É preciso revogar o Novo Ensino Médio

Camilo Santana: ministro precisa repensar o Novo Ensino Médio. Foto: Divulgação
O Novo Ensino Médio intensifica a precarização e a desvalorização do trabalho docente e da educação pública

As manifestações de quinta-feira (15), pela revogação do Novo Ensino Médio (NEM), chamaram a atenção do ministro da Educação, Camilo Santana. Ontem, em suas redes sociais, Santana se comprometeu a recompor o Fórum Nacional de Educação (FNE), desvirtuado pelo governo Michel Temer, em 2017.

É uma tentativa de ampliar o diálogo, no interior do FNE, para a “reavaliação do Novo Ensino Médio”. Não se frustre a leitora e o leitor se isso lhes parecer pouco: é porque é pouco mesmo.

A bem da verdade, por bem-vinda que seja a recomposição do FNE, no que diz respeito ao NEM a notícia como que requenta outra, igualmente inócua. Na semana passada, uma Portaria do MEC instituiu uma consulta pública “para a avaliação e reestruturação da política Nacional de Ensino Médio”.

Novo Ensino Médio

E por que inócuas? Uma breve recapitulação do processo que nos trouxe até aqui nos ajuda a responder à questão. Instituído por meio da MP 746, em setembro de 2016, o NEM foi convertido em lei – a 13.415/2017 – menos de seis meses depois.

Seus vícios são de origem. Ele surge no bojo de medidas antipopulares e antidemocráticas que foram a tônica do governo Temer – como a exclusão da representatividade popular no FNE, por exemplo. Além disso, sua criação por meio de uma MP, sem absolutamente nenhum debate ou discussão, foi desde cedo questionada por seu caráter arbitrário.

À época, o Ministério Público Federal afirmou, em nota: “por se tratar de tema que envolve milhares de instituições públicas e privadas, centenas de organizações da sociedade civil e milhões de profissionais, imaginar que um governo pode, sozinho, apresentar uma solução pronta e definitiva é uma ilusão incompatível com o regime democrático. Mais que inefetiva, a apresentação de soluções fáceis para problemas complexos é um erro perigoso”.

Quem já sabia disso eram os estudantes, que ocuparam centenas de escolas e campi, principalmente no Paraná, na tentativa de reverter a MP. Os “secundas”, especificamente, foram tratados pelo ex-governador Beto Richa, padrinho político de Ratinho Jr., como delinquentes. Pressionados, acossados e agredidos, inclusive por lideranças do MBL, hoje, bolsonaristas eleitos para cargos legislativos, estavam cobertos de razão.

Precarização e desvalorização docente

Com a eleição de Lula, criou-se a expectativa de que as medidas autoritárias tomadas pelos dois últimos governos seriam revistas e invalidadas o mais brevemente possível.

Mas faltou combinar com Camilo Santana. Ele só se mexeu para recompor o FNE agora, após as manifestações; mantém uma posição ambígua sobre o projeto das escolas cívico-militares do governo Bolsonaro e – não há ambiguidade nisso – a revogar o NEM, prefere revisá-lo com medidas cosméticas.

E isso apesar de pesquisas sólidas, realizadas por gente séria e envolvendo redes amplas e plurais de docentes e pesquisadores, chamarem a atenção para as inúmeras contradições e os efeitos nefastos da reforma. Parte dessas conclusões foram sintetizadas em um documento entregue pelo Movimento Nacional em Defesa do Ensino Médio, ainda em dezembro do ano passado, ao GT de Transição da Educação.

Mas há quem goste do cheiro de negacionismo pela manhã.

Em alguns estados, foram criadas mais de 200 disciplinas eletivas. Em São Paulo, algumas delas ensinam a fazer brigadeiros, produzir sabonetes e cuidados com o pet. Teve repercussão nacional a disponibilização, pela Secretaria de Educação do Paraná, de um livro sobre “mentes ricas” e “mentes pobres” como suporte para a disciplina de “Empreendedorismo”.

A pretexto de aprenderem sobre “Ética e liderança”, em uma escola de Curitiba adolescentes eram incitados a “monetizarem” seus colegas de sala.

E essas aberrações apenas tocam a superfície do problema. O NEM intensifica a precarização e a desvalorização do trabalho docente. Profissionais, muitos deles concursados e com anos de carreira, têm dificuldades para garantir sua jornada semanal, obrigados a lecionarem em duas, três escolas, assumindo inclusive componentes para os quais, muitas vezes, não tiveram formação específica.

Reforçar as desigualdades educacionais

No Paraná, o quadro é agravado pelo fato de que o último concurso para a rede estadual já tem longos dez anos. O anunciado pelo governo, com pouco mais de mil vagas previstas, não cobre o déficit gigantesco de efetivos nas escolas públicas, hoje de aproximadamente 20 mil docentes.

A tendência é que se reproduza, nos próximos anos, o que temos hoje: professores PSS obrigados a escolher entre lecionarem componentes curriculares sobre os quais têm pouco ou quase nenhum domínio, desvarios pedagógicos mal disfarçados com nomes chamativos e apenas supostamente modernos, ou o desemprego. Pior: disputando esses componentes com concursados, premidos pela redução da carga horária de disciplinas como Biologia, Química, Artes, Filosofia, Sociologia ou História.

Mesmo a escolha dos itinerários pelos adolescentes, a grande “novidade” do NEM, é uma grande mentira, ao menos na maioria das escolas públicas.

Sem investimento e estrutura física, com professores trabalhando em condições cada vez mais precárias, são poucas as escolas capazes de oferecer mais de um ou dois dos cinco itinerários. E há o risco de alunos cursarem disciplinas técnicas e profissionalizantes em modalidade EaD, ministradas por instituições terceirizadas a um custo de milhões, como foi o caso, ano passado, do acordo entre o governo Ratinho Jr. e a Unicesumar.

Um dos principais críticos da reforma e integrante da Rede Escola Pública e Universidade (REPU), o professor Fernando Cássio é taxativo: o NEM é “uma política educacional desenhada para baratear o ensino médio dos pobres (…) trata-se de uma política de contenção social feita para elevar barreiras para o acesso ao ensino superior e à profissionalização para carreiras técnicas mais complexas e qualificadas”.

Coordenadora do Observatório do Ensino Médio, minha colega de UFPR, a professora Mônica Ribeiro, afirma que é “preciso interromper imediatamente o avanço dessa sangria na escola pública da juventude brasileira”. A divisão do currículo nos cinco itinerários, na prática, “tem como consequência a negação do direito à formação básica comum e pode resultar no reforço das desigualdades educacionais”.

Olhando de perto, não sobra quase nada, além da convicção, com provas, de que as motivações para a reforma foram, principalmente, ideológicas. Nada a estranhar. O governo que criou o NEM carecia de legitimidade; o que o implementou, assumiu a destruição da educação pública como sua prioridade. Mais difícil é entender por que um governo progressista se dispõe a mantê-lo quando deveria, simplesmente, revogá-lo.

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