Já experimentou Cambira?

A nossa eterna busca eurocêntrica por padrões estilísticos nos faz vítimas de uma miopia que constantemente nos desvaloriza enquanto nação e nos confunde na busca de uma gastronomia legitimamente brasileira

Gratidão, que significa a qualidade de quem é grato, implica ação, ser, reconhecer. Gratidão também é agradecimento a quem algo nos presta. Tive uma grata surpresa no final de semana passado, portanto, muito obrigado pelo convite, Zelig e prefeitura de Pontal do Paraná. Conhecer mais sobre a vida caiçara do nosso litoral foi uma experiência inesquecível. Nos inegavelmente difíceis tempos em que vivemos, ser grato tem sido uma de minhas estratégias para segurar o rojão. Sabedoria milenar dizem por aí, “já dizia Jesus”, diria a minha avó, o fato é que a gratidão colocada em prática gera benefícios para saúde física, mental e cria resiliência. Qualidade que pude testemunhar em abundância entre o povo do litoral e suas tradições ao visitar o Primeiro Festival de Comida Caiçara.

Com 16 restaurantes participantes e diversos pratos oferecidos, o evento tem como estrela principal a Cambira, guisado de tainha defumada e salgada com banana e pirão de peixe, patrimônio do litoral e prato oficial do município desde 2006.  Assim como muitas técnicas antigas de conservação mundo afora, a defumação e salga da tainha nascem da necessidade da conservação do peixe para a subsistência de povos regionais. Eu aprendi essa receita com o meu pai (Cambira), nós colhíamos tudo que havia na nossa horta: tomate, cebolinha verde, salsa, banana e usávamos para fazer a receita. Fazíamos a receita com o que tínhamos disponível. Era um modo de sobrevivência”, me conta Dona Conceição, caiçara de nascença, proprietária do Café Caiçara de Guaraguaçu e moradora da localidade às margens do rio de mesmo nome.

Dona Conceição.

A ribeira que o pai de Dona Conceição conheceu quando ali fincou residência, com mais três outras famílias, era muito diferente do que se vê hoje. A preferência por instalar-se ali se deu justamente por poder utilizar o fluxo d’água que, além de fornecer subsistência, servia como rota de barco para Paranaguá, onde fazia escambo com o que se adquiria da natureza e excedentes das pequenas colheitas particulares. “Ainda tínhamos frutas como o abacaxi, café, além da caça e outros peixes. Havia veado, cateto, capivara… Meu deus, eles corriam por aqui (apontando para a estrada defronte ao seu restaurante) de tanto que tinha.”

Se dá o nome de caiçaras aos habitantes tradicionais do litoral dos estados do sudeste e sul do Brasil que compartilham a mesma formação demográfica – índios, negros e brancos -, cultura e saberes ligados à pesca artesanal, agricultura, caça, extrativismo e artesanato. A Cambira, prato tradicional que estava sendo preparado enquanto conversávamos é fruto dessa herança. “Desde pequena eu comia a Cambira. Quando eu nasci minha mãe contava que não tinha leite e pegava lascas do peixe seco do fumeiro (onde se defuma a tainha), tirava um pouco do sal, fazia um pirão escaldado com farinha de mandioca (produzida pela família) e dava para nós, bebês ainda. Nós nos criamos assim. A defumação da Tainha começou porque você só tinha algo no dia para comer, se você não cuidasse do peixe, você não o teria para amanhã. Dura um ano se você salgar e defumar o peixe. Meus pais aprenderam isso com os índios. Tudo que eles matavam eles colocavam em cima do fumeiro, para conservar os alimentos e sobreviver.”

Não é só o feitio da Cambira que permanece autêntico, a própria pesca da tainha usada nas receitas do litoral é feita de maneira artesanal. Ao final da orla de Pontal do Paraná, acerca de onde saem os barcos que levam turistas para a Ilha do Mel, está localizada a Praia Mansa. O retiro menos famoso, que pode ser visto diametralmente oposto à praia de Encantadas da ilha, abriga um dos acampamentos dos caiçaras responsáveis pela pesca sazonal do peixe. Leandro da Silva Egídio é um dos pescadores acampados e me conta: “Sou nativo de Pontal, pesco desde criança. Esse ponto aqui era do meu vô, e haviam outros donos em volta. Quando eles faleceram, nos unimos. São mais ou menos quinze famílias. Passamos 90 dias aqui por temporada, do dia primeiro de maio até o dia trinta e um de julho. Acabou a licença, desmontamos tudo e saímos. A gente fica aqui mesmo na praia. Fazemos as barracas e dormimos aqui. Esses três meses são sagrados para nós”, explica Leandro.

