Uma melodia que vem da encruzilhada

O retorno à encruzilhada parece ter sido, e continua a ser, um movimento que se repete em diferentes momentos da história do blues e mesmo do jazz

A tragédia pode também significar que precisamos ser arrastados ao inferno para ter qualquer chance de liberdade ou realização.

Terry Eagleton

Provavelmente, todo mundo conhece aquele clássico da Sessão da Tarde estrelado por Ralph Macchio – sim, aquele mesmo que contracenou com o Senhor Miyagi (Pat Morita) em Karatê Kid, em meados dos anos 1980 – intitulado aqui no Brasil de A Encruzilhada (Crossroads, 1986) e dirigido por Walter Hill. Neste filme, Macchio interpreta Eugene Martone, um menino branco, de pouco traquejo, franzino e estudante de música de concerto, mas que encontra no blues uma forma de redescobrir seu encanto pela música. O filme narra suas andanças pelo sul dos Estados Unidos em busca da sonoridade de Robert Johnson (1911-1938) e da encruzilhada onde supostamente o velho bluesman teria negociado sua alma com o diabo. Com esse escambo, conta a lenda, Johnson conquistara o reconhecimento e a virtuose que fez dele o inventor da melodia de doze compassos.

O filme é uma produção repleta de clichês, mas que se tornam interessantes se observados mais de perto. Um deles é o componente trágico associado ao blues, num primeiro momento, e depois ao próprio jazz; elemento que passou a compor a mitologia musical de alguns compositores e intérpretes e a definir as biografias daqueles e daquelas que viveram de sua arte, ainda que tenham pagado um preço alto por isso. Especificamente no caso do filme de Hill, além de reafirmar a tragicidade da biografia de Johnson, a construção das personagens ligadas direta ou indiretamente a ele reforça um sentimento de abnegação, de sofrimento e luta por reconhecimento musical, mas também racial. Um verdadeiro tour de force que se vê apresentado nos diálogos entre Martone e Willie Brown (interpretado por Joe Seneca), posto que na trama este último teria sido amigo de Robert Johnson e promete auxiliar Martone na busca pela a alma do blues em Clarksdale, no Mississipi.

Cena de A Encruzilhada. Crédito da foto: divulgação.

O filme considerado em seu contexto descreve sintomas de algumas transformações. Há de se observar que o blues produzido entre meados dos anos 1970 e 1980 passou por um intenso processo de eletrificação. Os instrumentos elétricos fizeram-se mais presentes e secundarizaram os violões acústicos, as harmônicas e os washboards. O blues aproximou-se (ou foi aproximado) do rock e gravadoras e festivais recompuseram as performances do gênero, incorporando e reconfigurando parte de uma cultura musical negra norte-americana que ainda não havia sido explorada comercialmente. Exemplo claro dessa apropriação foi outra produção cinematográfica do período, The Blues Brothers (1980), conhecido aqui entre nós como Os Irmãos Cara de Pau. Dirigido por John Landis e protagonizado por John Belushi (Joliet Jake Blues) e Dan Aykroyd (Elwood Blues) a ação central do enredo, tal como no filme de Hill, inicia-se com a saída da prisão de um dos personagens, justo aquele que dará à trama o leitmotiv do retorno às raízes de uma musicalidade (e ao sentimento trágico); de reencontro com uma visão de mundo perdida para a modernidade desprovida de qualquer tipo de sensibilidade.

John Belushi, Dan Aykroyd e John Lee Hooker durante as gravações de Os Irmãos Cara de Pau. Crédito da foto: divulgação.

Mas vocês podem se indagar: é possível que dois filmes comerciais consigam reter esse sentido ou essa perspectiva de retomar o conteúdo trágico do blues como forma de repercutir as contradições (de classe e de raça, sobretudo) da moderna sociedade norte-americana? Absolutamente, pois não se trata de considerar meramente os reflexos sociais e históricos sobre a obra cinematográfica. Mas os dois filmes, como produtos de uma grande e diversificada indústria de entretenimento, repercutem e reverberam as transformações e as apropriações que se fez da cultura negra norte-americana naqueles anos. Se notarmos com mais vagar, o próprio jazz, o rhythm and blues, o soul ou o funk já haviam passado por essa decantação operada pela indústria de entretenimento em anos anteriores. Há inúmeros exemplos para ilustrar essa “domesticação” do trágico na cultura negra norte-americana, com finalidade de torná-la palatável aos consumidores dos programas rádio e televisão. Contudo, o blues ainda era um dos últimos redutos dessa memória social dos negros escravizados, semeada desde as remotas lavouras de algodão do sul do Estados Unidos, por isso mesmo lugar por excelência dessa tragicidade. E aqui podemos entender o trágico tal como Terry Eagleton o define em Doce Violência: a Ideia do Trágico: “o homem trágico é aquele que é corajoso o bastante para endossar a beleza e a necessidade da ilusão […]. É aquele que arrisca a olhar dentro do abismo do real e dançar à sua beira sem se transformar em pedra”.

E assim como houve uma iniciativa de emulação do elemento trágico nos termos da indústria fonográfica, houve também o movimento contrário à essa tendência. Se na passagem da década havia um propósito da indústria cultural em neutralizar os componentes de resistência da música negra e torná-los a “pedra à beira do abismo”, houve, por outro lado a tentativa de repor estes valores como parte de construção da identidade social de um povo submetido à violência racial.

