Monumentos entre a força e a poesia

Erguer monumentos públicos é um ato que pode tocar em profundas feridas abertas da sociedade. Quando um marco da cidade fere toda uma classe, a sua retomada pelo povo deve ser encarada como um processo histórico, não como ato de vandalismo, não importando se a sua natureza é a poética que ressignifica ou a força que derruba

Não são raros os eventos em que levantes populares culminam em ações contra célebres estátuas públicas. Casos recentes, como a derrubada da estátua do escravagista Edward Colston, em Bristol, na Inglaterra em 2020 ou a ação sobre a estátua do bandeirante Borba Gato, no Brasil em 2021, são exemplos de que a cidade contemporânea é erigida a partir de conflitos históricos que emergem das lutas entre as classes sociais. Para superar certa visão moralista sobre o tema, é necessário interpretar tais ações sem perder de vista as contradições inerentes ao capitalismo, as quais se manifestam em todas as formas de relações sociais, incluindo-se a construção das cidades e a conformação de seus elementos constituintes, como os monumentos.

Palco e objeto das disputas entre as classes, o espaço urbano se configura também pela lógica do conflito, marcando na geografia lugares onde alguns poucos detém e exercem o poder sobre outros tantos. Constrói-se, assim, uma história hegemônica, contada inclusive através da construção das cidades e que se caracteriza pela glorificação de certas figuras e a consequente omissão de outras memórias existentes, presas em suas estruturas.

Importante elemento dessa construção de memórias, o monumento público figura como ferramenta no processo de dominação, uma vez que é erguido no espaço público como símbolo de uma narrativa histórica oficial em detrimento de outras. Por este motivo, tensionam em seu entorno algumas atitudes possíveis, das quais destacam-se aqui duas: a primeira, afeita aos grupos dominantes, encontra na institucionalidade a possibilidade de se desenvolver e se manifesta através da imposição da memória; a segunda, relacionada com a parcela explorada dentro do tecido social, se caracteriza pela resistência e opera diferentes formas de ressignificação dos territórios em disputa. Este breve texto não pretende fazer uma leitura mais aprofundada sobre a postura impositiva, embora não ignore a sua importância para a discussão. A ideia é lançar o olhar sobre a postura de resistência e seu potencial de ressignificação dos monumentos públicos a partir de uma forma de operação específica: a artística, representada aqui pela intervenção urbana Ensacamento, de autoria do grupo 3nós3 no ano de 1979. 

A estátua de Borba Gato, em São Paulo, foi incendiada em 2021. Foto: Assembleia de São Paulo.

O cenário é o Brasil dos fins da década de 1970, que passava por um momento peculiar de sua história. Desgastado, o regime militar encontrava-se no que a cientista social Maria D’Alva Kinzo chama de primeira fase do processo de democratização do país, marcado sobretudo pela revogação do Ato Institucional n.° 5, o mais violento dos decretos de toda a ditadura. Em paralelo, a sociedade civil passava a reocupar as ruas para reivindicar seus direitos, representada, no campo da militância política, pelos movimentos sociais e operários, os quais representavam grande potência crítica no que tange o autoritarismo implantado a partir do golpe de 1964. Na esfera das artes, segundo afirma o pesquisador Paulo Reis, o movimento não foi diferente. O autor aponta ser sintomático desse momento de transição para uma democracia ainda incerta o surgimento de propostas artísticas que utilizavam a cidade como principal suporte. Tratava-se da retomada do espaço público pela sociedade civil inclusive pelo viés da arte.

Surgido neste contexto – e em paralelo a outros grupos de arte urbana –, o coletivo 3nós3 atuava de forma a se afastar do circuito oficial das artes que, representado pelas instituições e seus agentes, se configura historicamente pela institucionalidade e a lógica de mercado, mostrando-se excludente a boa parte da classe artística. O trio era formado pelos artistas visuais Mario Ramiro (1957), Hudinilson Urbano Jr. (1957 – 2013) e Rafael França (1957 – 1991) e foi responsável por um total de dezoito intervenções urbanas, operadas sobretudo na cidade de São Paulo entre os anos de 1979 e 1982.

Ensacamento, realizada no dia 27 de abril de 1979, foi a ação inaugural do 3nós3, uma operação que agregava três atos distintos. O primeiro, realizado entre meia noite e cinco da manhã daquele dia, consistiu em cobrir com sacos de lixo preto a cabeça de diversas estátuas públicas na cidade de São Paulo. Pela manhã, o segundo momento da ação se deu como ato performático: cada um dos integrantes telefonou para três jornais simulando serem vizinhos indignados com o suposto ato de vandalismo. A parte três da ação aconteceu em “parceria” com a mídia, uma vez que a veiculação espontânea das notícias, tomada como parte da obra, também assumiu um duplo papel para os ensacamentos, quais sejam, o de registro e também de multiplicação da circulação e recepção do trabalho.

Ensacamento: estátua sob intervenção. Foto: 3nós3.

Em seus três atos, Ensacamento incorpora um repertório híbrido, que vai da inserção de objetos sobre o espaço urbano à utilização da mídia, ambas articuladas pelo ato teatral dos telefonemas. Este conjunto de operações que estrutura a ação possibilita uma gama de reflexões de onde podem emergir outras perspectivas sobre o espaço do cotidiano. Desse modo, os ensacamentos induzem à ressignificação do elemento no qual se presta a intervir – o monumento público – ao tensionar o lugar não só em suas dimensões físicas, mas também (e principalmente), discursivas. Tal processo se faz presente em vários aspectos da ação, dos quais destacam-se aqui três.

O primeiro reside na relação entre o repertório de ação utilizado no primeiro ato e o contexto em que se inseriu: ensacar uma estátua pública poderia significar um gesto de alusão a práticas de tortura perpetradas pelo regime militar, o qual seguia em vigor e ainda se manifestava pela imposição através da força. O segundo aspecto interessante surge da forma perspicaz como o trio utilizou a mídia, o que não teve a finalidade de registro apenas, mas, como parte indissociável da ação, também assumiu como possibilidade a criação de novas narrativas sobre o trabalho, produzidas em conjunto com o próprio público.  Sobre este fator, as notícias que surgiram como produto permitiram um efeito multiplicador de circulação e recepção do trabalho, extrapolando o espaço e o tempo nos quais fora realizado. O terceiro, com um caráter direto no processo de construção de memórias, chama a atenção pelos moldes como as matérias foram escritas: em linhas gerais, levantavam a bandeira do patrimonialismo e demonizavam a suposta prática de vandalismo, excluindo a discussão acerca da violência praticada pelo estado autoritário, se configurando como documento histórico que revela, inclusive, parte de um papel desempenhado pela mídia no Brasil durante o regime militar.

Retornando à atualidade, observar os ensacamentos do 3nós3 faz emergir uma série de elementos para reflexão tanto acerca dos marcos que compõem a cidade capitalista quanto das formas de resistência que podem ser operadas sobre eles. Longe de opor a poética existente na ação artística da força nas operações como nos casos das estátuas do Edward Colston e Borba Gato, faz-se aqui um exercício de compreensão de que a ideia da neutralidade em torno do monumento, como uma jóia na cidade, é na realidade uma construção social repleta de parcialidades, pois sua existência também representa imposições violentas de um poder hegemônico sobre as massas dominadas. Para que uma outra forma de realidade seja possível, cabe àqueles que compõem a oposição revelar as lacunas da história, ocupar espaços da cidade e ressignificar os lugares que lhe são de direito. Seja pela força, seja pela poesia.

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