Algo mais que fora do tempo

A produção fonográfica era uma parte dentre tantas outras que integravam a cultural musical do jazz, e seu desenvolvimento esteve a todo tempo associado ao consumo, à invenção e repercussão das modas, aos léxicos e mesmo às facilitações no repertório.

Num famoso ensaio escrito no início dos anos 1950, o filósofo alemão Theodor Adorno (1903-1969), que anos antes havia migrado para os Estados Unidos em virtude da II Guerra Mundial, teceu um punhado de considerações sobre o jazz. No texto “Moda sem tempo: sobre o jazz”, publicado em 1955 numa coletânea de ensaios intitulada Prismas: Crítica da Cultura e Sociedade, apresentou alguns apontamentos que até hoje reacendem debates não só em torno da chamada teoria crítica, mas do próprio jazz. Nesse ensaio, Adorno dizia, entre outras coisas, que “o jazz é apenas uma maneira de interpretação, e como ocorre em toda moda, trata-se de enunciação e não da coisa; o que se faz é um tipo de música fácil, dos mais insossos produtos da indústria da canção”. Sua assertividade é severa e assusta mesmo o leitor mais desavisado. Por isso, há aqueles que acusam-no de hermetismo pela rigidez do seu sistema analítico, ou de possuir pouca intimidade com a cultura juvenil norte-americana no pós-guerra. Há outros, entretanto, que sustentam a argumentação adorniana e demonstram como sua análise correspondia a uma determinada forma de apreensão dos objetos culturais no processo de circulação de mercadoria no interior do sistema capitalista.

Sem adentrar no mérito e nos termos das abordagens, penso que é seguro dizer que Adorno estava certo e errado. Sim, porque ao asseverar que o jazz é apenas uma “maneira de interpretação” (representação?), para ele essa forma musical não é capaz de falar das “coisas em si”, mas apenas enunciá-las ou apresentá-las. Trocando em miúdos: a Música (com “m” maiúsculo) era considerada por Adorno como um repositório estético no qual todas as grandes conquistas do projeto intelectual da modernidade estariam encerradas. Não por acaso, Adorno como rigoroso leitor de G.W.F. Hegel (1770-1831), emulava as categorias estéticas do sistema hegeliano, que atribuía à música a primazia da racionalidade – aquela capaz reconstruir noções de totalidade do pensamento e da ação que outras formas artísticas eram incapazes de formular.

O filósofo Theodor Adorno (1903-1969) também era musicólogo e compositor.

Certo, mas o que isso tem a ver com o jazz? Nada. Porque Adorno volta-se para o jazz procurando encontrar nele os vestígios da “grande arte” moderna, da música como realização do espírito da modernidade, estruturado racional e sistemicamente. Mas ao se deparar com o jazz norte-americano, dos jingles da TV e do rádio que vendiam de sabonetes, shampoos a perfumes, carros e felicidade, o filósofo encontrou apenas isso: subprodutos do mercado e da moda que apresentam as estruturas de reprodução, mas não as enfrenta. Aqui está a restrição de Adorno, posto que o jazz não surgiu com esse propósito epistêmico vislumbrado pelo filósofo, ao menos nesse ensaio. Já o acerto de sua análise está na segunda parte da sentença: “o que se faz é um tipo de música fácil, dos mais insossos produtos da indústria da canção”. Ora, é evidente que o jazz em todo seu acidentado trajeto resultou num desenvolvimento sui generis da música, já que a musicalidade do jazz, sobretudo a partir dos anos 1950, interseccionou diferentes esferas da vida social e remodelou as relações de produção cultural no século XX. A produção musical ou fonográfica era uma parte dentre tantas outras que integravam a cultura musical e performática do jazz. Seu desenvolvimento esteve a todo tempo atrelado ao movimento do consumo, à criação e repercussão das modas, aos léxicos e mesmo à facilitação do repertório. A prática da reprodução dos standards visava exatamente a elaboração de uma música “música fácil” que visava integrar o cenário dos “produtos mais insossos da indústria da canção”. Porque o jazz, conforme afirmava o historiador britânico Eric Hobsbawm, “não é apenas uma forma de fazer música, mas também uma forma de fazer lucros. O que o amante de jazz escuta, portanto, depende não apenas das necessidades criativas dos músicos e de outras variáveis do gênero, mas também da maneira como o jazz se organiza enquanto negócio”.            

