Quiosque do Méqui no Madalosso levanta debate sobre ameaça à identidade italiana de Santa Felicidade

Inauguração da sorveteria foi criticada por Beto Madalosso por ameaçar a "italianice" do bairro, mas o poço é mais fundo

Nesta semana, o McDonald’s inaugurou um quiosque de sorvetes no estacionamento do Família Madalosso, um dos restaurantes mais tradicionais de Curitiba e que completa 59 anos, em 2022. O empreendimento é para ser temporário.

“De repente o fast food norte-americano invade o nosso quintal”, reagiu de maneira inesperada o empresário Beto Madalosso, que é sobrinho dos proprietários da casa. Como de costume, Beto usou as redes sociais para expressar seu ceticismo.

“Esse quiosque do Méqui no Madalosso mostra como o capitalismo vem comendo pelas beiradas, corroendo a cultura e a tradição, passando o rolo compressor em nome do capital”, atacou o descendente da família, que nos últimos anos tem se convertido num capitalista crítico.

O empresário diz respeitar a decisão familiar, mas admite que ainda não conseguiu absorver o fato de um fast-food gringo compartilhar o mesmo terreno do restaurante que há mais de 60 anos nasceu com seis mesas, poucas panelas, colher de pau e que se destacou pela comida feita à mão.

O quiosque não é a primeira operação do McDonald’s em Santa Felicidade que já conta com um restaurante fast-food há cerca de dez anos. O novo quiosque não serve sanduíches, mas apenas opções de sorvetes como a tradicional casquinha, Sundae, Top Sundae, McFlurry, Mc Shake e McColosso.

O franqueado Márcio Moreira, responsável pela operação no local, explica que a parceria se deu porque o bairro concentra mais de 25 mil habitantes, sem contar os turistas, e que o Madalosso é um dos principais pontos turísticos da cidade. “Não poderíamos estar em lugar melhor. Fazer parte do passeio das pessoas e da história dessa região que tanto nos orgulha, é uma alegria”, afirma.

Segundo Beto, porém, a abertura do Méqui num lugar tão icônico parece certificar a lenta e constante perda de identidade que afeta Santa Felicidade há pelo menos duas décadas. “Lembro que uns 20 anos atrás, um centro de tradição italiana que ficava em frente ao Restaurante Iguaçu foi convertido numa loja da Casa China. Na época o pessoal ficou revoltado e questionava: ‘como assim uma loja chinesa?’. Então, esse tema é recorrente”, diz o empresário.

Beto tem sangue italiano e é notório que os italianos têm uma relação visceral com a comida do próprio país. Com frequência, tudo que vem de fora é encarado com suspeita ou menosprezo. Reações de revolta ao McDonald’s ocorreram em 1986 quando o fast-food abriu seu primeiro restaurante na Escadaria Espanhola, em Roma. As polêmicas se repetiram em 2017 quando o Méqui ocupou uma esquina do Vaticano e o Starbucks inaugurou sua primeira cafeteria no centro de Milão.

Segundo o arquiteto especialista em patrimônio cultural, Moisés Stival, que nasceu em Santa Felicidade, o que sobra ainda da italianidade do bairro não é ameaçada pelo McDonald’s, mas por outros fatores.

“Há vários resquícios de italianidade que correm risco de desaparecimento: não só as construções, mas também os ofícios como o artesanato de vime, a tradição de fazer polenta mole em casa e o Talian, a variante brasileira do dialeto vêneto que ainda é falada pelos mais velhos e algumas pessoas mais novas”, explica o especialista.

De colônia rural a ponto turístico

Santa Felicidade demorou quase um século para se transformar de colônia rural a ponto turístico de Curitiba. “As primeiras casas provavelmente eram de madeira e tinham o paiol, que era típico da Itália do Norte. Em 1912, o escritor Nestor Vítor visitou Curitiba e ficou admirado com as casas que pareciam palacetes, os pórticos e a riqueza da colônia”, conta o arquiteto Fabio Domingos, autor do livro Arquitetura Italiana em Curitiba.

Hoje, muitas dessas construções se perderam, enquanto outras estão em ruínas. A Casa dos Gerânios, o Pantheon do cemitério de Santa Felicidade e a Igreja de São José com o campanário separado do edifício, que segue o estilo típico do Vêneto, região italiana de onde veio a maioria dos imigrantes, são os melhores exemplos da arquitetura itálica do bairro.

“Hoje [Santa Felicidade] parece um pouco Las Vegas. A arquitetura original está meio perdida e abandonada na malha urbana e não tem tanta relação”, diz o arquiteto. Segundo ele, restaurantes que imitam castelinhos ou construções greco-romanas querem estabelecer uma ligação imaginária e onírica com o passado italiano.

Após a fundação em 1878, Santa Felicidade permaneceu por décadas como uma colônia isolada e distante do centro de Curitiba. Por ser um celeiro de frutas e verduras, todo dia, ao amanhecer, uma procissão de mulheres com suas carroças descia do bairro para vender hortifrúti na região central.

A partir da década de 1960, quando surgiram os primeiros restaurantes, o movimento se inverteu. Moradores dos outros bairros começaram a se deslocar até Santa Felicidade para comer polenta frita, risoto de galinha, frango com polenta e toda a fartura da cozinha dos imigrantes italianos.

Naquela época, o bairro era cortado pela rodovia que ligava a capital ao Norte do estado e os primeiros restaurantes nasceram para atender os viajantes. A gastronomia foi ganhando espaço e Santa Felicidade se tornou um bairro turístico.

Na década de 1980, quando Beto era uma criança, o bairro alcançou seu auge turístico, mas ainda mantinha algumas características históricas como lojas de artesanatos, açougues, mercearias que vendiam de tudo um pouco, e vinícolas, cuja elaboração dos vinhos remontava aos primórdios da região.

“A prosperidade chamou a atenção da grande indústria e, de repente, as cadeiras de vime deram lugar para mesas, guarda-sóis e cadeiras de plástico coloridas: Skol, Antarctica, Brahma. As placas nas fachadas eram 50% da bebida e 50% do comércio, o que ajudou muito para destruir nossa identidade. Aos poucos o bairro foi perdendo a ‘italianice’”, avalia.

Após assumir a presidência da Associação do Comércio de Santa Felicidade, em 2004, Beto se engajou no resgate e preservação da identidade italiana, mas sem muito sucesso.

“Fui inúmeras vezes na Prefeitura, no Conselho de Urbanismo e no Ippuc [Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba] para encontrar uma solução. A ideia era formar um conselho de arquitetos que aprovassem os projetos dos comércios num trecho da Manoel Ribas. Em troca os comerciantes receberiam algum benefício, como desconto no IPTU. Nunca conseguimos avançar e deu no que deu”, lamenta.

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