Livro revela a história de Maurício Hochschild, o ‘Schindler boliviano’

“Fuga para os Andes” narra uma das mais intrigantes – e ainda desconhecida - história de resgate de judeus durante o Holocausto

La Paz, Bolívia

No início dos anos 1930, o magnata da mineração e um dos homens mais ricos da América do Sul, Moritz ‘Maurício’ Hochschild, era conhecido por sua astúcia nos negócios e por seu papel no comércio de estanho boliviano, matéria-prima que representava mais da metade das receitas de exportação do país.

Alemão de origem judaica, nascido em fevereiro de 1881 em Biblis, no Noroeste da Alemanha, Hochschild, no entanto, também era visto como um empresário cruel, que explorava os trabalhadores em suas minas e exercia influência sobre a política da Bolívia, terra na qual optou por fazer morada a partir de 1921, depois de ter passado pela Espanha, Austrália e Chile.

A imagem negativa, que acabou por prevalecer durante anos, só mudaria recentemente, décadas depois da morte de Maurício, ocorrida em 1965, num hotel em Paris.

Arquivos revelados

Em 1999, expressiva quantidade de documentos pertencentes às empresas de Hochschild foi descoberta em armazéns da companhia estatal de mineração da Bolívia, Comibol. A biblioteca do Congresso do país, de posse do conteúdo, reconheceu o valor histórico do arquivo e uma equipe foi contratada para organizar a papelada, que revelaria aspectos desconhecidos da vida de Maurício Hochschild, entre os quais sua liderança para patrocinar o resgate de cerca de 20.000 judeus da Alemanha nazista e da Europa ocupada, antes e durante a Segunda Guerra Mundial.

Especialmente entre 1938 e 1940, Hochschild foi responsável por trazer milhares de refugiados para a Bolívia, em um momento em que muitos países haviam fechado suas portas para judeus em fuga.
Os arquivos revelaram que Hochschild não apenas ajudou os judeus a escaparem da Europa, mas também os reassentou na Bolívia, investindo sua própria fortuna e usando sua influência junto à elite nacional para garantir proteção e emprego aos refugiados.

De vilão, Hochschild passou a ser visto com outros olhos. Para alguns, agora, ele é o “Schindler Boliviano” – numa alusão ao papel exercido pelo empresário alemão Oskar Schinlder, responsável por salvar cerca de mil judeus da morte nos campos de extermínio nazistas, durante a Segunda Guerra. No entanto, se ambos merecem reconhecimento – e de fato o merecem –, é natural observar algumas diferenças, entre as quais o número de pessoas beneficiadas: Hochschild teria salvo cerca de 20 vezes mais judeus do que Oskar Schindler, sem contar que os fez atravessar o oceano, diferente de seu conterrâneo, que atuou em Cracóvia, na Polônia ocupada pelas forças de Hitler, na própria “boca do lobo”.

Robert Brockmann e Raúl Peñaranda, autores de “Fuga para os Andes”.

A trama envolvendo a história de Hochschild (até então pouco conhecida) é detalhada a partir de acurado trabalho de pesquisa realizado pelos jornalistas Robert Brockmann e Raúl Peñaranda, autores do livro “Fuga para os Andes”, da editora Aguilar, parte do grupo Penguin Random House, lançado no primeiro trimestre de 2023.

A obra conta, com base em fontes documentais, audiovisuais e orais, o empenho do empresário Maurício Hochschild para dar guarida aos judeus – e vai além, trazendo o tratamento da situação política boliviana. Ao contrário de outras biografias em que os contextos servem apenas como pano de fundo, em ‘Fuga para os Andes’, as tensas disputas internas na Bolívia e a forma como o país tentou ganhar legitimidade no cenário internacional são centrais na narrativa, fornecendo a chave para a abertura e o fechamento das fronteiras migratórias, bem como para os elogios e perseguições ao defensor do resgate dos judeus. Os autores levam em consideração o fato de que o leitor pode não conhecer a história política da Bolívia e os ajuda a entender como as oscilações da política boliviana – caracterizada por golpes palacianos e estruturas institucionais frágeis – se tornaram uma oportunidade para facilitar a entrada de judeus europeus perseguidos.

Feliz coincidência

Conforme explica Robert Brockmann, a ideia de escrever “Fuga para os Andes” surgiu de projetos individuais tanto dele quanto de Raúl Peñaranda. A feliz coincidência – que uniu os colegas de profissão e ex-colegas de faculdade –, nasceu de um contato que Robert recebeu de um antigo funcionário de Hochschild (oferecendo a ele documentação valiosa), ao mesmo tempo em que Peñaranda havia recebido uma bolsa de estudos para pesquisar no Museu do Holocausto nos EUA, onde coletou documentos relevantes para escrever sobre o “barão do estanho”.

Percebendo que tinham interesses em comum, os jornalistas decidiram somar forças e criar um livro definitivo sobre o assunto.

