Comida para o fim de uma pandemia (III)

O sommelier e educador Wagner Gabardo vê bons caminhos para o vinho nacional nos próximos anos

Não há espécie na natureza que goste mais de brincar com alterações do estado de consciência do que nós. Há quem diga por exemplo, que a invenção do capitalismo global se deu por conta do aumento do consumo de café, agitando nossos cérebros, pelo mundo. Menos financeira e bem mais recreativa, essa nossa incrível mania de experimentar sensações tem um ponto comum materializado na forma de nossa droga preferida: o álcool. Nas últimas duas colunas desta série, vamos dedicar-nos a essas bebidas que há tempos estão incorporadas em nossas vidas, mercados e hábitos culturais (para os maiores de 18 anos, é claro).

Comecemos com a mais icônica, aquela que até reconhecimento religioso possui. Entre alguns cristãos, a transubstanciação é a própria manifestação do corpo e sangue de Cristo através do pão e do vinho. De importância secular e inegável, esta bebida composta pela fermentação de uvas, está presente em representações de crenças, desde a cultura greco-romana. O culto começa através do deus grego Dionísio que mais tarde é assimilado pela cultura romana como Baco, o deus também dos excessos, da ebriedade e do teatro.

De volta aos nossos tempos pandêmicos, o vinho não deixou de ganhar destaque. De fato, houve um aumento considerável no seu consumo aqui no Brasil, fazendo com que 2020 tenha sido o ano de maior consumo de vinho de todos os tempos. Não só isso, há quem diga que 2021 vá superar essa marca. Meu entrevistado, Wagner Gabardo, sommelier, educador, empresário de currículo invejável e proprietário da escola Alta Gama, dedicada à difusão da cultura do vinho, vê bons caminhos para o vinho nacional daqui para a frente. “A primeira coisa que a pandemia nos mostrou é a importância do consumo local, da gente ajudar e valorizar aquilo que tá mais próximo da gente na cadeia alimentar como um todo. Nas escolhas que a gente faz. Houve um crescimento bem grande no consumo de vinho nacional nestes anos de pandemia e eu acredito que isso vá aumentar.”

Nesta altura da nossa série sobre previsões, começamos a ver que certas tendências estão se mostrando mais abrangentes do que se poderia esperar. Preferir programas ao ar livre, aparentemente está aqui para ficar. “A experiência ao ar livre ganhou um grande valor para nós. Nos dá segurança e queremos ter esses momentos de sair de casa e relaxar, não é? Eu aposto no crescimento do enoturismo na região metropolitana de Curitiba. A gente tem, só num raio de 30km no máximo, opções de enoturismo em Campo Largo, São José dos Pinhais, Colombo, Piraquara, Quatro Barras, com atividades ao ar livre como visitas a vinhedos, vinícolas, picnic ou restaurantes mais amplos, com áreas abertas. É algo que eu gostaria muito que acontecesse e percebo que tem crescido: as pessoas procurarem essas experiências no final de semana e curtirem o dia numa vinícola”, completa o sommelier.

O empresário me conta que o Brasil passou por um problema geral de falta de garrafas durante a pandemia e isso, impulsionado também pela tentativa de angariar mais do público jovem, fez com que a indústria vinícola investisse em novas formas de servir o vinho, como em latas por exemplo. Mira-se num consumo mais informal, seja na balada, na praia ou em bares. Além de ver potencial de crescimento, Wagner observa outra tendência relacionada. “Outra aposta minha é a consolidação dos bares de vinho e não bares de vinho com ares sofisticados, restritivos e caros. Se a gente pensar que há quase cinco anos atrás não se tinha opção para um happy hour, tomando um vinho, num bar, hoje em dia você tem vários e, inclusive, você tem bares de vinho voltados para esse público jovem que quer pagar um valor acessível numa taça, numa garrafa, etc”, conclui.

Nesta mesma pegada de despir o vinho de sua pompa ritualista, o sommelier também aponta para “um consumo cada vez mais relaxado e descomplicado”. E completa com seu palpite para o mercado de espumantes: “têm surgido alguns vinhos espumantes nacionais e importados de uvas aromáticas que são sugeridos para serem consumidos com gelo. Acho que o espumante com gelo é uma forma de consumir super válida e que as pessoas vão começar a se habituarem mais”, sinaliza nosso especialista.

Outra novidade se refere aos vinhos rosés que vêm ganhando espaço nas prateleiras dos supermercados e lojas especializadas. Eles não devem representar uma moda passageira, à medida que as pessoas percebem cada vez mais a sua versatilidade em harmonizações gastronômicas. Já, em se tratando de vinhos de preço mais elevado, o sommelier sinaliza um aumento tanto da inventividade quanto da autenticidade destes produtos. ”Vejo também um crescimento da produção dos vinhos orgânicos e naturais, que são aqueles vinhos com baixa intervenção enológica, vinhos mais transparentes, sem muita maquiagem, sem muita madeira, enfim… Vinhos mais autênticos, de uvas diferentes, que o consumidor não conhece. Percebemos nesses vinhos valores a partir de uns R$ 70,00, que começa a aparecer muita coisa nova, muita inovação, sobretudo nos vinhos importados.”

A impressão que fica é que, em nosso futuro etílico, o vinho passará de um consumo de ocasião para um consumo mais corriqueiro. Se antes, impulsionados pelos reality shows gastronômicos, tudo parecia girar em torno de análises de paladar elaboradas, agora o vinho parece ser companhia até para uma cadeira de praia, sol e mar, deixando para lá a mimética ritualística de entendidos em degustações. Saímos de uma ditadura de sacrilégios na forma de consumir a bebida, com muitos pecados a serem evitados e partimos para o vinho como companheiro de celebrações. O fim da pandemia parece estar abrindo espaço para Baco na nossa cultura judaico-cristã. Acredito que até desculpando alguns excessos catárticos mundanos. Mal posso esperar que comecem os bacanais!

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