Comida para o fim de uma pandemia (IV)

Fernanda Lazzari, sommelier de cerveja, afirma que os clientes estão mais especializados na bebida, o que exige mais dos bares e cervejarias

Chego finalmente a minha última entrevistada nesta série, que tanto prazer me trouxe, sobre as possíveis tendências neste mundo pós-pandêmico que nos aproxima. O assunto é cerveja e Fernanda Lazzari, engenheira agrônoma, proprietária da Morada Companhia Etílica e sommelier pela Associação Brasileira de Sommeliers, nos trouxe uma ótima reflexão sobre o setor e, com muito bom humor, prova que lugar de mulher, além de onde ela quiser, é no mercado cervejeiro também! “O ser humano desde que é ser humano quer se juntar para tomar álcool. Isso não muda, é inerente ao que a gente faz. Pense nos caras que fazem tequila: o desespero que a pessoa tem que estar para descobrir que tem que colher aquele cacto, fazer um buraco no chão, colocar fogo, depositar o cacto lá, esperar três dias, tirar do buraco, cozinhar, destilar… O cara tem que estar muito desesperado para tomar um gole, sabe?”, brinca a cervejeira.

A pandemia trouxe muitas mudanças e é claro que com o fervilhante mercado de cervejas de Curitiba não seria diferente. Com a óbvia restrição do consumo da bebida nos seus regulares bares, tanto cervejeiros, como clientes se voltaram ao autoatendimento (supermercados) para conseguir manter o hábito de umas cervejinhas semanais. Neste deslocamento de oferta, o uso do growler (recipiente característico para o envase de cervejas) explodiu, consolidando-se como forma de venda bastante usual, aportando uma boa razão entre custo, benefício e praticidade. “As lojas online das cervejarias também continuam, porque essa história de você estar sentado na sua casa, comprar do seu computador e o produto aparecer, a gente não perde mesmo com o retorno dos bares e restaurantes. Nem a pira do growler. Eu vejo várias cervejarias que tinham garrafas em autosserviço (supermercados) e agora estão com growlers vendendo mais do que as garrafas”, me explica a empresária.

Fernanda analisa dois critérios que podem fazer com que o consumo alcoólico seja um pouco mais especializado. Um deles, me conta, é o aumento súbito na procura por cursos. “Os cursos de sommelier, os cursos de cerveja, os não presenciais, ou semipresenciais, cresceram muito. Em especial os semipresenciais que você tem a aula teórica no computador e depois você aparece duas, três vezes para fazer a aula prática. Esses bombaram de um jeito inacreditável. Com certeza o resultado serão mais pessoas preparadas para bebidas em geral. Elas terão mais noção do que estão provando, do que está acontecendo, quais são as tendências e etc…”, completa.

Outro quesito apontado é oriundo da nossa própria dinâmica de clausura. A sommelier acredita que depois de tanto tempo em casa, aprendemos a valorizar mais insumos, produtos e coisas que nos rodeiam no dia a dia. “Acho que as pessoas, por terem passado tanto tempo em casa, tendo que cozinhar, limpar e fazer tudo sozinhas, vão dar um pouco mais de valor para algumas coisas. A gastronomia vai ser mais valorizada. Não que as pessoas tenham mais dinheiro para gastar em gastronomia, mas elas entenderam o seu custo e o seu valor, assim como o de uma boa cerveja, de um bom vinho, de uma bebida talvez um pouco melhor”, aponta a empresária.

Para Fernanda, a soma desses dois fatores vai fomentar melhorias gerais no mercado da cerveja artesanal. “As pessoas estão voltando mais preparadas. Há mais clientes altamente preparados chegando aos bares e cervejarias. Eles sabem o que gostam, sabem o que eles não gostam, sabem se uma cerveja está estragada ou não. Então isso faz com que os bares e as cervejarias tenham que melhorar também. Acho que estamos numa ascendente de especialização. Sempre vamos ter muita coisa ruim, isso não vai deixar de acontecer, sempre vamos ter gente que não sabe do que tá falando, isso acontece, mas vejo que as pessoas estão mais especializadas e os bares e cervejarias estão acompanhando isso, treinando melhor os funcionários e se preparando de uma maneira geral”, conclui. 

A Morada é famosa por sua inventividade. Como diz em seu website, a monotonia da zona de conforto é seu inferno ideológico. Portanto, eu não poderia deixar de conversar com a sua criadora sobre sabores e tendências de rótulos para os anos que se seguem. Com muito bom humor, Fernanda me conta que “o pessoal fala muito na tendência da volta das lagers, cervejas mais delicadas e mais leves, depois dessa mania louca de milk-shake-double-triple-peanut-butter-oat-meal-stout. Essas loucuras (se referindo às cervejas extremamente encorpadas e complexas) são quase uma sobremesa de tão pesadas e calóricas. Houve um momento em que quanto mais extrema (a cerveja), melhor. Eu pessoalmente acho isso muito cansativo, além de não ser equilibrado, não é gostoso, é difícil de fazer e a estabilidade desses produtos é algo muito complicado. E é isso, o cara toma meio copo e não quer mais”, diz Fernanda.

As famosas Indian Pale Ales e suas variações, cervejas de amargor acentuado originárias da Inglaterra, há dois séculos correspondem a um estilo muito famoso por essas bandas e de grande aceitação. Fernanda não acha que a predileção pelo estilo vá diminuir, mas estaremos trabalhando no extremo mais leve de suas variações. “Acho que o povo não vai deixar de tomar ipa (Indian Pale Ales) para tomar lager, não é isso, mas acho que essas cervejas superfortes, superintensas, superpesadas, não se sustentam só pela moda. Acho que no dia a dia as pessoas querem um copo de chope agradável, que não seja para ficar pensando no que você tá tomando. Uma coisa mais delicada e mais leve, cervejas até mais lupuladas, mas mais leves. Caem as linhas imperial e double IPAs (cervejas mais alcoólicas e amargas). Cervejas mais fáceis de tomar, cervejas que as pessoas possam tomar em maior quantidade e serem mais felizes.”

A fruição está em alta. Na última coluna, Wagner Gabardo nos contava uma história muito similar com relação ao consumo de vinho. Aparentemente descomplicar é também tendência no mundo das cervejas. Os próximos tempos prometem um consumo de bebidas alcoólicas não mais como o protagonismo adorado, interposto às relações humanas das reuniões, mas sim como o coadjuvante que azeita o principal, viver em comunhão, matando as saudades depois de tanto tempo distantes. O futuro promete combater a carência de afeição pela qual fomos forçosamente conduzidos nos últimos tempos. E não vai ter lugar melhor para fazê-lo que não em bares, restaurantes, com boa comida e bebida.

Que venham os novos tempos!

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