Praia Mansa, em Pontal do Paraná.

A pesca artesanal não é serviço para piá de prédio, como dizem cá por essas bandas. O “olheiro”, pescador responsável por localizar os cardumes de peixes, passa o dia inteiro em um palanque olhando para água atrás de movimentação. Quando ele a avista, os canoeiros se lançam na água de modo a cercar o cardume com suas redes. Feito o cerco, toda a armadilha deve ser retirada da água pela força dos braços dos pescadores.  “Trabalhamos desde cedo, até escurecer mesmo. Enquanto o olheiro conseguir enxergar o mar ele tá ali de pé. O trabalho não é fácil, o frio é difícil. Em junho fica bem difícil entrar na água. Mas todo mundo ajuda. Todos entram na água para fazer o cerco, ficam em terra puxando, todo mundo ajuda a movimentar, lavar o peixe, buscar água. É um trabalho bem unido. Na hora que o bicho pega, todo mundo ajuda”, explica Leandro.

Os peixes, após deixarem a água, são triados e seguem para serem limpos ou vendidos inteiros. Dependendo das quantidades, há tipos de divisões diferentes, mas sempre equitativas entre os partícipes. “Quando a gente pega muito peixe (às vezes são de 3 a 4 toneladas retiradas numa única incursão) fica ruim para dividir, a gente acha um comprador e eles vêm e levam tudo. Como a gente não tem onde armazenar, não tem uma câmara fria, a gente tem que vender rapidinho. Colocamos no gelo aqui mesmo na praia até o pessoal chegar e levar. Pesamos a tainha, e daí dividimos depois o dinheiro. Quando é em menor quantidade, nós dividimos o peixe entre nós mesmos. Daí cada um dá o destino que quiser: vendemos ele fresco para compradores esporádicos, menores, secamos um pouco para fazer Cambira, vendemos assim também”, diz.  No entanto, foi um tanto frustrante saber que a maioria do peixe vai para o estado de Santa Catarina: “Quando vendemos no atacado, geralmente é para gente de Santa Catarina. É muito raro vender para Curitiba, é mais turista e em pouca quantidade que compram”, revela o pescador.

Leandro Egídio.

No final de nosso papo, Leandro me confessa que seu prato favorito de tainha é ela fresca e ensopada, porém, de volta ao Café Caiçara, eu não poderia estar mais curioso para provar tudo que a cozinheira tarimbada nos preparava com as tainhas defumadas. Transformadas em Cambira tradicional e bolinho de mandioca com peixe desfiado, Dona Conceição nos serve suas iguarias feitas com esse ingrediente tão estupendo. Fico absolutamente estupefato com a riqueza de sabores e lhe pergunto se por um acaso ela saberia me dizer porque sua cozinha não é tão conhecida fora da localidade. “Não há tanta valorização porque é um prato simples, é uma moradora do Guaraguaçu, é um povo caiçara, eu imagino. Agora, seu eu fosse um grande chef, com comida importante, daí sim.” Aqui eu tenho que discordar de minha anfitriã, seu prato não tem nada de simples. Ele carrega a herança dos povos originários deste país. Sua cozinha tem engenhosidade, originalidade, sabor, autenticidade e uma história orgânica de luta. Se há algo que não se pode dizer sobre a Cambira de Pontal, é que ela é um prato simples.

