Transcendências texanas

Viajando pelo Texas, descubro o tamanho dos meus preconceitos

Saí de New Orleans e minha primeira parada foi em um camping estadual bem estruturado da Louisiana, o Bayou Segnette State Park, ainda perto da cidade do jazz. O camping ficava às margens de um pântano, um braço do Mississipi, ao lado de chalés flutuantes normalmente alugados por pescadores. Era um lugar ajeitado e estava praticamente vazio fora da temporada.

Foram dias para colocar o Paçoca em ordem: lavar roupas, fazer a faxina, tratar fotos, escrever o diário, escrever para o Plural. Ou simplesmente descansar. Depois de 30.000 quilômetros rodados, em quase seis meses, foi preciso também parar e não fazer nada por uns dias.

Com a casa em dia, parti para o estado que, na minha mais absoluta ignorância, achei que seria o menos interessante de todos, o Texas. Definitivamente, há mais no Texas do que o estereótipo do Texas. Cowboys e rednecks são só uma parte de um cenário muito maior.

Comecei a jornada texana dormindo no Walmart de Houston. Mas não me animei a ficar em Houston – na melhor das hipóteses, havia algumas atrações ligadas à Nasa e à era espacial que não achei que valeriam a pena investir tempo e dinheiro. Segui para Austin, uma das muitas cidades universitárias dos EUA.

A arquitetura do centro de Austin. Foto: André Tezza

Austin é um mundo à parte dentro da terra do tio Sam – existe um inegável frescor da juventude. Aportei o Paçoca em um camping muito bem localizado. É raro ter uma opção assim nas cidades grandes e foi sorte ter conseguido um lugar na semana do Thanksgiving, o super feriadão americano. 

Os donos do camping, Cat e Glenn, eram simpáticos, me deram dicas valiosas. Foi divertido eles terem inicialmente me recomendado o churrasco texano – que todo americano avalia como o melhor dos EUA – e, depois de saberem que sou brasileiro, me disseram que o churrasco na verdade não era tão grande coisa assim. Glenn já havia viajado para a Argentina, sabia que na América do Sul temos churrascarias muito melhores.

Big Band no Elephant Room, o principal bar de jazz de Austin. Foto: André Tezza

Austin é um dos polos musicais do mundo e um dos lugares que me impressionou foi o Elephant Room, o principal bar de jazz da cidade. Era uma segunda-feira, não é cobrado couvert, e a noite começou com uma excelente big band. O bar estava lotado, algo meio inacreditável – não só por ser segunda, mas também por ser jazz. Nas mesas, havia aposentados e turistas do Thanksgiving – mas também muitos jovens. Os universitários estavam presentes. 

A arquitetura de Austin rendeu boas fotos. Há muitas áreas verdes e o centro está repleto de bonitos prédios espelhados. Não é aquele deslumbre de Chicago, mas definitivamente há um estilo predominante nas grandes cidades americanas – tudo parece um tanto quanto derivado do funcionalismo modernista, a simplificação máxima das formas. É elegante e, consciente ou não, uma noção de conjunto se sobressai. 

Satisfeito com Austin, não sabia bem como continuar em direção à costa oeste – minha ideia era entrar no México pela Califórnia. Voltei ao oráculo, os guias da Lonely Planet. Um deles era o guia de road trips dos Estados Unidos, que foi a base da excursão do blues. Neste guia, havia um percurso sugerido pelo interior do Texas. Vi as rotas sem ter lido com calma as atrações que viriam pela frente, até porque não havia outra opção a fazer.  

Exemplo de mercado texano. Foto: André Tezza

Depois de dois dias inteiros rodando no deserto, sem nenhuma cidade digna de atenção pelo caminho, cheguei em Marfa. E eis um primeiro espanto no Texas. Do nada ao nada, passando pelo nada, eis Marfa, um vilarejo minúsculo – o Google me diz que tem 1750 habitantes. São algumas quadras asfaltas e o entorno empoeirado e ocre. Antigamente havia uma enorme base militar, agora abandonada. 

No final dos anos 70, um artista plástico americano, Donald Judd, que eu não conhecia, criou na base abandonada a Fundação Chinati. O lugar virou um imenso museu, com muitos galpões militares abrigando um bom acervo do minimalismo. Eu pensava no minimalismo somente pelo caminho da música, com as obras de Philip Glass e Steve Reich, desconhecendo os desdobramentos em outras formas de arte. 

Há uma conversa entre as obras protegidas naqueles galpões e o deserto. Os espaços são rígidos, áridos e sem ornamentos. O concreto aparente é abundante, sempre com uma horizonte limpo. Assim como Inhotim, a Fundação Chinati impressiona pelo espaço – os galpões, por si só, já são expressivos. Sem contar que montar um museu de arte sobre uma base militar é um ato simbólico poderoso.

O Paçoca estacionado no camping de Marfa. Foto: André Tezza

Incrédulo no que estava vendo, minha ignorância pelo menos trouxe a recompensa do êxtase do inesperado. Troquei algumas mensagens com a Sandra Stroparo, professora da UFPR, uma amiga da área da literatura mas também apaixonada pelas artes visuais. Ela me deu as informações básicas sobre Marfa e Donald Judd.

Como estava dormindo em um camping distante, aproveitei que o coração do vilarejo estava perto do museu e almocei em um dos hotéis. A caminho de lá, outra cena inacreditável, uma micropasseata a favor da Palestina, após o início de mais um trágico conflito entre o Hamas e Israel. Eram não mais do que 15 pessoas, cartazes em punho e o grito de palavras de ordem contra Israel ditas para mim e mais ninguém. Marfa saiu de algum filme de David Lynch.

Vista do drone da Fundação Chinati, uma antiga base militar transformada em museu

Depois do almoço, caminhei pelas várias galerias da cidade, o que também é inacreditável, considerando o tamanho da vila. Graças à fundação, Donald Judd conseguiu fazer do lugar um centro de peregrinação de entusiastas das artes visuais. O que estava à venda nas galerias não me impressionou, mas o artesanato, disponível nas mesmas galerias, era de altíssimo nível. 

Algumas dezenas de quilômetros adiante, visitei o Prada Marfa, uma das instalações mais famosas dos Estados Unidos. É uma loja fake da Prada com uma coleção verdadeira da marca no meio do deserto, no meio do nada. Foi criada pelos artistas Elmgreen & Dragset. O comentário ácido e surreal sobre o consumo está em sintonia com o restante de Marfa, ela própria ácida e surreal. Quando voltei para o camping, o pôr-do-sol foi cinematográfico e consegui imagens bem decentes do Paçoca.

Próximo de Marfa fica o parque nacional mais importante do Texas, o Big Bend, onde tive mais experiências transcendentes. Será o assunto da próxima coluna.

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