Sintomática, por exemplo, é a gravação do álbum The Original Blues Brothers, de Buddy Guy e Junior Wells, em 1983. A dupla que desde a década de 1960 havia incorporado diferentes elementos à sua sonoridade, flertando com standards comerciais, com esse álbum esboçou um movimento de reabilitação do “velho blues”. Ainda que o repertório do álbum trouxesse canções heterodoxas como “Satisfaction – I Can’t Get No” (Mick Jagger e Keith Richards), o conteúdo abertamente anticomercial da letra, bem como a harmonia baseada em três acordes centrais, remetiam às origens de uma sonoridade identificada com o velho blues. Sem mencionar o fato de que o álbum resultante dessa parceria formular uma resposta direta ao filme de Landis: Buddy Guy e Junior Wells, estes seriam os verdadeiros blues brothers.

Buddy Guy e Junior Wells interpretam “Rollin’ and Tumblin’”, uma amostra do retorno às raízes do blues.

Então, o retorno à encruzilhada parece ter sido (e continua a ser) uma iniciativa recorrente em diferentes momentos da história do blues e mesmo do jazz. Disposição que leva a música negra norte-americana a recuperar um status de originalidade e de construir os elementos da autenticidade da sua própria cultura. Nesse processo, não apenas o blues foi reapresentado à indústria fonográfica com roupagem renovada, mas o próprio jazz reincorporou vasta simbologia cara à sua formação histórica. A partir dos anos 1970 em diante há uma retomada das brass bands, da valorização comercial das festividades populares e da boêmia de New Orleans. Exemplo ilustrativo dessa retomada talvez seja a produção discográfica da Dirty Dozen Brass Band, criada 1977, bem como a celebrada incursão da família Marsalis nessa busca pelas “raízes”, no final de década de 1980 em diante.

Dirty Dozen e um exemplo da incorporação de elementos originais do jazz em nova roupagem.

Aliás, não custa lembrar que esse tipo de “atualização” do jazz é também constatada na década de 1950, quando se testemunhou a reabilitação das orquestras riverboats dos anos 1920 e toda estética que lhe era inerente. Momento, por exemplo, em que Louis Armstrong consagrou-se como exímio trompetista e crooner e passou a ser reconhecido com um dos responsáveis pela invenção do jazz. Tanto que Satchmo é mais conhecido e popular hoje pelas gravações mais comerciais realizadas com The All Stars (entre 1950 e 1960) que devido às mais ousadas experimentações com The Hot Five, quando gravou em 1928 a paradigmática “West End Blues”.

Louis Armstrong and His Hot Five, em 1928, na clássica gravação de “West End Blues”. As primeiras frases do trompete solo de Satchmo entraram para a história como marco zero do jazz.

Todos esses processos aqui resumidamente elencados apontam para uma ideia de retorno, para a busca de uma certa ancestralidade que, por sua vez, retomam aspectos concernentes à tragicidade anteriormente apontada, considerando que “a tragédia não é uma questão de felicidade, mas das condições que podem ser necessárias para realizá-la”, segundo Eagleton. Assim, a musicalidade que emergiu (e ainda emerge!) da encruzilhada, para além dos estereótipos sugeridos pelos filmes da Sessão da Tarde, trazem consigo a representação desse mal-estar na modernidade e ganham corpo na canção produzida por mulheres e homens negros nos Estados Unidos. Além de Robert Johnson e a lendária história do seu pacto com o diabo num cruzamento das Rotas 61 com a 49, as histórias e as sonoridades de Bessie Smith, Clifford Brown, Charlie Parker, Billie Holiday, Chet Baker, Lee Morgan e tantos outros, vieram acompanhadas de biografias acidentadas que emolduraram a produção de suas respectivas obras e sua recepção pelo público. Ainda que corroborada pela indústria fonográfica que disseminou suas criações, o elemento trágico que constituiu parte de suas experiências pessoais confunde-se com a genialidade de suas obras. Torna-se quase impossível separar uma coisa da outra. É como considerar a obra e o percurso de Billie Holiday: associada à sua belíssima obra, Lady Day possui uma trágica história de vida que a marcou desde muito cedo quando esteve submetida a bordeis e chegou a ser estuprada. Depois de alçada aos espetáculos e festivais no decorrer dos anos 1940, e de contratos em diferentes gravadoras que a consagraram no circuito musical para além do jazz, adoece meses após a morte de seu grande companheiro, Lester Young, e falece em julho de 1959.

Uma das últimas apresentações de Lady Day em 1959, interpretando “Strange Fruit”.

Da mesma maneira a criatividade inventiva de Charlie Parker (1920-1955), um dos mais importantes representantes do bebop juntamente com Bud Powell, Dizzy Gillespie, Thelonious Monk, viu-se impactada pela sua trajetória e experiências pessoais. Produziu um catálogo imenso em diferentes selos, mas faleceu prematuramente aos 35 anos. O mesmo se pode dizer de Clifford Brown (1930-1956), Lee Morgan (1938-1972), Eric Dolphy (1928-1964) que desapareceram prematuramente por diferentes motivos, mas que encarnam até hoje a aura de “gênios” de sua geração. Não somente porque promoveram espantosa inovação técnica expandindo os horizontes do jazz no pouco tempo em que produziram, mas também porque sempre trouxeram consigo a dimensão trágica da experiência daquele que esteve e sempre estará no retorno à encruzilhada.


Para ir além

Afinal, o que é o jazz?

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