Pequenos irmãos, Bolsonaro e Órban são os arquitetos da destruição

O governo húngaro é referência para bolsonaristas. Com a derrota de Trump, não é exagero dizer que Viktor Órban é um dos principais aliados internacionais do presidente. Não apenas a Hungria é o sonho de consumo do bolsonarismo, como a trajetória de Órban tem servido como parâmetro para o próprio Bolsonaro

Não foi apenas para tentar salvar o mundo de uma Terceira Guerra Mundial. A visita de Bolsonaro ao líder russo Vladimir Putin também rendeu algumas fotos para as redes sociais bolsonaristas, e revelou o péssimo timing do genocida para, supostamente, tentar desfazer a imagem de pária internacional.

Na volta para casa, uma segunda visita, essa sim, do ponto de vista da consolidação do bolsonarismo, mais significativa que a primeira.

A passagem por Budapeste, capital da Hungria de Viktor Órban, não estava nos planos iniciais da comitiva e, parece, foi definida e planejada em cima da hora. Um indício da improvisação diplomática é que o Itamaraty e a Secretaria de Comunicação só revelaram os motivos da viagem quando Bolsonaro já estava em Moscou, segundo as redes bolsonaristas, pregando a paz no mundo.

Nada de muito produtivo em termos práticos saiu do encontro, a não ser, talvez, a piada de mau gosto sobre a disposição dos dois governos em cooperarem nas áreas de cultura e cooperação humanitária.

Mas o líder húngaro é referência para Bolsonaro e os bolsonaristas. Com a derrota de Trump, não é exagero dizer que Viktor Órban é, hoje, um dos principais aliados internacionais do presidente brasileiro – não por acaso, foi um dos poucos líderes a comparecer a sua posse, em janeiro de 2019.

Não é difícil entender a admiração. Não apenas a Hungria é o sonho de consumo do bolsonarismo, como a trajetória de Órban desde que assumiu o governo do país, em 2010, tem servido como parâmetro para o próprio Bolsonaro. Em pouco mais de uma década como primeiro-ministro, Órban encheu a suprema corte húngara de aliados; mudou regras eleitorais a seu favor e do seu partido, o Fidesz (a União Cívica Húngara); aniquilou a mídia independente; perseguiu, fechou e aparelhou universidades.

Na seara dos costumes, as similaridades são muitas. Lá como aqui, o governo empreende uma verdadeira guerra a espantalhos conceituais como a “ideologia de gênero” e vem aprovando, seguidamente, medidas de cerceamento de direitos e liberdades principalmente de mulheres e da comunidade LGBT.

Em coletiva à imprensa, ao lado de Órban, Bolsonaro classificou o país do leste europeu como um “pequeno grande irmão”, alinhados “pelos valores que nós representamos, que podem ser resumidos em quatro palavras: Deus, pátria, família e liberdade”.

Bolsonaro esteve com Putin em meio à crítica internacional contra possível invasão da Ucrânia pelos russos. Foto: Agência Brasil.

Democracia iliberal

Há uma tendência, entre analistas brasileiros, a reproduzir certo estranhamento acerca da ascensão do projeto autoritário de Viktor Órban, um modelo de governo que costuma ser classificado, no vocabulário das ciências políticas, de “democracia iliberal”, um regime centrado na destruição das instituições e na restrição dos direitos individuais. Resumidamente: uma democracia sem direitos, por paradoxal que isso possa parecer.

O exemplo mais recente é o do sociólogo Celso Rocha de Barros. Em sua coluna na Folha dessa semana, ele se refere ao país como “[considerado] um caso de sucesso por todas as agências internacionais” graças, entre outros, a uma transição pós-comunista tranquila, se comparada a de seus vizinhos, seu ingresso na União Europeia e sua capacidade de estabelecer uma “democracia razoavelmente sólida”, destruída em poucos anos, e sem que, para isso, Órban precisasse de um golpe de Estado aos moldes clássicos.

Não há nada de errado nessas análises. Mas eles perdem de vista aspectos da história recente dos países do leste europeu que são, inclusive, importantes para entendermos as afinidades entre Bolsonaro e o premier húngaro.

Em ensaio publicado na revista Piauí em agosto de 2019, “A hora dos descontentes”, o búlgaro Ivan Krastev e o norte-americano Stephen Holmes sugerem que é preciso olhar com cuidado a implantação do modelo liberal de governo, após o colapso do socialismo, como um dos motivos que ajudam a entender o colapso da democracia em alguns países do Leste europeu.

