Lição do dia na Universidade: como chamar de “luta pela liberdade” a manutenção de privilégios

Professor da UFPR prepara disciplina que transforma em discurso acadêmico a paranoia persecutória que a extrema-direita propaga nas redes sociais

Um colega da Universidade vai ofertar, no próximo semestre, um Tópico Especial para a graduação do curso em que leciona “acerca do tema LIBERDADE DE EXPRESSÃO” – assim mesmo, em caixa alta, que é pra todo mundo ouvir o rapaz gritando.

O resumo da disciplina, felizmente optativa, pretende a “partir de uma base conceitual híbrida, oriunda tanto da teoria linguística e estudos correlatos (…) como da filosofia austro-libertária e estudos correlatos (…)”, demonstrar que na última década se observa um “enorme controle acerca do que se pode/deve dizer, como se pode/deve dizer, e quem pode/deve dizer; numa escalada de autoritarismo perpetrado por agentes políticos de esquerda em nome de uma falsa “defesa da democracia”.

Perpassa-o a tese (passe o exagero) “(…) de que LIBERDADE é um conceito de segunda ordem, derivado do conceito mais fundamental de PROPRIEDADE PRIVADA (o que significa que a abordagem deste curso é antagônica à cosmovisão coletivista e estatizante (marxista ou pós-marxsita) hegemônica nos cursos de Ciências Humanas).

O docente arremata seu programa indicando, como requisito, a familiaridade dos futuros discentes com “1984”, de George Orwell, obra que “fornece um referencial simbólico e um vocabulário relevante para dialogarmos sobre o tema no debate público”.

Que Orwell tenha morrido sem nunca negar suas convicções socialistas e antiautoritárias, pouco importa. Também não importa que, durante a Segunda Guerra Mundial, em artigos e missivas, defendeu que trabalhadores britânicos, aproveitando o momento histórico único proporcionado pelo conflito, derrubassem a monarquia e o capitalismo por meio de uma necessária e transformadora revolução.

É o que acontece quando se lê pouco, mal e com má intenção um autor.

Há duas coisas, em especial, que me interessam discutir. A primeira, mais imediata, é sobre os objetivos da disciplina. A nos pautarmos pelo resumo, ela não pretende muito mais além de transformar, em discurso acadêmico, a paranoia persecutória que a extrema-direita costuma propagar nas redes sociais e em canais de YouTube.

Nela não há nada a ser investigado e problematizado. Tampouco se pretende produzir um conhecimento minimamente original a partir de pesquisas orientadas. É um panfleto repleto de certezas e convicções mentirosas, amplamente difundidas nos ambientes golpistas e antidemocráticos, embora travestido de discurso acadêmico.

Sem meias palavras, é pura doutrinação ideológica, paga com os recursos públicos da Universidade e do Setor de Ciências Humanas, que o docente faz questão de desqualificar.

Mas por que convicções mentirosas?

Simplesmente porque não está em curso um projeto de dominação ou de controle da língua e dos meios de comunicação. Não existe uma “escalada autoritária” que pretende banir palavras do nosso léxico, tampouco um “etimologismo seletivo”, seja lá o que isso signifique. Não há ameaça à liberdade de expressão pela “agenda do politicamente correto” e da pressão de “grupos alinhados à ideologia do Identitarismo”.

E em se tratando de um docente do ensino superior, com mestrado, doutorado e aprovado em concurso público, não se pode falar de desinformação.

É uma escolha, perversa e deliberada, por perpetuar a desinformação, espalhar o pânico moral e, não menos importante, desqualificar debates e movimentos que, com erros e acertos, denunciam as nossas inúmeras desigualdades, combatem as muitas formas de violência, físicas e simbólicas, contra as chamadas minorias, e reivindicam uma sociedade e uma democracia mais inclusivas.

Por outro lado, é interessante como o programa organiza, sob o verniz do discurso teórico, o caráter reativo da extrema-direita, temerosa justamente daquelas mudanças que colocam em xeque os seus muitos privilégios, inclusive linguísticos.

Eles não lutam pela liberdade e contra o autoritarismo, mas apenas e simplesmente pela manutenção de uma ordem de coisas que, historicamente, franqueou o acesso a determinados direitos a grupos muito restritos.

A própria Universidade, e não apenas a UFPR, dá testemunho disso, com sua galeria imensa de magníficos reitores, a esmagadora maioria homens e brancos.

Mesmo encampando e sustentando discursos e práticas de mudança, de ser um laboratório de experiências inclusivas, a Universidade brasileira ainda reproduz as desigualdades estruturais de oportunidade e de ascensão que privilegiam determinados estratos e grupos sociais em detrimento de outros.

Apesar disso, militantes como o meu colega pretendem nos convencer que o exercício desses direitos, naturalizados e transformados em privilégios, se baseia em “trocas voluntárias no livre mercado das ideias” e, logo, qualquer tentativa de mudança é “autoritária, estatizante e coletivista”.

Só que isso não é verdade, porque – e insisto nisso – não se trata de uma luta da liberdade contra a opressão, mas da tentativa de assegurar o monopólio sobre determinadas prerrogativas que nada têm de espontâneas ou naturais.

Mas como não cai bem defender abertamente posições arrivistas, os gajos se apresentam como paladinos de uma “liberdade” e em uma cruzada contra inimigos inventados, porém necessários à lógica maniqueísta e ao ódio profundo que têm contra qualquer forma de democracia que ameace ultrapassar os limites estreitos e excludentes da formalidade.

Em uma troca de mensagens no Instagram do perfil “UFPR Livre”, o professor se apresenta como um “cabra da peste destemido”, que não se curva aos “coletivistas ressentidos (e que detestam livros tanto quanto amam o dinheiro dos outros)”. Em troca, foi elogiado por sua “coragem em se expor em um ambiente que notadamente tende a perseguir quem pensa fora da ideologia hegemônica”.

A estratégia, de se apresentar como uma vítima perseguida, mas corajosa, que luta contra o sistema, e que tem a seu favor, além das credenciais morais (ele não é um “parasita preguiçoso” nem “defende bandido”), disposição ao trabalho (porque, diferente dos “baderneiros”, quer devolver à sociedade “resultados relevantes”), é velha.

Mas ainda repercute em determinados ambientes. Afinal, soa heroico lutar contra os moinhos de vento da “ideologia hegemônica” e enfrentar a “escalada autoritária”.

O problema é que a realidade, ao fim e ao cabo, se impõe: o racismo, que eles negam, segue discriminando, violentando e matando a população negra. A homofobia, que eles negam, produz vítimas em escala industrial – somos um dos países que mais mata sua população LGBT. O machismo, que eles negam, ainda serve para justificar a violência e o desequilíbrio na distribuição de direitos entre homens e mulheres.

Não menos importante.

Apesar dos inegáveis avanços, são ainda negros, LGBTs e mulheres aquelas e aqueles que, principalmente, têm sua voz diminuída, quando não silenciada, pelo falo do homem branco, que ainda exerce o domínio e determina, em última instância, quem fala.

Por outro lado, muito provavelmente, meu colega não precisa temer nem se defender de nenhuma dessas agressões. Ele e, arrisco dizer, a maioria dos discentes e docentes que integram o “UFPR Livre”, só se sentem acossados quando outra escalada, a de direitos, ameaça seus privilégios.

Não sei se esse texto o alcançará. Mas se ele chegar a lê-lo, permita que lhe fale francamente: você não luta contra o status quo dominante Você é parte do status quo dominante, e goza, alegremente, com cada um dos privilégios que ele lhe concede. Sua luta é para não os perder.

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