Jogo sujo

É desconfortável admitir, mas subdividimos as pessoas em categorias: em jogadores (as tais pessoas classificadas como “padrão”) e os alvos (o resto do mundo)

Num aparente jogo de cartas marcadas, o que podemos fazer quando o destino troca o nosso papel? Chorar, virar a mesa ou tentar analisar profundamente as regras impostas? Talvez seja assim que surjam os poetas, os pensadores e os ativistas.

O jogo é simples e de fácil compreensão: basta encontrar um círculo grande, com vários círculos em seu interior (sendo que o central geralmente é vermelho, de fácil identificação) e mirar dardos pontiagudos nele. Ganha quem acertar o maior número de dardos no alvo, de preferência na região colorida. Tudo muito simples e até informal, exigindo pouca destreza dos jogadores: praticamente um pouco de mira e força. Esta atividade simples na categoria manual, se torna cruel quando adaptada à nossa sociedade. E acontece o tempo todo, só que é muito difícil de ser identificado quando os jogadores somos nós. Faz parte da cegueira do privilégio de ser jogador, em um entretenimento em que, às vezes, nem os alvos conseguem enxergar a exata crueldade de cada lance.

É desconfortável admitir, mas subdividimos as pessoas em categorias: em jogadores (as tais pessoas classificadas como “padrão”) e os alvos (o resto do mundo). Claro que hoje em dia há inúmeras subdivisões entre esses dois grupos que podem ser classificadas por: gênero, tipo físico, tom de pele, grau de instrução, sexualidade, status e saldo bancário. Compreender todos esses subníveis é bem complexo porque às vezes eles se entrelaçam, sendo necessária alguma clara demonstração de vulnerabilidade para serem, então, identificados. Sabe como é, culpa dessas tais revoluções.

Em 2019 levei um baita tombo social porque me tornei um alvo ao adquirir deficiência em decorrência de dois AVCs. Na hora eu não me toquei disso. Para mim, eu só estava fisicamente machucada e iria voltar ao “normal” (uma palavra que repudio atualmente, porque, para mim, a normalidade é ilusória). Mas, eu que até então sempre fui benquista, de repente me vi com um grande alvo na minha testa.

Apesar de já ter passado por dificuldades financeiras (já trabalhei vestida de peru em mercados para pagar boleto, e tenho muito orgulho disso), sempre fui aceita pelas pessoas; tanto pela aparência como pela inteligência. Bem, justamente estes quesitos foram bem desfalcados pela minha lesão. Verdade seja dita: o padrão de beleza não abre espaço para quem está numa cadeira de rodas ou se locomove com uso de uma bengala. Se antes eu recebia olhares de interesse, de repente passei a receber olhares de piedade.

Falar e pensar com sequela cognitiva também não é muito fácil: não conseguia estruturar ideias, nem formular argumentações, e, ainda por cima, minha mente insistia em pensar em outra língua. Para o meu interlocutor, essas trapalhadas eram engraçadas (realmente algumas até eram) e não demorou muito para as minhas sequelas serem alvo de chacotas. Se as pessoas sabiam que aquilo tudo não era proposital, mas derivado da lesão? Acredito que não, pois elas eram efeitos invisíveis para o mundo. Eram uma tortura apenas para mim, que estava presa neles.

Porém, o mais dolorido de se tornar um alvo é que ele pesa, e como! Toda essa situação foi me gerando uma angústia em que deixaram os meus nervos à flor da pele. Não aceitava a atual situação e passei a culpar o meu corpo, o meu cérebro, o AVC e todas as pessoas à minha volta. Ninguém quer ser alvo dos outros, todo mundo quer ser aceito e participar da brincadeira. A raiva me consumiu e passei a ser julgada por todos que antes gostavam de mim: comecei a ser chamada de egoísta, preguiçosa e vitimista. Para mim esses adjetivos foram terríveis, já que por estar vulnerável, acreditei em todos eles. Pensei que, se agora tinha me tornado assim, por que havia sobrevivido? Para ficar sozinha e ser maltratada por todos?

Com o meu ingresso nos grupos de apoio de sobreviventes, comecei a ter consciência do que realmente estava acontecendo. Aliás, foi lá que descobri que agora era uma PCD (pessoa com deficiência). Não demorou muito e passei a pesquisar sobre o assunto e fui percebendo que o problema não estava exatamente em mim, mas no alvo que haviam me colocado depois do meu acidente vascular cerebral.

Qualquer tipo de desigualdade sempre me incomodou (olha só para o jornal em que escrevo!), mas nunca tive a real dimensão da problemática até essa minha experiência. E não tinha como, pois, o privilégio de nunca ter sido visto como um alvo me cegava. Ainda hoje, há incertezas sobre o significado desta palavra. Há quem ache que ser privilegiado é não ter problemas, mas vai muito além disso, é ter oportunidade de escolha. Muitas pessoas vivem em situações muito complicadas, e por mais que lutem, é muito difícil deixarem de serem alvos neste jogo de azar. Por isso é tão árduo lutar contra o preconceito: ele é a regra do jogo.

Difícil não significa impossível. E, ao meu ver, não existe uma fórmula mágica para mudar de brincadeira quando ela já perdeu a graça, mas múltiplas. A maioria das vezes que nos entretemos em um usual passatempo, o fazemos mais por hábito do que por diversão. O primeiro passo para mudar é ter consciência de que aquela prática é chata, o segundo passo é se questionar do porquê de se estar fazendo aquilo. Caso você esteja coçando a sua cabeça neste exato momento, já aviso que esta etapa já foi cumprida por estudiosos de cada área. Basta ouvi-los. (Aproveita e dá um google.)

Depois é com a gente mesmo. E aí não é tarefa fácil, muito pelo contrário. Significa sair da sua zona de conforto e não seguir o caminho da manada. Já percebeu como as ações agressivas e seletivas partem de uma ideia em comum e não individuais? E como será que a gente pensa individualmente? Será que nossos pensamentos são refletidos nas nossas ações? Caso eles sejam, o jogo pode até não mudar, mas todo o aspecto desagradável dele aparece para você, ou seja, faz a diferença. Porque aquele resultado é seu, é de sua responsabilidade, de ninguém mais.

Porém, não se engane. É difícil ter essa atitude. Exige coragem para enfrentar o medo de não ser aceito e até, quem sabe, se tornar o próximo alvo. Porém, todos nós somos bem grandinhos e sabemos bem o que é certo e o que é errado, apesar dos discursos vazios e resistentes do tipo: “mas tá tudo bem” e “sempre foi assim”. No fundo a gente sabe quando passa da conta, o duro é admitir.

Não adianta exigir de governos e leis que mudem as regras do jogo se não mudarmos os nossos jogos cotidianos que têm as mesmas bases. Não depende só de quem está na linha de frente, mas de todos nós. Mudando as nossas atitudes, podemos entender melhor como as coisas funcionam (está tudo conectado!). Além disso, se manter para sempre na zona de conforto (apesar da comodidade) não nos possibilita crescer. Porém, ser compatível com o que se pensa, sim! Aliás, nos tornamos grandiosos quando agimos com integridade, e quem sabe assim possamos deixar esse jogo menos sujo. Boa sorte!

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