E há inúmeros exemplos que corroboram com essa argumentação. Vamos aqui a dois deles. Dois “clássicos” do jazz produzidos na década de 1950 que se tornaram sucesso de público e de mercado e que, de certa forma, operam até hoje como vitrine sonora para quem deseja conhecer o jazz e adentrar seus espaços e seus tempos.

Capa de Time Out, de Dave Brubeck Quartet lançado em 1959 e que contém o standard “Take five”.

O primeiro tema que merece destaque é a insuspeita “Take five”, registrada em 1959 no álbum Time Out, de Dave Brubeck Quartet, integrado por Dave Brubeck (piano), Paul Desmond (sax alto), Eugene Wright (baixo) e Joe Morello (bateria) e produzida pela Columbia Records. Composta por Desmond, “Take five” foi um dos maiores êxitos comerciais quando do seu lançamento, pois na forma de compacto vendeu mais de 1 milhão de cópias. Conta a lenda que nem mesmo Desmond acreditava na sua composição, que foi encomenda por Brubeck para fazer parte de um projeto que reuniria canções com métricas incomuns no jazz e que, por fim, resultou no disco Time Out. Segundo Ted Gioia, Desmond teria considerado duas formas diferentes para se trabalhar num compasso de 5/4. A primeira forma seria uma melodia em tom menor com um ostinato subjacente (que Brubeck executava ao piano); e uma segunda forma, numa tonalidade maior com uma sucessão de mudanças harmônicas. Ao que consta, Desmond acatou a sugestão de Brubeck que combinou as duas formas/passagens e resultou na “Take five” que conhecemos hoje.

Dave Brubeck (piano), Paul Desmond (sax alto), Eugene Wright (baixo) e Joe Morello (bateria), em 1959.

Contudo, há várias críticas sobre o modo como Brubeck e Desmond estruturaram a composição. Conforme Gioia, alguns críticos têm manifestado que o pianista em vez de obcecar-se pelo ostinato reiterativo deveria ter se arriscado mais com o compasso 5/4 – que aliás fez em execuções posteriores sobre esse mesmo tema. Mas há de se considerar, por outro lado, que foi esse mesmo comedimento ou conservadorismo da parte de Brubeck que levou “Take five” de um experimento conceitual no emprego de um andamento incomum no jazz à uma canção de grande sucesso comercial e popularidade. E claro, cumpre ainda mencionar a presença marcante da sessão rítmica nessa gravação. Joe Morello (bateria), prodígio das baquetas, é quem inicia o tema, imprimindo desde o primeiro segundo o compasso de 5/4 quando, logo em seguida, Eugene Wrigh (baixo) e o próprio Brubeck expõem o ostinato para que Desmond apresente o desenho melódico a partir do sax alto.  

“Take five”, composição de Paul Desmond registrada em 1959.

No final da década de 1950, essa experimentação teve, como dissemos, um impacto comercial que se fez notar pelo crescimento repentino na venda dos discos do grupo de Brubeck. A circulação da obra, por sua vez, permitiu uma assimilação massiva do tema que era harmonicamente simples, mas com rítmica inusual e atraente aos ouvidos dos estratos sociais mais jovens que ansiavam por renovações estilísticas em contraposição ao padrão convencional do jazz. Tanto que Time Out formou uma legião de fãs de Brubeck e seu quarteto, integrado predominante por brancos, à exceção do baixista Eugene Wright. Também porque outro fator aqui se somou na disseminação da obra: no final dos anos 1950 e início dos anos 1960, a Columbia Records lançou-se numa campanha para apresentar novos nomes e artistas, inclusive do jazz. E para isso lançou mão de um projeto mais modernizador, tornando os álbuns verdadeiros objetos visuais, sofisticando a produção de arte das capas. A capa de Time Out foi produzida pelo artista gráfico Neil Fujita, que havia sido contrato em 1954 pela gravadora para desenhar as capas dos LPs, formato que começava a se tornar mais popular nos EUA e competir assim com a Blue Note, que já se empenhava nesse trabalho visual há alguns anos.

