Renato Freitas, um de nós, contra eles

A atuação do petista tensiona e confronta os interesses das elites políticas paranaenses, que movem contra ele uma perseguição política e racista

Uma das cenas mais lamentáveis da política paranaense recente pode ser vista, desde junho, nas redes sociais e no YouTube. Falo da sessão do dia 20 daquele mês, quando o presidente da Assembleia Legislativa, o deputado Ademar Traiano (PSD), aos gritos, censura e silencia o também deputado Renato Freitas (PT), afirmando que “é chegado o momento de Vossa Excelência entender o que é um parlamento, aqui não é brincadeira”.

Não foi a primeira vez que o deputado petista é coagido pela presidência da Assembleia. Meses antes, Traiano afirmou que ele precisava parar de se “vitimizar”.

Vamos lá. Um homem negro, nascido e criado na periferia da capital, vítima inúmeras vezes da truculência e do racismo da Polícia Militar e da Guarda Municipal, que teve seu mandato de vereador cassado em uma chicana racista da CMC, revertida depois pelo STF, e eleito deputado estadual, está a anos luz de ser uma vítima. Antes pelo contrário, ele reúne muito mais fibra e coragem que a maioria dos seus detratores juntos.

E é justamente isso que incomoda Traiano e as elites políticas paranaenses, que preferem e trabalham para que os subalternizados permaneçam na posição, passiva e conveniente, de “vítimas”. Como Renato se recusa a desempenhar esse papel, os coronéis se movem, novamente, para tentar silenciá-lo, movendo contra ele mais um processo que pretende cassar seu mandato, a exemplo do que fizeram, ano passado, os vereadores de Curitiba.

Em ambos os episódios, Traiano censurou o deputado petista depois de suas falas contra o deputado e pastor evangélico Missionário Ricardo Arruda (PL), um dos mais ardorosos defensores do fascismo bolsonarista entre os parlamentares paranaenses. Em ambos os episódios Arruda, que mentiu no plenário sobre o assassinato do adolescente Caio Ferreira pela Guarda Municipal e sobre o MST, teve suas mentiras rebatidas e denunciadas, também no plenário, por Renato Freitas.

Apesar das imposturas, Arruda não foi censurado aos gritos, não teve seu microfone cortado, nem precisou ouvir que é hora de ele entender o que é um parlamento.

Trajetórias distintas

Tanto Ademar Traiano como Ricardo Arruda têm seus percursos políticos bastante distintos da trajetória de Renato Freitas. Eleito para seu quinto mandato como presidente da Assembleia, Traiano chegou a ser citado em delação durante a “Operação Quadro Negro”, como um dos beneficiários do esquema que, na gestão do hoje deputado federal Beto Richa, desviou recursos da educação para beneficiar aliados políticos do então governador.

Em coluna de 2019, nosso editor Rogerio Galindo cogitava a possibilidade, com base em conversas que circulavam nos corredores da Assembleia, que as projeções para Traiano eram “sombrias”, justamente em função de seu suposto envolvimento no esquema de desvio de verbas da Secretaria da Educação.

Se eram sombrias, deixaram de ser. O deputado segue mandando e desmandando no parlamento estadual, conseguiu nomear a esposa para três cargos no governo de Ratinho Jr. e tem cacife até para distribuir ingressos para o embate, na Arena, entre Athletico e Flamengo, coincidentemente na mesma sessão em que os deputados aprovaram o perdão de uma dívida de R$ 73 milhões do clube local com o governo do estado.

Foi também Traiano, à época no PSDB, quem presidiu a execrável sessão de 29 de abril de 2015, quando o parlamento aprovou o sequestro do Fundo de Previdência dos servidores enquanto professores e estudantes eram massacrados pela PM de Richa e Fernando Francischini. Alheio à violência, ele chegou a ameaçar seguir a votação apenas com a bancada governista, caso a oposição se retirasse do plenário.

O evangélico Ricardo Arruda, por sua vez, emergiu do chamado “baixo clero” da ALEP pegando carona na onda reacionária que alçou ao poder a extrema-direita em 2018. A folha de serviços prestadas pelo deputado ao bolsonarismo é exemplar.

