Eu tive o meu primeiro AVC em casa. Sozinha. E dentre as convulsões provenientes do meu aneurisma rompido, fui destruindo e desarrumando tudo o que tinha pela frente

No dia em que tive o AVC precisei abandonar meu corpo e minha casa, e quando retornei, ambos não eram mais os mesmos. Durante minha reabilitação, fui organizando toda a bagunça em que minha vida havia se transformado, e aos poucos, reconstruindo meus dois lares.

Casa; lar; nosso cantinho e ponto de refúgio. No dia a dia conturbado nem nos damos conta de como o lugar em que moramos é importante e de como ele representa o que somos. A casa que decoramos e cuidamos diariamente é quase uma extensão do nosso corpo físico, que é o lar da nossa alma. Quando passamos pela experiência de um AVC, abandonamos a nossa casa subitamente, pois na corrida pela sobrevivência, somos obrigados a nos mudar para o hospital por um tempo indeterminado. E como é difícil retornarmos a ela, e aos afazeres por ela demandados. Este é mais um dos nossos grandes desafios.

Eu tive o meu primeiro AVC em casa. Sozinha. E dentre as convulsões provenientes do meu aneurisma rompido, fui destruindo e desarrumando tudo o que tinha pela frente. Um processo que espelhava o que estava acontecendo dentro do meu cérebro. Um surto, um caos. E foi justamente em casa que passei os meus momentos mais frustrantes durante a minha reabilitação, já que havia me tornado incapaz de cuidar dela, assim como fiquei incapacitada de cuidar de mim.

Durante os meus vinte e poucos dias de internação, alguns amigos se revezaram para cuidar da minha casa, principalmente porque tenho bichinhos. Sou muito grata a eles, porém, mesmo com todo o apoio, minha casa ficou sozinha e os meus gatos se sentiram abandonados. Acho que nesse ínterim senti o mesmo que eles, pois de um jeito muito estranho eu também havia me abandonado. Retornar foi um misto de alívio e tristeza. Alívio por ter sobrevivido a dois acidentes vasculares e tristeza porque alguns objetos ficaram na mesma posição que eu os coloquei antes de morrer, me trazendo lembranças um pouco constrangedoras. Como, por exemplo, duas pílulas de analgésicos sobre a estante, que eu tinha separado para aliviar a minha dor de cabeça súbita, o principal sintoma do meu AVC hemorrágico. Elas ainda estavam lá quando cheguei e me deram aquela sensação de “segundos antes do desastre.”

Cuidar da casa é muito difícil após o acidente vascular cerebral, porque a nossa mobilidade motora é muito impactada. Não conseguimos nos movimentar bem, principalmente em uma das mãos, perdemos força e equilíbrio e, para completar, estamos com o emocional destroçado. E nas tentativas de voltar a refazer as tarefas domésticas (a gente sempre tenta), nos deparamos com a real extensão das nossas sequelas. É muito frustrante.

Por mais que as pessoas tentem fazer os nossos afazeres, nunca é do mesmo jeito, e essa incoerência dá nos nervos, acarretando explosões de raiva por parte do sobrevivente. Não é culpa do outro e nem da gente. É culpa de todo o processo; de toda a situação. Além desse mal-estar emocional, muitos AVCistas, assim como eu, sofrem sequelas cognitivas, que dificultam ainda mais a situação. Para mim, a impressão que me dava era de que um grande muro invisível me isolava de todos. Eu não conseguia me concentrar o suficiente em uma determinada atividade, assim como na fala do outro. Não havia troca de ideias, porque eu não entendia, não assimilava. E assim me tornei “egoísta”, pela recente incapacidade de me relacionar com os outros, com os objetos de minha casa e comigo mesma. Para os afásicos, apesar de muitos não sofrerem sequelas cognitivas, imagino que esse muro também exista, mas de maneira diferente. Já pensou na dificuldade que é se adaptar a um mundo em que você não tenha voz dentro de sua própria casa?

Basicamente todos os processos de minha reabilitação foram em casa, e na busca por cuidá-la, fui percebendo minhas melhoras e meus deslizes neurológicos. Não conseguia cozinhar, mas não era somente por causa da mão esquerda imobilizada, o problema ia muito além disso: não conseguia mais estipular os processos, as porções e os alimentos para fazer uma refeição. Não por preguiça, mas por não conseguir sequenciar, calcular e identificar alimentos. Tudo culpa das minhas sequelas cognitivas, oriundas da perda de massa encefálica. À medida que fui tratando essas sequelas, fui voltando a me aventurar na cozinha. Porém, vai demorar para eu te convidar para um jantar, porque não é a mesma coisa. Nunca é.

Assim que voltei a ter equilíbrio para varrer a casa, fui percebendo que só limpava o seu lado direito, e foi assim que descobri que não enxergo muito bem com o olho esquerdo. Faz sentido: como eu poderia limpar o que não enxergo? Outras atividades, fui tentando fazer conforme os exercícios que aprendia nas sessões de fisioterapia. Vamos a outros exemplos: trocar o lixo envolve muita mira, força e habilidade com as mãos. Se você não percebe isso, é porque seu cérebro nunca foi machucado. Quem teve uma lesão cerebral sabe muito bem da dificuldade de que estou falando. E já pensou em como amarrar uma sacola plástica usando apenas uma das mãos? E dobrar as roupas e os lençóis, lavar a louça? Fica complicado até amarrar o cabelo com um elástico. Duvida? Então, aceite esses desafios de sua amiga Desmiolada e tente. Depois me conte.

Cuidar do corpo pós-AVC também exige certa dose de coragem. Vestir-se com um lado parético é muito complexo, até você entender que precisa puxar a parte lesionada e colocá-la nos tecidos como se fosse o membro de uma boneca. Até hoje me sinto meio boneca quando me visto. Mas é assim mesmo, e aos poucos a gente pega o jeito. Para tomar banho, pentear o cabelo e se maquiar também demanda muito esforço. Aliás, minhas primeiras maquiagens me davam um estilo urso panda, mas entendi que, assim como absolutamente tudo, elas deveriam ser reaprendidas do zero. Ninguém começa a pré-escola pronta para passar no vestibular, e eu tinha retornado ao meu primeiro dia de aula.

Sem perceber, fui fazendo da minha casa a minha clínica de reabilitação particular. Foi nela que fui percebendo que não iria voltar a fazer as coisas do mesmo jeito, porque já não era mais a mesma pessoa. E com o tempo, ela foi se transformando e se tornando resiliente. Assim como eu, minha casa é sobrevivente.

Com o passar dos dias, vou me reabilitando cada vez mais e meu lar vai ficando mais harmonioso. E assim como acredito que sempre haverá oportunidade para eu me recuperar, ele também irá se reabilitar até o momento em que eu volte a abri-lo para visitas, de um jeito similar como o meu coração aos poucos foi se abrindo para a minha nova vida. É um novo mundo após sobreviver a um AVC, e um novo lar também, por dentro e por fora.

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