‘As comunidades judaicas possuem uma memória longa’

Quem dá mais detalhes sobre a obra é o próprio Robert Brockmann, que concedeu entrevista exclusiva, direto de La Paz, onde mora. Confira:

Com base em suas pesquisas, qual foi o principal motivo que levou Mauricio Hochschild a patrocinar o resgate dos 20.000 judeus, a partir de 1938?
Robert – Sua experiência direta com o nazismo, em 1933. Quando os nazistas chegaram ao poder na Alemanha, uma das primeiras medidas antissemitas que tomaram foi privar os judeus alemães no exterior de sua nacionalidade alemã. Esse era o caso de Hochschild, que foi obrigado a optar por outra nacionalidade, no caso, argentina. Em sua viagem à Alemanha naquele mesmo ano, ele foi maltratado pelos nazistas e escapou de campos de concentração ou algo pior apenas porque, ironicamente, possuía um passaporte estrangeiro. Ele também testemunhou os resultados do boicote nazista aos negócios dos judeus, que envolviam maus-tratos e discriminação. Provavelmente, Maurício intuiu que isso só levaria a coisas piores. As comunidades judaicas possuem uma memória longa e é possível que essa “memória genética” – chamemos assim – tenha acionado todos os alarmes sobre o que poderia acontecer. Isso, somado aos apelos de socorro de entidades judaicas alemãs e de outros países para sua própria organização empresarial. Preocupado, ele até quis resgatar crianças cristãs.

O que o motivou a escrever o livro e como foi o processo de pesquisa? Quais foram as principais fontes de informação utilizadas?
Robert – Raúl Peñaranda e eu escrevemos o livro juntos. Em 2017, vários fatores de interesse sobre a vida de Hochschild convergiram. Por um lado, o Arquivo Histórico da Mineração Boliviana, criado pelo antigo líder sindical Edgar Ramírez, ganhou destaque logo após sua inauguração. Eles descobriram grandes quantidades de documentos anteriores à Revolução Boliviana de 1952, que estavam expostos ao tempo e em processo de deterioração natural. Entre eles, havia documentos relacionados às empresas de Hochschild e correspondências sobre o resgate de judeus do Terceiro Reich e seus territórios ocupados antes da Segunda Guerra Mundial. Naquela época, Raúl Peñaranda trabalhava na Agência de Notícias Fides e achou o assunto tão fascinante que surgiu a ideia de um livro para ele. Pouco antes, a escritora boliviana Verónica Ormachea havia publicado o romance “Los infames”, no qual Hochschild aparece como salvador de judeus. E, terceiro, naquele ano, publiquei o livro “Dos disparos al amanecer”, uma biografia do presidente boliviano Germán Busch, com quem Hochschild se uniu em 1938 para o resgate de milhares dos judeus. O livro continha um par de capítulos sobre essa aliança salvadora. Anos antes, aliás, o historiador boliviano Mariano Baptista havia me entregue um envelope com documentos sobre Hochschild, que foram a base desses capítulos. Em 2017, a agência de notícias AFP publicou uma reportagem com entrevistas, entre outros, de Ramírez e minha, que foi divulgada em vários idiomas. Dias depois da publicação, alguém entrou em contato comigo: era um antigo funcionário de Hochschild, oferecendo contatos com ex-colaboradores e documentação, na verdade, um mar de documentação. Enquanto isso, Peñaranda havia ido ao Museu do Holocausto dos EUA, em Washington, com uma bolsa de estudos, onde coletou a documentação relevante com o objetivo de escrever um livro. Em 2018, Peñaranda e eu, colegas de universidade e amigos, soubemos o projeto um do outro de escrever um livro sobre Hochschild, com ênfase em seu papel como salvador de judeus. Então, nos questionamos: por que escrever dois livros, se podemos reunir nossa documentação e escrever o livro definitivo?. A resposta foi fácil. O melhor era escrever o livro a quatro mãos. Foi o que fizemos.

Por que o Sr acredita que Hochschild teve sucesso em influenciar o então presidente boliviano Germán Busch a abrir as portas para os judeus, mas foi infrutífero em seus esforços com países como Estados Unidos e Reino Unido, com quem ele também conversou e mantinha relações?
Robert – Busch, filho de um médico alemão e herói de guerra, era um patriota nacionalista que se entristecia ao ver seu país em atraso, entre outras coisas, devido à falta de população em um território tão extenso. Não foi difícil para Hochschild persuadir Busch a abrir as fronteiras do país para a imigração. Havia, ainda, um tema de figura paterna, dada a diferença de idade entre os dois, eis que o jovem Busch tinha 36 anos. Mas, se a ideia de Hochschild era resgatar judeus do iminente Holocausto, o presidente queria abrir as fronteiras “para todas as pessoas de boa vontade” dispostas a trabalhar na terra. Provavelmente, o próprio Hochschild acreditava que seria possível conseguir um número suficiente de agricultores judeus, embora isso fosse historicamente improvável. No entanto, o que vale é: a situação na Europa era tão urgente que o decreto boliviano de junho de 1938 ainda não estava pronto quando os primeiros navios carregados de refugiados partiram em direção aos portos do norte do Chile, a escala necessária antes da Bolívia.

