Desrespeitável Público: o circo como possibilidade de resistência durante o Holocausto

Quem nunca ouviu a famosa expressão “respeitável público”? Ao escolhermos a palavra “desrespeitável” como título do material educativo, destacamos a complexidade das relações entre o circo, o nazismo e a resistência

Durante séculos, os circos europeus foram dirigidos por grupos minoritários, com artistas de todo o mundo e de inúmeras origens: ciganos de vários grupos (como roma, sinti, calón e romanichal), judeus de diferentes ascendências, yeniches e pessoas com deficiências, por exemplo. Caracterizada como uma antiga e popular forma de arte, a essência transnacional dos circos servia como uma porta estreita para a aceitação da alteridade.

Por outro lado, o nazismo via a redenção da Alemanha por meio da regeneração completa e purificação racial do que chamavam de “raça ariana”, cuja missão seria comandar o destino da humanidade. Para tal, seria preciso estar livre da influência do que chamavam de raças inferiores e de grupos considerados inimigos ou degenerados – os mesmos ciganos, judeus e pessoas com deficiência, por exemplo.

A premissa de que haveria, em tese, um profundo choque de valores entre o circo tradicional e o regime nazista foi o ponto de partida para as pesquisas e a produção do material educativo “Desrespeitável Público: o circo como possibilidade de resistência durante o Holocausto”, de curadoria do Museu do Holocausto de Curitiba, que será lançado nas próximas semanas.

Desde o início, fugindo de uma noção simplista de que a relação entre circo e resistência seja óbvia, destacamos a palavra possibilidade. A ideia central é mostrar como o circo e seu modo de vida (e não somente pessoas que por acaso eram artistas circenses) abriram um potencial (que se concretizou em alguns casos) para pensar a contestação e a resistência ao regime nazista.

Hipóteses e premissas

É inegável que a tradição itinerante do circo viabilizou trocas culturais em contextos políticos e sociais diversos, muitas vezes completamente dissonantes das origens dos artistas. Os indivíduos que trabalhavam no circo tornaram-se abertos a essas influências e não são incomuns os casos em que expressões artísticas locais eram agregadas às apresentações.

Entretanto, poderiam a itinerância e a pluralidade terem contribuído para circunstâncias de resistência durante as perseguições nazistas? Hipóteses (que seriam ou não confirmadas durante a pesquisa) sugeriam a contestação à uniformidade étnica e cultural a partir do cosmopolitismo do circo, o papel social marginalizado dos artistas e o caráter itinerante como forma de estabelecer contatos.

Faria sentido, portanto, destacar a resistência como intrínseca à natureza do circo? A resposta é “não” – o que caracteriza, no caso do nazismo, uma relação dúbia com a arte circense. Ao contrário de outras formas artísticas, como a pintura, a poesia e a literatura, Hitler não encarava o circo como algo potencialmente subversivo, o que garantia certa liberdade para que esses grupos pudessem atuar. Na realidade, o próprio ministro da Propaganda, Joseph Goebbels, se ocupou da organização de turnês de diversas companhias. Sua percepção era de que o circo, além de um elemento de distração, conseguia refletir o orgulho nacional e seria de grande utilidade incorporá-lo à propaganda alemã.

No entanto, são correntes os casos de perseguição, atos de resistência e estratégias de segurança criados por diversas pessoas ligadas a circos, principalmente os vinculados a estruturas marginais na sociedade. Estariam essas ações interligadas aos princípios universais que a atividade circense carrega há gerações? Seria possível criar conexões diretas entre o circo e a resistência? São outras perguntas que o material pretende responder.

Histórias e inspirações

Na equipe do museu, a primeira ideia de um projeto que ligasse o circo ao Holocausto surgiu após o falecimento, em 2016, de Franz Czeisler, o ilusionista e megaempresário conhecido como Tihany, dono do circo de mesmo nome, criado no Brasil – um dos três maiores do mundo. Judeu e sobrevivente do Holocausto, sua história peculiar é pouco conhecida pelos brasileiros.

No mesmo ano, tornaram-se públicas novas imagens de uma “obra perdida” do artista, produtor e diretor Jerry Lewis, conhecido como o “rei da comédia”. O filme, que nunca foi lançado e recebeu o título provisório de O Dia em que o Palhaço Chorou, conta a história fictícia de um palhaço chamado Helmut Doork, que, ao ser preso pelos nazistas, entreteve crianças enquanto eram levadas às câmaras de gás. Gravado na década de 1970, as cenas e o roteiro sempre foram alvo de curiosidade, já que envolviam o astro e um tema diferente do qual ele se consagrou.

Nesse momento, não foi difícil levantar outras histórias conhecidas, que poderiam validar ou não a sequência do projeto. A saga de Marcel Marceau, que atuou na resistência francesa e é universalmente aclamado como o maior mímico de todos os tempos, assim como dois livros traduzidos e publicados no Brasil, A Ressurreição de Adam Stein, de 1981 (e que virou filme em 2008, com Jeff Goldblum como protagonista), e Gigantes no Coração: A emocionante história da Trupe Lilliput – uma família de anões que sobreviveu ao Holocausto, de 2006, foram fundamentais como elementos inspiradores.

Até que, no primeiro semestre de 2017, soube-se da criação do projeto “Diverging Fates: Travelling Circus People in Europe under National Socialism” – algo como “Destinos divergentes: pessoas de circos itinerantes na Europa sob o nacional-socialismo”. O programa de pesquisa, que durou dois anos e está disponível online, foi uma parceria entre a International Holocaust Remembrance Alliance (IHRA) e o Centro de Estudos Nórdicos da Universidade de Helsinki, na Finlândia. Histórias de donos, artistas e famílias de circo sob domínio nazista foram esmiuçadas e serviram de inspiração para o projeto do Museu do Holocausto de Curitiba, que ainda se apoiou, além de numa bibliografia especializada, nas plataformas Circopedia, Jewish Virtual Library e o Instituto YIVO, em Nova York.

As pesquisas nos levaram a histórias extraordinárias, algumas de emaranhados familiares como os Lorch, os Strassburger e os Blumenfeld. Conhecemos trajetórias de artistas, trupes mambembes e donos de circo que lidaram com os altos escalões nazistas e que inclusive salvaram a vida de judeus – estes receberam, posteriormente, o título de “Justos entre as Nações”. Levantamos material iconográfico e trabalhamos o contexto do circo na Alemanha do entreguerras, as relações com o nazismo e aspectos da reconstrução e da resiliência.

Quem nunca ouviu a famosa expressão “respeitável público”? Ao escolhermos a palavra “desrespeitável” como título do material educativo, destacamos a complexidade das relações entre o circo, o nazismo e a resistência. O que havia sido pensado como uma grande experiência de uma mostra itinerante, com picadeiro e tudo, transformou-se, após atrasos e uma pandemia, num material pedagógico gratuito que já está em fase final de edição e será lançado em breve. O espetáculo não pode parar.

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