Ele defendeu a hipótese de uma “ruptura institucional” em 2021. Ao vivo, em uma rádio de Cascavel, aplaudiu e estimulou os atos golpistas de 8 de janeiro. Em 2022, afirmou, no plenário da Assembleia, que “nunca houve ditadura em nosso país” e que “os únicos torturados mereciam (…) e acho que foi pouco”.

Negacionista, ele foi um dos autores do projeto contra a obrigatoriedade do passaporte sanitário e afirmou, orgulhoso, não ter tomado a vacina contra a Covid-19. Também já tentou cassar os direitos políticos de diretores de escola, reitores de universidade e órgãos de pesquisa, apresentando Projeto de Lei que pretendia impedi-los de se filiarem a partidos políticos. Novamente sem nenhuma surpresa, o PL nada falava sobre a atuação política e partidária de pastores e missionários evangélicos.

No começo desse ano, foi denunciado pelo Ministério Público, acusado de tráfico de influência, desvio de dinheiro público e associação criminosa. De acordo com o MP, Arruda usou sua influência política para, em troca de dinheiro, tentar reintegrar PMs banidos da corporação. O PL afastou o deputado da presidência do seu diretório municipal, Arruda responsabilizou uma ex-assessora e acusou o Ministério Público de o perseguir por “razões ideológicas”.

Representar as periferias

Se contrastadas as três trajetórias, não são surpreendentes os embates de Arruda e Traiano com Renato Freitas, uma das poucas vozes dissonantes na Assembleia Legislativa, assim como já o foi na Câmara de Vereadores. Negro, nascido e criado na periferia, ele vive uma realidade que a maioria de seus pares só finge conhecer e se importar a cada quatro anos, sempre em busca de votos.

Coerente com sua história e leal aqueles que o elegeram, Renato Freitas se tornou o principal representante dos grupos subalternizados e periféricos. Cumpre seu papel de tensionar a política institucional, criando outros espaços, práticas e experiências que ampliam e radicalizam as possibilidades de participação e denunciam os limites da democracia liberal, tão bem (ou mal) representada por figuras como Traiano e Arruda.

Em uma Assembleia constituída, majoritariamente, por gente alinhada com e a serviço dos poderosos, que agem como se a cidade e o estado lhes pertencessem, Renato incomoda com sua postura antipolítica e, por isso mesmo, politizante naquele sentido que perturba a ordem institucional, tenha ela a cara do Estado, das igrejas ou do mercado.

Não por acaso, e sem nenhuma censura da presidência, Renato é frequentemente acusado, pelo pastor bolsonarista, de drogado, de “funkeiro”, de defender e ter associação com facções criminosas. Arruda, inclusive, chegou a abrir Boletim de Ocorrência na Polícia Civil alegando se sentir ameaçado pelo deputado petista, uma artimanha que seria apenas patética se não fosse reveladora do pouco apreço da extrema-direita pela democracia.

Pouco apreço pela democracia e desprezo e ódio pelos movimentos sociais e pelas vidas que considera descartáveis. Em uma das suas intervenções na ALEP, Arruda acusou o MST de não produzir alimentos orgânicos, mentira desmascarada não apenas por Freitas, mas por outro deputado de oposição, Requião Filho (PT).

Arruda mentiu também quando tentou culpar Caio Ferreira, um adolescente de 17 anos brutalmente assassinado por soldados da ultra militarizada Guarda Municipal, pela sua própria morte. De acordo com o bolsonarista, Caio traficava drogas, estava armado com uma faca de 25 centímetros, escondida em seu boné, e ameaçou os policiais, que agiram em legítima defesa.

Caio não era traficante, não houve ameaça, tampouco uma faca, plantada na cena pelos próprios agentes. Ele foi executado, sem dó ou piedade. Também sem dó ou piedade, o adolescente teve sua memória vilipendiada pelo deputado evangélico e bolsonarista, uma estratégia narrativa amplamente utilizada pela extrema-direita para justificar e legitimar a política que criminaliza e assassina a população pobre.

Faz parte dessa estratégia impedir a representação das periferias em espaços de poder como a Câmara de Vereadores e a Assembleia Legislativa. Por isso a perseguição movida contra Renato Freitas, resultado de um ódio que é, a um só tempo, racial e de classe. Não é verdade que Renato Freitas desconhece o que é um parlamento. O que incomoda é que sua concepção e sua ação contradizem e denunciam aqueles que agem como se o parlamento fosse a extensão de suas igrejas. Ou um puxadinho da casa grande.

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