Por que não faz sentido equivaler nazismo ao comunismo?

Enquanto há comunistas que abominam o autoritarismo e a perseguição de opositores políticos e liberais contrários ao colonialismo, não há nazistas ou neonazistas que não sejam racistas e antissemitas

Com a ascensão global de extremas-direitas nos últimos anos e na esteira das recentes alegações absurdas sobre a legalização do partido nazista, reemergiu uma tese recorrente – e que, em alguns países, é aprovada em lei. Já que o nazismo é criminalizado em várias partes do mundo, incluindo na Alemanha, o mesmo deveria ser feito com o comunismo. A equivalência não é somente incorreta como antidemocrática, levando facilmente à relativização do nazismo e de seus crimes. Entendamos por que.

O que comparar?

Ao menos desde a guerra fria, “comunismo” tem sido um rótulo empregado como uma espécie de insulto dirigido a uma variedade enorme de posições políticas. No Brasil dos últimos anos, além dos poucos comunistas de verdade, anarquistas, socialdemocratas e mesmo liberais têm sido chamados (com o intuito de serem xingados) de comunistas. Isso torna o debate raso e bastante difícil. Porém, atendo-se a uma definição que respeite um mínimo de rigor, a tese a favor da criminalização do comunismo geralmente equivale as mortes provocadas pela URSS, principalmente em seu período stalinista, ao Holocausto.

Tanto a Alemanha nazista quanto a URSS stalinista cometeram crimes horrendos. A bibliografia comparativa entre esses regimes é vasta e varia de obras com claro teor partidário até investigações profundas. Comparar os dois regimes em termos da relação que estabeleciam com as sociedades ou a forma de liderança de Hitler e Stalin é uma operação legítima e produtiva. Já a equivalência entre os dois é mais problemática, pois se ambos os regimes se assemelham no caráter assassino, as diferenças também são notáveis. Especialistas como Ian Kershaw, Michael Geyer e Sheila Fitzpatrick apontam que, enquanto agrupar os dois regimes ao estudar-se as formas de controle da sociedade pode ser uma ferramenta útil, ela se mostra muito limitada na análise dos pressupostos e fins ideológicos. O objetivo do stalinismo era, por meio da repressão e do terror, obter dominação e obediência, enquanto no nazismo o extermínio era um fim em si mesmo. A Solução Final não visava alterar o papel social, econômico ou político dos judeus, mas exterminá-los por completo, não importando onde e em que condições se encontrassem.

Embora metodologicamente legítima, a comparação entre stalinismo e nazismo não deve ser o foco na discussão em torno da criminalização do comunismo (e do nazismo). Afinal, não se trata de criminalizar regimes políticos específicos, mas o conjunto de ideias que lhes deram, em algum grau, sustentação. Essa diferença é particularmente evidente para o comunismo, que, afinal, foi e é proposto por uma variedade de partidos políticos e movimentos pelo mundo, frequentemente divergentes entre si, alguns dos quais chegaram ao poder. Mesmo no caso do nazismo, a criminalização não se refere somente e especificamente ao partido que governou a Alemanha entre 1933 e 1945, mas também a grupos políticos nele inspirados e a células neonazistas existentes até hoje. A questão, portanto, não é se o Holocausto e o Holodomor são equivalentes, mas em que medida esses crimes são ou não decorrência direta dos ideais nazista e comunista, respectivamente.

Em 1920, o partido nazista lançava o seu programa de 25 pontos. Neste documento que precede em treze anos a ascensão do nazismo ao poder, já é evidenciado que a cidadania alemã, bem como o acesso ao serviço público, deveriam ser exclusivos aos de “sangue alemão” – judeus são explicitamente mencionados como excluídos dessa categoria.

Princípios fundamentais e práticas políticas

Para essa análise, é preciso estabelecer quais seriam os princípios básicos fundamentais de cada corpo ideológico, ou seja, aquilo com o qual todos os seus seguidores concordam – ou, se valendo da metodologia do historiador Roger Griffin para conceituar um “mínimo fascista”, estabelecer um “mínimo nazista” e um “mínimo comunista”.