Por fim, um último elemento há de ser considerado na construção dessa consagração dos trabalhos de Brubeck: seu quarteto integrou uma equipe de artistas, músicos, escritores entre outros intelectuais que eram financiados pelo governo do EUA. Como parte de um Plano Marshall na cultura, o governo norte-americano investiu pesadamente na disseminação da “cultura americana” ao redor do globo, na segunda metade do século XX, sobretudo em função da Guerra Fria. No caso do quarteto de Brubeck, este teve apoio do governo para a realização de uma turnê pela Europa e Ásia como parte da política de relações internacionais norte-americanas. O grupo excursionou pela Turquia, Polônia, Índia, Paquistão, Iraque e Irã.

Assim como “Take five”, há um outro tema que nos permite associá-lo ao argumento da “música fácil”, necessária para o desenvolvimento de um cenário mais complexo do jazz, seja enquanto música, seja enquanto negócio. Essa canção foi registrada no álbum Somethin’ Else, de Cannonball Adderley, gravado e produzido pela Blue Note, em 1958.

Somethin’ Else, álbum de Cannonball Adderley gravado em 1958 e que contém o tema “Autumn leaves”.

Trata-se de outro standard do jazz composto por Joseph Kosma: “Autumn leaves”. Kosma era músico e compositor nascido em Budapeste (Hungria) e que se mudou para Paris em 1933. Nas andanças pela boêmia francesa conheceu o poeta Jacques Prévert e juntos compuseram “Les feuilles mortes” para o filme Les Portes de la Nuit (1946), dirigido por Marcel Carné. Mas foi somente em 1951 que o tema chegou aos ouvidos de Johnny Mercer, compositor norte-americano, ao qual acrescenta a letra em inglês e facilita sua difusão nos meios jazzísticos. No entanto, músicos e cantores do jazz acabaram entendendo que “Autumn leaves” fosse uma canção típica do repertório musical tradicional norte-americano, tanto que a história de Kosma e Prévert parece ter se perdido.

Provavelmente, tal compreensão tenha a ver com o fato de associarem essa canção ao repertório de Cannonball Adderley (sax alto), Hank Jones (piano), Miles Davis (trompete), Sam Jones (baixo) e Art Blakey (bateria), gravada para o álbum Somethin’ Else. Visto que essa gravação tornou-se paradigmática no jazz, um tema que pelo seu didatismo na apresentação de cada solista, sugere um desenho melódico minucioso ao ouvinte que se compraz com cada frase solada por cada um dos instrumentos que integram essa sessão.

Mas o fato é que antes mesmo desse registro pela Blue Note em 1958, o tema já havia sido popularizado alguns anos antes por um pianista chamado Roger Williams (1924-2011), cujo registro de 1955 levou a canção ao topo da lista da revista Billboard. Outras gravações foram realizadas no decorrer da década de 1950, mas ao que parece passaram desapercebidas pelos músicos de jazz, sobretudo após a década de 1960. Como lembra Ted Gioia ao se referir a esse episódio, quando se ouve a florida introdução de Erroll Garner, na versão de “Autumn leaves” incluída em Concert by the Sea (1955), é difícil que não venha à mente a gravação de Roger Williams, registrada meses antes – muito embora hoje se considere a gravação de Garner uma peça fundamental do jazz, enquanto a versão de Williams se perdeu completamente.

Outra versão fundamental de “Autumn leaves” pode ser encontrada na discografia do ainda jovem pianista Ahmad Jamal (1930), na segunda metade dos anos 1950. Nas sessões produzidas em 1958 pelo selo Vogue, Jamal é acompanhado por Israel Crosby (baixo) e Vernell Fournier (bateria) e encontramos ali a formulação de um arranjo bem mais sofisticado para o standard, aproximando-se muito do resultado harmônico apresentado no álbum de Cannonball, no mesmo ano. Muito provável que essa semelhança não seja mera coincidência, visto que Miles Davis conhecia e admirava a técnica de Jamal, reconhecida pelo intimismo e emprego econômico da mão direita, tal como nas obras posteriores que formaram a identidade sonora do chamado cool jazz.

Ahmad Jamal interpreta “Autumn Leaves”, em 1958. Experimentações harmônicas que se aproximam de Miles Davis e Cannonball Adderley, mas se afastam de Roger Williams e Erroll Garner.

