Anne Carson e seu labirinto mítico

Quase tudo nas obras de Carson precisa ser descoberto

“Por vezes, a jornada se faz necessária.”

Como ler Anne Carson? Como ler alguém que começa uma descrição sobre um poeta da Magna Grécia dizendo que ele viveu entre Homero e Gertrude Stein? Poderíamos começar por Homero ou Gertrude Stein… ou nenhum deles. Caso você vá cavocando, descobrirá que o poeta citado por ela é mais citado que conhecido, pois o que sobrou dele foram mais referências a ele do que sua obra. O achado mais recente sobre ele data dos anos 1960, um fragmento de papiro encontrado em Oxirrinco, ou seja, um achado fantástico e ao mesmo tempo muito triste: triste porque, de um lado, mostra que Estesícoro, o poeta em questão, não apenas existiu como escreveu e frequentou alguma biblioteca antiga da qual só sobrem restos num cemitério (como Fayum) ou num lixão, como Oxirrinco. Por outro, mostra um texto que jamais poderemos alcançar… exceto se encontrarmos outro lixão do mundo greco-egípcio ou alguma múmia em torno da qual alguém enrolou textos dele em pergaminho ou papiro.

E Anne Carson utiliza esse poço sem fundo muito bem.

Mas há levantamentos preciosos sobre o poeta – e o leitor mais apaixonado poderá encontrar muitas obras sobre o que sobrou de Estesícoro. Um dos levantamentos mais surpreendentes sobre ele coube a dois estudiosos, Davies e Finglass. Você, caso queira saber mais sobre o poeta grego, poderá achar facilmente essa obra na internet.

Outra saída seria deixar este poeta de lado e confiar mais no romance-poema de Anne Carson. Haveria ainda um modo paralelo: ler outras obras dela e comparar com Autobiografia do vermelho, obra inclassificável e ousadíssima. Caso você decida começar a ler Anne Carson, em português não há muita coisa, exceto, além do livro de hoje, O método Albertine, das Edições Jabuticaba. Caso leia em inglês, aconselho começar por Glass, Irony and God.

De volta a Autobiografia do Vermelho, seria bom ter em mente que o romance-poema conta a história de um rapaz. Ponto. Seu nascimento, seu crescimento, a relação abusiva com o irmão, a mãe distante, a descoberta da paixão amorosa, sua outra paixão, a fotografia, seu reencontro com o amor da vida, viagens e distanciamento, talvez alguma reflexão sobre a memória. É disso que trata o enredo do romance-poema. Mas lidamos com Anne Carson – e a coisa toda não é tão simples assim.

Primeiramente, trata-se de uma “autobiografia” e desde logo ela cita Gertrude Stein como guia, uma espécie de Beatriz que não aparece. Quase tudo nas obras de Carson precisa ser descoberto, como num labirinto mítico. Não se assuste. Tenha em mente, então, que a “autobiografia” é escrita, em verdade, por outra pessoa. Temos aí um Autor e um narrador, certo?, assim como aprendemos nas aulas de literatura do colégio, mas Carson embaralha as coisas. Sua fonte é um mito, o de Gerião. Ela sabe que Gerião foi um dos “monstros” mortos por Hércules (ou Héracles) como um de seus doze trabalhos a ser cumprido (então, pense numa hybris). Ela sabe que ao menos um poeta da Antiguidade escreveu uma Geroneia, ou seja, uma obra que trata da vida de Gerião. Veja: ela igualmente sabe que o poeta da Antiguidade (considerado por muitos pensadores antigos gregos e latinos como um novo Homero ou um discípulo de Homero) inverte papéis: em geral, os grandes ciclos literários gregos são sobre heróis e não sobre quem os heróis matam, por mais que algumas personagens monstruosas sejam “humanizadas” na literatura greco-latina. Curiosamente – e ninguém sabe a razão – Estesícoro não escreveu, por exemplo, sobre Iolau, o companheiro de lutas de Hércules, ou sobre o próprio Hércules, e sim sobre Gerião.

Essa inversão surge em Autobiografia do Vermelho em inúmeros níveis: Gerião continua, de certa forma, “monstruoso”, tendo asas, mas não é o monstro morto por Hércules, a menos fisicamente. Em outro nível de inversões, Gerião e Hércules são – ou foram – amantes em verdade, e Hércules não o mata, a não ser que o afastamento de Hércules, ou seja, o afastamento do amor, seja um tipo de morte – e isso é tentador ao menos trazer como possibilidade para quem lê o romance-poema. Ela sabe quem foi Iolau, então imagina dois “heróis”, como no batalhão dos Lacedemônios, juntos.

Em relação à estrutura do texto, se os escritores do “novo romance” francês, como Claude Simon, e os escritores do grupo Olipo levaram o romance ao paroxismo, aqui o leitor vai encontrar um desafio de leitura. Embora Carson não rompa exatamente, como o fez Simon, uma linha temporal da narrativa, ela rompe qualquer linha temporal histórica, mesclando personagens, tempos, lugares geográficos. Se você acha a liberdade dela muito grande, olhe para uma foto do que restou de um texto de Estesícoro sobre Gerião: haverá mais brechas que locais preenchidos ali. Ela os povoa a seu modo, e um modo bem peculiar, que a fez ganhar grandes prêmios, ser cotada para o Nobel e ser reverenciada como uma das grandes poetas vivas.

Se Gerião viveu onde hoje seria a cidade de Cadiz (Gadeira), uma “terra vermelha” para os antigos gregos e fenícios, muito para além das Colunas de Hércules, aqui Gerião e Hércules vão para outro lugar “vermelho”, a América do Sul, onde Hércules encontra um novo amante, o qual, por sua vez, conta a Gerião que ali também vive um mito que seria seu reflexo, num vulcão.  Carson sabe, seja por ela mesma, seja por Davies e Finglass, que há variações do mito de Gerião em outros lugares do mundo, como na Índia. A autora, então, sem medo de escândalo, mescla lugares, mitos estruturas narrativas, personagens, discursos. Ao longo do caminho, deixa pistas para o leitor se deliciar com as possibilidades de diálogo dessa obra com inúmeras outras, tudo a depender da escolha do leitor.

O romance não deve ser lido de trás para diante ou escolhendo capítulos, mas ao mesmo tempo lembra narrativas feitas assim, para critério e deleite do leitor, já que ele pode procurar caminhos paralelos de interpretação. Sei bem que toda literatura é assim, cheia de liberdades interpretativas a depender da enciclopédia pessoal de cada leitor, mas, como já disse, aqui temos Carson abrindo caminhos, digamos, pouco convencionais e absolutamente voluntários.

Autobiografia do Vermelho é um desafio de leitura, para leitores mais experientes. Ganhou tradução de Ismar Tirelli Neto, uma tradução deslumbrante. A edição é da excelente Editora 34.

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