Numa coisa concordamos, no entanto: falta incentivo. “Eu penso assim, se essa é uma cultura que deveria ser valorizada, nós tínhamos que ter ajuda. Eu, Dona Conceição, uma caiçara moradora do Guaraguaçu, fazendo um peixe seco no feijão, ou na banana, você acha que se não fosse essa divulgação seria valorizado? Não seria. Precisa de mais gente, mais gente que tenha sabedoria, que saiba trabalhar na propagação dessa cultura“, reflete a cozinheira.  Tal qual a caiçara, me parece urgente que nós deste país comecemos a olhar para a nossa cultura de forma a valorizá-la melhor. O Festival de Comida Caiçara é uma oportunidade muito bem vista pela cozinheira: “Ficamos muito felizes com essa decisão das entidades e do prefeito de trazer a nossa cultura ao conhecimento do público. Eu estou muito feliz, parece um sonho. Toda a vida nós batalhamos para que isso um dia viesse a ser conhecido”, comemora.

Tainha sendo defumada.

A nossa eterna busca eurocêntrica por padrões estilísticos nos faz vítimas de uma miopia que constantemente nos desvaloriza enquanto nação e nos confunde na busca de uma gastronomia legitimamente brasileira. Não há motivo lógico para enveredar numa culinária que valorize gravlax ou bacalhau quando debaixo de nossos narizes curitibanos, em sentido nem tão figurado assim, temos a elaboração de produtos autênticos, com tradição, história e componentes de qualidade a fazer chef nenhum pôr defeitos. O que nos ocorre como de costume, é uma hierarquização – muito ufano-ítalo-brasileira diga-se de passagem – que coloca nosso próprio povo como menor, ou simples, ao passo em que fazemos das tripas coração para seguir receitas e consumir produtos que sequer podemos convencionar ou reproduzir em território nacional.

Já passou da hora de valorizarmos a nossa produção autêntica e repudiar alcunhas de “menor”, “simples”, “exótico”. Nada pode ser mais estranho que comer caracóis e fígados de aves necrosados e mesmo assim, as recusas reiteradas a olhar para dentro com a mesma admiração com que se olha para fora continuam predominantes entre chefs e consumidores locais. Na análise de nossas neuroses somos pura falta de gratidão, ansiedade e busca por padrões inalcançáveis, não por falta de capacidade mas por um imaturo desajuste de expectativas.

“Foi o começo de tudo, o começo de uma geração.  De tudo foi tirado conhecimento daquela época. Para eles verem como era difícil e a gente era feliz.”  Me responde Dona Conceição, representante dos povos originários que é, quando lhe pergunto: qual seria a importância para os outros o conhecimento de sua cultura? E completa: “Não colocamos a culpa em ninguém. Nós sobrevivemos com o que tínhamos e é muito importante que eles saibam que você nunca pode perder a esperança, o hábito de você plantar para sobreviver, não viver só de comprar. É importante que seja passado para as próximas gerações, porque tem muita criança que nem sabe de onde veio um pé de cenoura, ou um pé de salsa. A pessoa tem que ter esse conhecimento: o que é uma árvore nativa, que cuidado nós temos que ter com o meio ambiente… Porque ele é nossa respiração, é o amor pelos animais, por tudo. A tudo que vive devemos respeito. Meu pai nos ensinou que tínhamos que nos contentar e respeitar o que nós tínhamos, nós nunca podíamos pegar uma fruta do pé de uma árvore do nosso vizinhos. Se nós quiséssemos, nós tínhamos que pedir. Aquilo não era nosso, não custou o nosso esforço. Eu aprendi com ele que você tem que ser feliz com o pouco que você tem. Nunca ter inveja daquele que tem mais que você. Se você quiser ter mais, então trabalhe, se você tiver oportunidade você constrói. Nossa cultura é isso!“.

Volto mais rico dessa viagem e com a certeza de que o Brasil é um país maravilhoso, ainda que sejamos muito ingratos com a nossa cultura. Devemos ser mais sensíveis e agradecidos às lições que nosso povo vem tentando nos ensinar desde 1500 e que apesar de tudo, se negou a desistir, persistindo em ser gratos pelo que tem, pela maneira que vive e pelo o que a terra e o mar lhes dão. Viva a cultura caiçara e vida longa ao festival de sua gastronomia!

Sobre o/a autor/a

Compartilhe:

Leia também

O (des)encontro com Têmis

Têmis gostaria de ir ao encontro de Maria, uma jovem vítima de violência doméstica, mas o Brasil foi o grande responsável pelo desencontro

Leia mais »

Melhor jornal de Curitiba

Assine e apoie

Assinantes recebem nossa newsletter exclusiva

Rolar para cima