Cérebro: uma caixinha de surpresas

No momento em que sofremos o acidente, a impressão que dá é de que o cérebro entra em colapso: tudo não funciona. Ficamos acamados, com muita dificuldade em falar, raciocinar e se mover

Machucar o cérebro dá muita insegurança. O que será da vida com o principal órgão do corpo humano machucado? Mas, o fato é que, mesmo lesionado, o cérebro pode fazer muito. Mutável, misterioso e resiliente, o nosso cérebro é uma caixinha de surpresas.

Há muito tempo, anos antes do meu AVC, ganhei uma bolsa de estudos de aulas de alemão. E, logo na primeira aula, a professora já nos avisou que teríamos muitas desistências ao longo do semestre. O principal motivo não era porque a língua alemã fosse exatamente complexa (discordo dela, acho difícil mesmo), mas porque aprendê-la consistia em pensar toda a nossa comunicação de modo diferente. De fato, alemão é uma língua muito diferente do português, em seu aprendizado não é possível chutar ou se guiar por palavras visualmente parecidas. É quase tudo do nada, do zero. Para mim, estudar alemão foi tão desafiador quanto me recuperar dos meus AVCs.

No momento em que sofremos o acidente, a impressão que dá é de que o cérebro entra em colapso: tudo não funciona. Ficamos acamados, com muita dificuldade em falar, raciocinar e se mover. Depois de alguns dias, algumas funções melhoram, nos dando a falsa impressão de que estamos nos recuperando muito bem, e que daquela hora em diante é só sucesso. Não é bem assim. Neste momento o cérebro apenas se recuperou do choque do acidente, retornando as funções das partes não lesionadas. Ele apenas acordou e verificou as suas partes que ainda funcionavam. Ainda não começou a reabilitação, ela é um longo processo que dura anos.

A recuperação se inicia quando precisamos lidar com as funções referentes à parte cerebral danificada, como mover a mão sequelada, por exemplo. Ela começa quando entramos em desespero, pois simplesmente tal ação não acontece; não funciona. Mas, nesse instante, sem saber, enviamos para o cérebro os primeiros estímulos da neuroplasticidade, que é sobrecarregar um neurônio sobrevivente com a função do que morreu. Talvez essa “mágica” seja realizada com muito esforço cerebral, já que também demanda muito esforço por parte do paciente. Estimular um cérebro machucado é tão árduo quanto aprender alemão do nada num país em que todo mundo só fala português.

Os exercícios são repetitivos e diários, e mesmo assim existem regressões. Já estudou muito para uma prova e mesmo assim foi mal nela? Um sobrevivente de lesão cerebral enfrenta essa sensação todo dia, e ainda ouve de quem estiver por perto que não está se esforçando o suficiente. O grande desafio de reaprender antigas ações é procurar novos caminhos para cada movimento, e não ir pelo trajeto de sempre. Por isso é tão difícil. Trabalhar a neuroplasticidade é desbravar o próprio corpo, enfrentando frustrações, medos e muito sofrimento.

O cérebro é o órgão que mais possui neurônios e que comanda todo o corpo e as emoções da pessoa: é o grande chefão. Mas, ao contrário dos gângsteres do cinema, ele não é sério e conservador, mas divertido e mutável. Todo cérebro que se preze adora um bom estímulo. Deve ser por isso que a maioria de nós tem facilidade em se concentrar em vídeos curtos e rápidos disponíveis nas redes sociais. Muita cor, muito movimento e muito som? Pronto, já ganhou nossa atenção. E se o estímulo estiver relacionado com algo familiar, então? Nossa, o cérebro já se encantou e virou fã de carteirinha dele. Exatamente por isso melhoramos tanto quando alguma terapia reabilitadora proporciona algo a ver com a nossa realidade: é juntar o útil ao agradável.

Apesar de o cérebro inteiro ser muito completo e pomposo, os cérebros favoritos dos neurocientistas são os machucados. Já que, apesar dos pesares, eles funcionam, cada um do seu jeitinho. Mesmo estudando este órgão a vida inteira, nenhum deles sabe ao certo como um determinado cérebro vai se reabilitar. É uma incógnita. Afinal, como um órgão machucado pode perder parte de si, e mesmo sem se recompor, conseguir se virar? Cada um deles é único e tem a sua própria resposta. Os cérebros machucados são surpreendentes, porque provam que nada é como parece, e que nem sempre tudo está perdido.

Um dia, quando eu estava na faculdade, um ex-namorado que cursava medicina me mostrou as imagens de dois cérebros atingidos por AVC: um isquêmico, com apenas uma região escurecida, e um hemorrágico, em que o sangue despedaçou boa parte dele. Na época, em sua ignorância, ele me disse que o primeiro cérebro ainda tinha chance de reabilitação, mas que o segundo só possibilitaria ao paciente uma vida acamada. Pois bem, aquele AVC destruidor foi do mesmo tipo do meu primeiro AVC, e hoje estou aqui andando, comendo e escrevendo este texto para você.

É claro que hoje eu sei muito mais de acidente vascular cerebral do que o meu ex-namorado na época (desculpa aí, mas é verdade). Hoje, sei que não é o tipo de AVC que define as suas consequências, mas a região onde ele afeta. Se eu tive que “aprender alemão” no meu processo de neuroplasticidade, algumas pessoas são obrigadas a aprender húngaro, russo ou chinês diante dos desafios de suas sequelas. Porém, algo que todo cérebro machucado me ensinou (inclusive o meu) é que, apesar de qualquer diagnóstico, todos temos chances de melhorar. Apesar de alguns terem mais oportunidades do que outros, todos podemos nos reabilitar e ressignificar nossas vidas. E isso faz com que eu, atualmente, olhe para qualquer tomografia mostrando um dano cerebral, e ainda diga: eu acredito.

Outro fato que acho interessante é que quando foram estudar o cérebro de Einstein, impressionaram-se que este órgão dele era um pouco menor que o da maioria. Era mais compacto. O grande lance dos miolos de um dos homens mais inteligentes do mundo era que seus neurônios tinham facilidade em se plastificarem. Ou seja, quando um sobrevivente de AVC está se exercitando na fisioterapia, ele está dando uma de Einstein ao estimular o seu cérebro do mesmo jeito que o famoso físico fazia: pensando diferente.

Ao mesmo tempo que sobreviver a um AVC me deu a dimensão da verdadeira capacidade cerebral, essa não foi a lição que mais me comoveu. Ao lidar com o auge do meu sofrimento físico e mental, me senti acolhida por pessoas que nem me conheciam, mas que já tinham passado pela mesma situação. Afetos são estímulos poderosos para a recuperação de danos terríveis, e vão muito além do que mensuramos. Subestimamos muito os nossos sentimentos, mas eles são capazes de efeitos surpreendentes. O cérebro sabe, pois também se alimenta deles.

Antes de maio de 2019, eu me perguntava como uma pessoa consegue ser resiliente diante de uma grande tragédia, e o meu AVC me respondeu que assim como os nossos neurônios, a gente só sobrevive se estivermos unidos e formos maleáveis. Todos nós, como sociedade, fazemos parte de um imenso cérebro lesionado, que apesar de ser incompleto, é digno de feitos grandiosos. O segredo não está no tamanho ou na perfeição, mas de se adequar perante as circunstâncias. Assim como o nosso cérebro, também somos repletos de surpresas, e ainda temos tempo para conhecê-las.

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