Por que o pescado paranaense não sobe a serra?

O foco no agronegócio pode ser uma das explicações para a baixa procura pelo pescado paranaense

“Madrid é o melhor porto da Espanha” dizem os habitantes da segunda maior região metropolitana da União Europeia. A cidade, centrada na região ibérica, a quase setecentos metros de altura, é claro, não está perto dos mares que banham a Europa, no entanto, seus habitantes são orgulhosos em dizer e comprovar que tem os melhores pescados que se possam fisgar pela península. Já de clima muito parecido, mas longe de vencer o monopólio da carne, polenta, massa e frango frito, Curitiba goza de muito maior proximidade ao oceano que a capital espanhola, no entanto, mucho pescado por aqui no hay! Com litoral relativamente extenso, tradição em pesca e tecnologias caiçaras autênticas, o Paraná e sua capital poderiam estar em situação muito diferente da que se encontram com relação ao consumo de frutos do mar, mas afinal: por que o pescado paranaense não sobe a serra?

Bryan Muller, oceanógrafo nascido em Santa Catarina, radicado por essas bandas, idealizador do Projeto/Empresa, Olha o Peixe, me recebeu em Pontal do Paraná para mais um dia formidável à beira mar. Toda vez que eu vou até o litoral me encho de surpresas agradabilíssimas. A inesquecível história de Dona Conceição de Guaraguaçu e sua Cambira ainda reverbera na minha cabeça, me deixando com desejo de conhecer muito mais sobre essa região tão perto geograficamente mas tão longe do imaginário paranaense no geral.

A empresa de Bryan trabalha conectando os pescadores artesanais do litoral com os seus clientes finais em Curitiba e região metropolitana. Não só isso, seu projeto tenta promover mais conhecimento e valorização da pesca artesanal através das informações que divulga, além de garantir uma remuneração justa para os pescadores – deixando-os menos à mercê de atravessadores e da sazonalidade. Me encontrei com o empresário no Balneário Ipanema, mais precisamente em uma vila de pescadores onde pude acompanhar a limpa do camarão sete barbas, recém pescado. Janaina, umas das mulheres dos pescadores que se dedicam ao beneficiamento do pescado, me conta que acha o trabalho desenvolvido pela empresa muito bom. “A vida melhorou, o trabalho está sendo mais valorizado, tanto para o pescador quanto para a gente que fica aqui na limpeza do peixe. Temos a renda dos dois lados: tanto na pesca quanto no preparo do filé, do camarão”, completa, entusiasmada.

Chegada a hora do almoço, vamos até um restaurante nas proximidades. Lá conheço Tatiane Niero, chef de Cozinha do Manaká Restô Bar, há quatro anos em Pontal do Paraná, vinda de Curitiba, comanda o restaurante de menu autoral que utiliza fartamente insumos locais. O intuito era entender a demanda pelo pescado do litoral e a cozinheira, de risada larga e fácil (meu tipo de pessoa) me explica que a procura pelos frutos do mar, de maneira geral, na alta temporada, é grande. Já na baixa, os hábitos de consumo do turista de mais perto, paranaense, e do morador local, se parecem aos da capital, com muito pouca preferência pelo que vem do mar. “Na baixa temporada o consumo de peixe se fecha um pouco numa clientela mais velha, clientes que tem por volta de 40 anos para cima. A galera mais nova, pede frango, bife, hambúrguer, porção de batatinha, de polenta e fica nessa”, me conta. Quando lhe pergunto sobre o porquê dessa preferência demograficamente localizada, a cozinheira brinca: “eu acho que é por conta da espinha no peixe (risos)”.

De barriga cheia, rumamos com destino a Cabaraquara, às margens da baía de Guaratuba, para conhecer o Sítio Sambaqui e sua produção de ostras nativas. Devidamente acomodados ao chegar, Bryan e eu começamos a conversar sobre a falta de interesse sistemático pelo pescado do litoral do Paraná e o oceanógrafo teoriza que há uma soma de fatores responsável por essa indiferença, como por exemplo: o lobby imposto por outros produtos (salmão, tilápia), a falta de conhecimento da população sobre a pesca artesanal e a dependência dos pescadores ao trabalho dos atravessadores. “Talvez seja até um ciclo, o cliente não conhece e não compra e se não compra não tem demanda para o atravessador levar, por conseguinte o cliente não conhece o produto e assim vai”, completa o empresário.