Em 1920, o partido nazista lançava o seu programa de 25 pontos. Neste documento que precede em treze anos a ascensão do nazismo ao poder, já é evidenciado que a cidadania alemã, bem como o acesso ao serviço público, deveriam ser exclusivos aos de “sangue alemão” – judeus são explicitamente mencionados como excluídos dessa categoria. E que, na impossibilidade de proporcionar uma vida digna a todos os alemães, estes não-cidadãos deveriam ser expulsos. Em Mein Kampf, o livro de Adolf Hitler publicado em 1925, tais ideias se tornam ainda mais explícitas e fica evidente que a expansão territorial, o ultranacionalismo, a noção de superioridade racial e a ideia antissemita de uma perigosa conspiração judaica a justificar o extermínio são o cerne da ideologia nazista. Uma vez no poder, a política de discriminação, perseguição, confinamento e extermínio da população judaica da Europa, assim como de opositores políticos, ciganos, negros, homossexuais, pessoas com deficiência e outros grupos, não é um desvio ou uma dentre outras interpretações possíveis da ideologia nazista, mas sua decorrência mais óbvia. Portanto, não há nazismo sem racismo, antissemitismo e mesmo, genocídio. Sendo estas práticas consideradas crimes, o mesmo se aplica ao nazismo.

Adolf Hitler. Foto: reprodução.

A situação é diferente quando analisamos (em profundidade, e não com citações descontextualizadas, como por vezes ocorre) os textos clássicos do comunismo, sobretudo os de Marx e Engels. Suas ideias podem ser vistas como controversas ou datadas, e é perfeitamente legítimo discordar delas. Mas, em exercício análogo ao realizado sobre nazismo, se tentarmos estabelecer alguns princípios básicos do comunismo, mencionaríamos o ideal de igualdade social-econômica, a abolição da propriedade privada dos meios de produção, a necessidade de união da classe operária e a revolução como meio de alcançar esses objetivos. Enquanto Auschwitz parece uma decorrência esperada de Mein Kampf ou dos 25 pontos, a leitura do Manifesto do Partido Comunista ou de O Capital não remete diretamente ao gulag.

É legítimo questionar se o terror stalinista, para retomar o exemplo citado anteriormente, é um desvio ou até uma antítese da teoria comunista ou se há, nesta, alguma brecha. De qualquer forma, seria no mínimo exagerado responsabilizar os textos que embasam os diversos partidos e movimentos comunistas pelos crimes stalinistas, enquanto o ideário nazista é diretamente responsável pelo Holocausto.

Há, portanto, diferenças importantes entre, por um lado, crimes ancorados em uma ideologia e, por outro, crimes cometidos em nome de ou sob um regime que defende determinada ideologia. Um exemplo que não envolve nem nazismo nem comunismo talvez ilustre bem essa distinção, como vemos abaixo.

O auge do liberalismo clássico e do laissez-faire britânicos também foi o tempo visto por alguns como apogeu do império colonial britânico. O historiador Mike Davis aponta que nas décadas finais do século XIX, em nome da eficiência econômica, da redução de custos e da mínima interferência estatal na economia, sistemas tradicionais de produção de alimentos na Índia, então colonizada pelos britânicos, foram desmantelados de modo a aumentar a produção de produtos de exportação para a Europa. O resultado foi que, diante de um período de seca, de modo a manter a produtividade, milhões de pessoas foram deixadas a morrer de fome. Os administradores coloniais consideraram que fazer algo que aplacasse a tragédia seria uma interferência improdutiva. Novamente, é legítimo analisar se e como a teoria de Adam Smith ou John Stuart Mill abre brecha para os crimes do colonialismo, mas afirmar que estes são uma decorrência evidente daquela é absurdo.

Josef Stalin. Foto: reprodução.

Criminalização e democracia

Infelizmente, atrocidades já foram cometidas em nome ou sob o paradigma de inúmeros conjuntos de ideias – no que poderia, além das ideias propriamente políticas, incluir outros sistemas de pensamento, como as religiões. Mas somente em alguns casos esses crimes são uma necessidade já postulada teoricamente da posta em prática de determinado conjunto de ideias, como ficou demonstrado no caso do nazismo. E somente nessas situações cabe criminalizar essas ideias. A proposta de criminalizar o comunismo (ou, caso alguém o propusesse, proibir o liberalismo) é, portanto, antidemocrática, pois excluiria do debate público ideias que não são necessariamente uma ameaça a direitos fundamentais.

Além disso, pode ter um efeito nocivo adicional. Enquanto a falsa equivalência do comunismo ao nazismo pode levar à equivocada criminalização daquele, a falsa equivalência do nazismo ao comunismo pode cair na armadilha de desvincular o Holocausto do nazismo, como se o genocídio fosse somente uma interpretação possível de um ideal com alguma validade, levando a uma perigosíssima reabilitação do nazismo.

Em resumo, enquanto há comunistas que abominam o autoritarismo e a perseguição de opositores políticos e liberais contrários ao colonialismo, não há nazistas ou neonazistas que não sejam racistas e antissemitas. Essencialmente, é isso que faz a criminalização do nazismo uma decisão acertada, enquanto comunismo e liberalismo, apesar dos crimes cometidos em seu nome, são parte do debate saudável que uma sociedade democrática deve ter.

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