Como a opressão mercadológica afeta a tradição

A pesca industrial, muitas vezes predatória, impõe outros desafios importantes à subsistência dos povos pesqueiros da baía de Paranaguá, que tem quase trezentos anos de tradição

Há um erro muito comum entre nós que é confundir progresso com tecnologia. Não me refiro somente aos aparelhos eletrônicos que nos têm na mão, me refiro às trocas de paisagem, no sentido amplo, que esvaziam a simbologia de lugares inteiros. Um grande exemplo que temos aqui na capital é o bairro símbolo da gastronomia curitibana, Santa Felicidade. A avenida Manoel Ribas que abrigava o simbolismo ítalo-brasileiro, com seu comércio feito através das casas de madeiras dos descendentes diretos dos imigrantes italianos, já não existe mais. A paisagem criada pelo colono, que atraiu tantos turistas, e que foi responsável por consolidar a gastronomia própria do lugar, deu espaço a grandes redes varejistas, farmácias e até barraquinhas de sorvetes ultraprocessados americanos.

A piscicultura brasileira vem se desenvolvendo de forma robusta, com significativos avanços tecnológicos, que vêm permitindo aumentos recordes de produção. As novas tecnologias representadas pela tríade – atravessadores que atendem grandes varejistas (ou supermercados), piscicultores e pescadores industriais – vêm dando novos contornos a uma atividade centenária que, até muito pouco tempo, era desempenhada majoritariamente por pescadores artesanais. O Paraná, por coincidência, é um estado com pouca relação com a praia, ao contrário do Rio de Janeiro e Santa Catarina, mas tem grande relação com o mar, apesar do seu curto litoral. Paranaguá e região, berço da civilização (e configuração étnico-cultural) paranaense, abriga em sua baía muitos bolsões de resistência à tecnologia de esvaziamento que, na capital, mudou a cara de Santa Felicidade para sempre.

Na Vila São Miguel, no Saco do Tambarutaca, em Paranaguá, reside o Seu Romildo, pescador artesanal especializado na pesca do siri. Ele me conta que iniciativas como a Olha o Peixe!, que leva o pescado artesanal do litoral direto para o consumidor final em Curitiba, melhoraram em muito sua remuneração, na medida em que ele não depende mais de atravessadores ou grandes varejistas para vender seu produto. ” A Olha o Peixe! paga muito melhor e o ano inteiro. As pessoas admiram o seu trabalho, pela remuneração mais justa. A iniciativa passa uma tranquilidade pro pescador porque, além de vender o ano inteiro, ele  sabe que é aquele mesmo preço sempre”, diz o morador da vila.

Porém, ainda que se escape da opressão mercadológica representada pelos lobbies de atravessadores do grande comércio varejista, pessoas como o Seu Romildo contam com a competição brutal imposta pela piscicultura, que, considerada parte do agronegócio, está alinhada com as prioridades do governo paranaense, assim como as do governo federal de Bolsonaro. Para se ter uma ideia, o Paraná é o maior produtor de tilápias do Brasil. Não só isso, sua produção é tão grande quanto aproximadamente a soma do segundo, terceiro e quarto lugares juntos (São Paulo, Minas Gerais e Mato Grosso do Sul, respectivamente). O total foi de 182 mil toneladas produzidas no ano de 2021 – de acordo com o anuário de 2022 da Peixe-Br, associação e think tank que defende os interesses do setor. 

As dificuldades não param por aí. A pesca industrial, muitas vezes predatória, impõe outros desafios importantes à subsistência dos povos pesqueiros da baía de Paranaguá, que tem quase trezentos anos de tradição. “Aqui a gente costuma pescar com redes, né? Redes de linguado, por exemplo, têm 800 metros, 1 quilômetro. Os barcos pesqueiros pescam com 60 quilômetros de redes, é quase a distância entre Paranaguá e Curitiba. Nós pescamos numa baía, num estuário, num lugar fechado, a gente vive das espécies sazonais, daqueles peixes que vêm do alto mar. Se começarem a pescar nos mares daqui, as espécies sazonais não vão entrar (na baía) para nós. A gente só pesca aqui dentro. Se pescarem todas as espécies que vêm para cá por algum motivo natural, biológico, vai chegar uma hora que não vai ter espécie nenhuma entrando”, lamenta Seu Romildo.

Outro inimigo tácito da pesca artesanal somos nós, os consumidores. Em 2020 a Embrapa – Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, dado o crescimento da piscicultura brasileira, lançou um estudo para traçar o perfil dos compradores de pescados em supermercados das cinco regiões brasileiras. Curitiba foi a capital escolhida para representar o sul do país e os resultados são desanimadores. Ainda que a cidade esteja em vantagem quanto a instrução acadêmica e renda familiares (lembrando que os resultados foram apurados antes da derrocada catastrófica da economia nos últimos anos), tanto o consumidor brasileiro quanto o curitibano não parecem entender o problema sistêmico que acomete o alimento.