Isso não quer dizer que não haja um movimento para mudar essa situação. O próprio catarinense tenta romper essa repetição, pois tem certeza de que as pessoas não consomem o pescado paranaense, não por este ser de baixa qualidade ou sabor aquém da expectativa, para ele, tem muito mais a ver com falta informação. “A pesca artesanal, ao contrário do que muita gente acha, não é uma pescaria mais suja ou desorganizada, é o inverso. É uma pescaria que tem produtos de melhor qualidade porque ela é diária, produtos mais frescos, às vezes até vivos. Além disso ela possui um forte valor sócio-cultural que precisa ser percebido e valorizado”, exemplifica o dono da Olha o Peixe.

Nereu Oliveira, proprietário e chef de cozinha do Sítio Sambaqui, se juntou a nós, depois de trazer suas maravilhosas ostras recém colhidas e servidas enquanto conversávamos. O ex-advogado me conta que chegou naquelas bandas há 17 anos e começou o cultivo da ostra nativa como autodidata. Porém, acrescentando uma camada a mais de complexidade ao fato do Paraná preterir seu litoral, me conta que com relação ao apoio que encontrou, muito pouco veio do governo, sendo o suporte encontrado oriundo muito mais das universidades e centros de estudo que se dedicam ao estudo da ostra. “Na verdade existiu uma política de desenvolvimento da aquicultura como um todo num passado recente com o ministério da pesca”, diz o empresário sobre a situação governamental do setor, “Hoje em dia já não existe mais nada. Nas trocas dos últimos presidentes as coisas vieram se diluindo e se perdendo”, conclui.

Não é segredo que o estado do Paraná aposta no agronegócio como a sua menina dos olhos. Bryan acredita que o estado não possua uma vertente pesqueira, como há em Santa Catarina, porque o foco sempre foi o agronegócio. “Não há um trabalho de base, de orientação ou alocação de recursos para os pescadores regularizarem a sua profissão de pescador. É um problema também governamental e estrutural”, me conta. “A FAO que é o braço da ONU para alimentação do mundo vem dizendo para os países em desenvolvimento investirem na aquicultura, na produção de proteína para consumo humano de peixe, camarão, ostra, marisco, polvo, alga, tudo isso. Temos uma costa gigantesca e produzimos menos pescado que o Peru”, adiciona Nereu.

Não me estranha o distanciamento do consumo comum à origem de diversos gêneros alimentícios. Com toda a plastificação sofrida pelos alimentos nas gôndolas dos supermercados, os “jovens” – e não só eles – já sequer esperam que animais vertebrados tenham ossos (“espinhas”), e seu paladar, criado a base do consumo de no máximo duas espécies de peixes congelados e produtos que substituem a carne de pescado por compostos ultraprocessados, coloridos e saborizados artificialmente, já não identificam consumos possíveis fora dos embalados industriais. Além disso, infelizmente o tema recorrente da falta de educação em consumo e o falacioso agronegócio, promovido tanto pelo governo federal, quanto pelo estadual, sequestram as atenções e contribuem com o jogo da colonização de paladares rumo a uma alimentação onde já não se distinguem os alimentos em suas origens.

Por conta desta falta de zelo e cuidado com o nosso meio ambiente, nossos povos e é claro, com nós mesmos, nos deixamos perder na miríade de modismos comerciais, vendidos como escolha, porém sabidamente renúncia, quando nos assola a falta de tempo nas compras corridas nos supermercados. A troca, a informação, a experiência, vai ficando para trás, na medida em que a figura do peixeiro ou pescador, literal e simbolicamente, vai esmaecendo com o passar do tempo. E o tesouro que é o litoral paranaense e brasileiro, vai ficando cada vez mais distante da nossa vida urbana, insossa, industrializada e muito pouco saudável.

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