Julian “Cannonball” Adderley (1928-1975) estudou música desde muito cedo e continuou seus estudos mesmo quanto prestava serviço militar junto à Marinha dos EUA. Em 1955 mudou-se para Nova York, onde foi apresentado ao público dos clubes noturnos como uma espécie novo Charlie Parker (1920-1955), que havia falecido meses antes. Foi nesse contexto que iniciou sua carreira profissional formando um quinteto em colaboração com seu irmão Nat Adderley, que era trompetista. Cannonball era um estudioso dedicado do sax alto e se tornou um virtuose no instrumento, num momento em que músicos começam a se profissionalizar e possuir uma formação teórica musical mais consolidada. Cannonball possuía uma influência bastante forte do blues, tanto que sua técnica se adaptou muito bem aos grupos de soul que se multiplicaram na década de 1960.

Sessão de gravação de Somethin’ Else em que aparecem Cannonball Adderley (em primeiro plano), Miles Davis (centro) e Sam e Hank Jones ao fundo.

No caso do standard “Autunm leaves”, Cannonball foi ainda mais longe que Jamal, pois além do arranjo que permitiu uma facilitação harmônica ao apresentar o tema e o desenvolvimento dos improvisos/solos, foi essa sessão registrada pela Blue Note que a tornou canônica no mundo do jazz, dentro e fora dos EUA. Ela possui uma estrutura relativamente didática, em que os instrumentos vão se apresentando gradativamente na medida em que a faixa transcorre no seus quase 12 minutos de duração. Também os contrastes e os timbres dos instrumentos se constituem por oposição, o que nos dá uma clara noção daquilo que integra a parte coletiva do trabalho de apresentação do tema, em contraposição aos solos de cada instrumentista. É interessante perceber, por exemplo, o contraste entre o solo minimalista de Miles ao trompete com surdina, que escolhe com capricho cada uma das notas que ecoam de seu instrumento em contraposição à eloquência do sax alto de Cannonball, com fraseados longos percorrendo toda a escala musical. Da mesma forma é marcante o solo de piano de Hank Jones que se inicia aos 6m40s e estabelece uma ponte entre os contrastes construídos por Miles e Cannonball.

O tema “Autumn Leaves” da sessão registrada para o álbum Somethin’ Else (1958), de Cannonball Adderley.

Assim como apontado anteriormente em relação à produção visual dos discos da Columbia Records, a Blue Note também se preocupava com o design de suas capas. Desde 1955, quando a gravadora iniciou a produção em série de discos (Long Playing) de 12 polegadas, imediatamente contratou profissionais para realização desse trabalho – que tinha apelo artístico, mas também publicitário. Exemplo foi a contratação de Francis Wolf, fotógrafo responsável por uma produção visual inovadora e de construção de uma memória visual do jazz a partir daquele momento. Outra contratação importante feita pela Blue Note foi Reid Miles, que só para esta gravadora produziu mais de 500 artes de capa de LPs. Em Somethin’ Else os dois aparecem nos créditos impressos na contracapa, além de Rudy Van Gelder, respeitadíssimo engenheiro de som na cena jazzística. Esse empenho da gravadora, mais que capricho técnico, era demonstração de quanto a profissionalização no mercado da música estava em ascensão, não apenas em virtude da qualidade que o jazz tinha conquistado no final dos anos 1950, mas devido à formação de um público consumidor que também qualificava sua audição e que se ampliava ano após ano. Tanto que a parceria Miles/Canonnball não se encerrou com Somethin’ Else. Vale lembrar que no ano seguinte a Blue Note vai produzir aquela que talvez seja uma das obras mais importante do jazz: Kind of Blue (1959).

De todo modo, esses aspectos aqui suscitados em torno de “Take five” e “Autumn leaves” nos faz retomar o propósito inicial ensejado pela coluna de hoje: não há como considerar a produção musical engendrada pelo jazz sem levar em análise os elementos históricos e sociais que atravessaram a construção do repertório, do mercado da música, da formação do público, bem como de sua audição. Ignorar tais aspectos é subentender que essas obras foram criadas à revelia do movimento artístico que as impulsionou. E este movimento foi parte integrante do processo criativo de músicos, compositores e intérpretes que se utilizaram de inúmeras técnicas de elaboração, arranjo, execução e registro com a intenção de propiciar a circulação intensificada de suas obras. Assim, a “facilitação” foi um dos recursos que impeliu artistas à criação e à imaginação, ampliando os horizontes da música com a intenção de dizer “algo mais” sem enclausurar-se “fora do tempo”.


Para ir além

Uma melodia que vem da encruzilhada

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