O citadino da capital dos pinheirais costuma (ou costumava) gastar em média até R$ 158 em pescados por mês, comprando-os majoritariamente em supermercados, 61%, seguidos por peixarias, 15%, e feiras, 11%, além de ter renda familiar média oscilando entre R$ 2.000 e R$ 8.000, muito acima da média nacional, em 2019, de R$ 1.373. Ainda que os bons níveis sociais sugerissem uma compreensão mais holística sobre o alimento, 33% dos consumidores não sabem se a tilápia é oriunda da pesca ou da piscicultura. O mesmo se repete com o salmão, com 36%. Inclusive, 20% dos clientes acreditam que ele venha da pesca, quando na verdade, além de importado do Chile, vem quase 100% da aquicultura. Vale salientar que essas duas espécies, as mais reconhecidas pelos consumidores na pesquisa, sequer são encontradas naturalmente em toda a infinidade da costa brasileira.

“Há algo que eu sempre imaginei, sabe? Quando perguntam o que eu mais gosto do mar. Tem um peixe pequeno, muito pequeno, chamado bagrinho amarelo que é o menor bagre que existe. Ele é o peixe mais saboroso que existe no mar”,  comenta Seu Romildo, enquanto conversávamos sobre a preferência geral por uma gama tão limitada de pescado. Ainda que a baía de Paranaguá seja um verdadeiro tesouro biodiverso, muito pouco dele pode ser aproveitado pelos pescadores em forma de ganhos financeiros. “Quando vamos pescar camarão, nós pegamos um linguado minúsculo. Ele é apelidado por nós de língua de vaca, por causa do seu formato, praticamente não tem vísceras e tem um couro muito fino. Você passa a faca na cabecinha dele, puxa e tira o filé em três segundos. Aquilo ali frito é uma maravilha. É a coisa mais gostosa. Tem bastante desse peixe aqui mas nós não o pescamos porque ele não tem valor comercial”, completa o pescador.

Quem entende bem a complexidade do assunto é Bryan Muller. O oceanógrafo e sócio proprietário da Olha o Peixe!, que já esteve aqui na coluna compartilhando um pouco da sua vivência, acredita que, “se não fomentarmos e protegermos a pesca artesanal, perderemos a sua essência. Se em todo o Brasil, todos os estados, produzirem tilápia, e se todos os pescados, de todos os estados chegarem em todos os lugares, todo mundo vai estar comendo a mesma coisa. Daí não faz sentido você sair de Curitiba e vir ao litoral comer, não faz sentido você ir a Santa Catarina para comer um marisco porque vai estar tudo igual”, comenta o especialista.

O empresário também acredita que dessa forma se perderão os saberes tradicionais na medida em que os filhos dos pescadores, não se interessariam mais pelo trabalho dos pais, já que o ofício não é reconhecido e muitas vezes até oprimido pela falta de investimento e fomento. “Uma coisa é você gastar cinquenta reais e comprar um camarão de alguém que tá chegando aqui (em Matinhos) do mar, outra coisa é você comprar cinquenta reais, em um supermercado, de uma tilápia congelada de uma grande empresa. Esses cinquenta reais não fazem qualquer diferença para essa empresa, ao passo que para o pescador é o dinheiro do combustível do dia seguinte para ele trabalhar. Então,  acho que apoiar a economia local, essa pesca de menor escala, é você também gerar redução de desigualdade. É você dar condição para que essa galera tenha o mínimo de renda básica mesmo, para viver como qualquer família”, conclui o oceanógrafo.  

Portanto, a reflexão que fica é se esse esvaziamento da paisagem, mais uma vez em sentido amplo, causado pela tecnologia vale realmente a pena. E mais, a quem o modelo, empregado de maneira estrutural, beneficia. Assim como os novos vícios, patologias e picos de ansiedades causados pelos smartphones nos estão provando que tecnologia não quer dizer progresso, perder uma tradição centenária, aprofundar desigualdades e acabar com o meio ambiente, me parece um preço muito alto para consumirmos pescado da maneira que fazemos e nos fazem acreditar que devemos. O Paraná, que aparenta mal conhecer a paisagem da baía de Paranaguá, com o caminhar das coisas, não terá essa chance em um futuro próximo. Será tarde demais!

Sobre o/a autor/a

Compartilhe:

Leia também

À minha mãe

Aos 50 anos, a vida teve a ousadia de colocar um tumor no lugar onde minha mãe gerou seus dois filhos. Mas ela vai vencer

Leia mais »

Melhor jornal de Curitiba

Assine e apoie

Assinantes recebem nossa newsletter exclusiva

Rolar para cima