tempo, estava certo, mais curitibano que frango com polenta frita, impossível!

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