Qual foi o momento mais gratificante para você, como autor, durante a criação do livro?
Robert – Tanto para Raúl quanto para mim, foi muito gratificante que, após anos de trabalho minucioso, uma editora tão importante quanto a Aguilar, parte do grupo Penguin Random House, tenha se interessado pelo nosso livro. Acima disso, porém, nada se compara à sensação de encontrar documentos inéditos que lançam luz sobre um tema tão universal, de interesse humano tão grande e sobre um evento trágico de proporções bíblicas.

Gostaria que o Sr. estabelecesse um paralelo entre a Bolívia que recebeu refugiados judeus, mas também abrigou figuras proeminentes do aparato governamental e militar de Hitler, como Klaus Barbie. Qual desses grupos teve mais impacto no país que conhecemos hoje e, especialmente, qual foi o papel de Barbie nas decisões do governo boliviano durante os anos em que ele esteve aqui?
Robert – Barbie é uma figura particularmente repugnante. É dolorosamente paradoxal – como Raúl e eu afirmamos no livro – que a Bolívia seja mais conhecida por ter sido o refúgio de um comissário nazista de uma cidade francesa, durante a ocupação, do que por ter abrigado 20.000 judeus. Mas, de fato, Barbie esteve na Bolívia, desfrutou de proteção e trabalhou para vários governos, começando em meados dos anos 1950 e terminando em 1983. Ele foi fundamental na criação de aparatos de inteligência e repressão, e seu nome nunca esteve associado a algo bom. Houve outros nazistas menos proeminentes, ou pelo menos envolvidos nos crimes do regime, que se mantiveram afastados da vida política boliviana.

Na sua opinião, por que é importante continuar falando, estudando e debatendo o Holocausto?
Robert – A memória da humanidade é frágil. Três gerações já se passaram desde o Holocausto (chamado de Shoá pelos judeus). e vozes que tentam relativizá-lo, justificá-lo ou até mesmo negá-lo estão ganhando força. Se não lembrarmos de sua absoluta brutalidade e barbárie, teremos cada vez mais genocídios como o de Ruanda em 1994, ou os Bálcãs, em 1992 e adiante, ou os uigures na China, ou os rohingyas em Mianmar. Infelizmente, vemos pessoas falando abertamente sobre a superioridade ou inferioridade de uma raça ou cor de pele. Livros como o nosso, creio, ajudam a manter viva a memória do que aconteceu e mostram o quão absurdo e mentiroso é o negacionismo, e a atrocidade que ocorreu.

Para quem quiser visitar La Paz, a fim de entender melhor a história dos judeus na cidade e a história do próprio Hochschild, o que o Sr. indica?
Robert – O cemitério judaico é uma visita obrigatória. Além dele, porém, não há vestígios evidentes da passagem dos judeus pela Bolívia, exceto indústrias ou serviços com seus nomes: como a confeitaria Eli’s, a indústria de panificação Leo Nothmann, a editora e livraria Los Amigos del Libro e coisas do tipo. O prédio do antigo Círculo Israelita, onde estava a sinagoga, foi vendido. A sinagoga atual, muito pequena, está no atual Círculo Israelita, que é quase uma fortaleza. Então, realmente não há marcos palpáveis daquela presença.

Você sabia?

Em 1939, Hochschild colocou em curso ação para abrir uma Hilfsverein, espécie de associação de bem-estar destinada aos migrantes judeus. Para tanto, colocou à disposição US $ 30.000 de fundos de sua empresa, prevendo a chegada de mil pessoas, inicialmente. Adicionando uma doação de US$ 137.500 do Comitê Judaico Americano de Distribuição Conjunta, Hochschild criou a Sociedade para a Proteção dos Imigrantes Israelitas, conhecida como Sopro, na sigla em espanhol. Os fundos pagaram um hospital de 20 leitos, uma casa infantil e um jardim de infância em La Paz, além de um retiro em Cochabamba para judeus que sofriam com a altitude.

Antes da Segunda Guerra Mundial, registros mostram que não havia mais de 100 judeus na Bolívia; número que saltou para cerca de 15 mil na década de 1940, de acordo com dados do El Círculo Israelita de Bolivia. Atualmente, a população judaica no país é de pouco mais de 300 membros, e está encolhendo. Para se ter ideia, há apenas um rabino em toda Bolívia.

Fechamento

Embora controversa em relação à atuação empresarial, a história de Mauricio Hochschild e sua luta para salvar judeus durante o Holocausto na Bolívia é um exemplo poderoso de como um indivíduo pode fazer a diferença em momentos de crise. Sua coragem e determinação deixaram um legado, que passa a ser conhecido, ressoando no presente e, quiçá, no futuro – inspirando mais pessoas, com destaque aos líderes das esferas privada e pública, a agirem em momentos sombrios da história.

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