Queda do muro de Berlim. Foto: arquivo.

De acordo com o artigo, nas décadas seguintes a 1989 “a filosofia política do Leste europeu (…) podia ser resumida em um único imperativo: imitem o Ocidente!”. Os nomes dados a esse processo variavam de democratização a liberalização, de integração a europeização, mas tinham o mesmo fim: “queriam que seus países se tornassem ‘normais’, o que significava dizer ‘como o Ocidente’”.

Superada a euforia inicial, as implicações em médio prazo não foram tão alvissareiras. Entre outras coisas elas produziram um conjunto de ressentimentos, de sentimentos de degradação e humilhação, de sujeição e sensação de perda de soberania, além do temor constante da imigração e dos imigrantes de países africanos e do Oriente Médio, que contribuiu para recrudescer o nacionalismo de extrema-direita.

O futuro da Europa

Após duas décadas da integração, no discurso dos movimentos e partidos chauvinistas como o Fidesz, o multiculturalismo liberal dos vizinhos ocidentais é uma ameaça a ser rechaçada em nome de um retorno aos padrões europeus considerados puros, de que as ideias de “Deus, pátria, família e liberdade” são indissociáveis. Nas palavras de Krastev e Holmes, na “Europa Ocidental, o iliberalismo nasce do temor de que sociedades liberais sejam incapazes de lidar com a diversidade. No Leste, a questão é, antes de tudo, prevenir o surgimento dessa diversidade”.

É mais ou menos esse o teor do discurso de Viktor Órban, pronunciado no encerramento do encontro anual da “nação húngara” em janeiro de 2019, em que ele opõe à Europa “globalista”, os princípios de um continente fundado na democracia cristã iliberal em substituição à democracia laica, liberal e de esquerda; na defesa do cristianismo em oposição às religiões muçulmanas; no patriotismo como trincheira contra a imigração; na supremacia da família cristã em detrimento das “famílias adaptáveis”; na tradição, não na modernidade multicultural das “sociedades abertas”.

Em suma, um retorno imaginário a um passado mítico – o da Europa como uma “grande civilização” – como um meio de imaginar seu horizonte de expectativa, sintetizado, esse movimento, na frase que encerra o discurso: “Há trinta anos pensávamos que a Europa era o nosso futuro. Hoje, acreditamos que somos o futuro da Europa”.

Vista dessa perspectiva, a aliança entre Bolsonaro e seu “pequeno irmão” ganha outros contornos, mais profundos que o aparelhamento e os usos das instituições democráticas como suporte a um projeto autoritário. É corrente nos discursos, se não tanto de Bolsonaro, praticamente incapaz de articular qualquer coisa inteligível, mas dos intelectuais e aparelhos midiáticos que procuram dar forma ao bolsonarismo, a defesa do Ocidente contra os ataques que, de fora e de dentro, intentam destruí-lo.

Olavo de Carvalho, guru do bolsonarismo. Foto: reprodução.

Quando não estava exercitando suas taras por cus e pirocas, Olavo de Carvalho tagarelava sobre isso com uma insistência obsessiva e paranoica. E não é outra mensagem dos documentários da empresa Brasil Paralelo, colaboracionista de primeira hora do bolsonarismo, para ficarmos apenas em dois exemplos.

Por isso, a posição de pária internacional não incomoda Bolsonaro e seus asseclas. Tampouco há qualquer tipo de contradição entre o caráter anti-moderno, iliberal e autoritário de seu governo, e o desejo do bolsonarismo de inscrever o Brasil na “longa história da civilização Ocidental”. Porque o Ocidente que eles almejam não é o da modernidade e da democracia, com suas possibilidades, limites e contradições.

Mas esse lugar e tempo que alguns costumam chamar, apressadamente, de “Idade Média”. Um equívoco, porque eles não suportariam pisar o mesmo chão de camponeses em revolta e suas manifestações populares, de heréticos e pagãos, de goliardos e seus cantos profanos, ou de um artista como Hieronymus Bosch.

O iliberalismo autoritário de Bolsonaro e Órban tem os pés bem fincados no presente, ainda que o passado sirva como uma arma política e discursiva eficaz. É desse presente que eles pretendem fazer ruína, para que não sobre nenhuma possibilidade ou promessa de futuro que não a do horror que eles projetam e do qual são os principais arquitetos.

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