Duas vezes junho

Em Junho de 2013 vivemos uma experiência insurrecional que poderia nos ter legado um outro presente

Não deixa de ser irônico que o processo que tenha culminado com a cassação dos direitos políticos e a consequente inelegibilidade de Bolsonaro, coincida com as efemérides dos dez anos de Junho de 2013. Ironia porque estamos a falar de dois eventos que mantém uma estreita ligação, embora não pelos motivos brandidos pela esquerda institucional.

Não, Junho de 2013 não foi a “antessala do golpe” nem “abriu as portas para o fascismo”. Responsabilizar as manifestações de uma década atrás pelo impeachment de Dilma e a ascensão da extrema direita é terraplanismo político, a mamadeira de piroca do petismo.

Em alguma coluna do ano passado, escrevi que a derrota eleitoral de Bolsonaro era um passo importante, mas nem de longe definitivo, para vencermos o bolsonarismo. O resultado mesmo das urnas, com a eleição de governadores e inúmeros parlamentares alinhados ao genocida, foi um claro indício disso.

As seguidas ameaças do terrorismo e dos terroristas, que culminaram com a tentativa frustrada de golpe no dia 8 de janeiro, depois de bloquearem estradas, levantarem acampamento em cidades Brasil afora e tentarem explodir uma bomba em Brasília, eram mais um sinal de que, mesmo desorganizado e sem respaldo institucional, o bolsonarismo seguia robusto, violento, autoritário e golpista.

Os trabalhos da CPMI mista, que têm logrado êxito ao demonstrar a responsabilidade direta de Bolsonaro e sua ligação com o terrorismo golpista, e o julgamento no TSE, que muito provavelmente tornará o miliciano inelegível pelos próximos oito anos, são movimentos importantes na tentativa de enfraquecer politicamente o ex-presidente.

Mas insuficientes, até aqui, para desidratar o bolsonarismo, cuja resiliência e capacidade de reação não deveriam surpreender mais ninguém. Mesmo sem ser governo, o fascismo bolsonarista segue apostando nas estratégias que, no passado recente, possibilitaram sua ascensão e asseguraram seu protagonismo político.

No plano institucional, a extrema direita respondeu atuando em diferentes frentes.

No intervalo de poucas semanas, conseguiu instalar a CPI do MST, uma tentativa óbvia de criminalizar talvez o mais potente e relevante dos movimentos sociais brasileiros, aprovou o chamado “marco temporal” na Câmara dos Deputados e, nos últimos dias, parlamentares do PL deram entrada no pedido de cassação de seis deputadas de esquerda, uma manobra que conta com o apoio do presidente da casa, o deputado Arthur Lira (PP/AL), que deu trâmite ao processo com uma agilidade inédita.

Mas as cenas de barbárie que testemunhamos em janeiro e as ações coordenadas da extrema direita no parlamento, para ficar apenas nesses exemplos, são o termômetro do que o bolsonarismo está disposto a fazer para levar adiante seu projeto autoritário.

Eles não hesitaram, e não hesitarão, em colocar o país de joelhos, se isso for necessário, para concretizarem seus intentos fascistas. Se conseguirão isso depende, em larga medida, da nossa disposição, e do governo Lula, em não conciliarmos com o terrorismo e os terroristas, mas igualmente com as forças e grupos políticos que os gestaram.

Conciliação ou enfrentamento?

Para muitos observadores, a posse de Lula ensejou a oportunidade de ressignificarmos a palavra anistia, de criarmos outras práticas e instituirmos outras realidades, distintamente das políticas de esquecimento da Nova República em relação a ditadura civil-militar.

Essa visão otimista, no entanto, parece desconsiderar que, para o enfrentamento, não basta boa vontade. Sem uma sociedade civil organizada, com movimentos sociais fortalecidos e uma cultura democrática consistente, não há como levar adiante outra política que não a conciliatória, porque o enfrentamento no campo institucional é, sob distintas formas, resultado também da conjugação de forças que atuam extra institucionalmente.

Mas as condições políticas para o enfrentamento não são forjadas do dia para a noite. Principalmente, elas não são construídas depois de quatro anos de seguidos ataques à democracia, de negacionismos, do estímulo à violência, do cultivo e da disseminação do ódio e da mentira, e de uma política de morte, criminosa e genocida.

É nesse cenário de terra arrasada que se cruzam os dois junhos.

Em Junho de 2013 vivemos uma experiência insurrecional que poderia nos ter legado um outro presente. Estavam em pauta, entre outras coisas, o direito ao transporte público, a mobilidade urbana, a ocupação do espaço público e a humanização das cidades. Mas, além disso, ele foi ensaio para um movimento de ruptura emancipadora, de ampliação e radicalização da democracia.

O legado de Junho se inscreve nas manifestações do ano seguinte, contra a Copa, e nas ocupações secundaristas de 2015 e 2016. Na emergência ou fortalecimento dos novos movimentos sociais; na greve de setores subalternizados, como a dos garis no Rio de Janeiro; e nos movimentos culturais das periferias. No campo institucional surgiram as candidaturas e mandatos coletivos, elegemos ou aumentamos o número de parlamentares indígenas, negras e negros, feministas, LGBTs e das periferias.

Não é pouco para um movimento negligenciado e reprimido pelos governos, sequestrado por setores midiáticos e de direita e, finalmente, submetido a uma política de apagamento por parte do campo progressista, que há dez anos tenta neutralizar as possibilidades de renovação à esquerda que ele anunciava. Um esforço que não se limitou a apagar o “acontecimento Junho”, mas também os seus sentidos e significados.

Nós poderíamos estar vivendo um outro junho de 2023 se tivéssemos tratado as revoltas de Junho de 2013 e sua memória, não para desqualificá-los e impedir sua repetição, mas para alavancarmos as mudanças sonhadas e desejadas nas ruas durante aqueles dias de barulho e rebeldia.

Em suas intervenções na CPMI de 8 de janeiro, o deputado Henrique Vieira, do PSOL carioca, costuma afirmar que a disputa, hoje, não é entre esquerda e direita ou entre concepções distintas de democracia, mas entre duas expectativas de país: de um lado, diz, está o Brasil da ditadura, de Ustra, da tortura, do racismo, do machismo e da homofobia; do fanatismo religioso, da violência, do negacionismo e do ódio. O Brasil de Bolsonaro e dos bolsonaristas e suas mãos sujas de sangue.

E de outro, há a expectativa de um Brasil que, à falta de melhor palavra, chamaremos de democrático. Há uma década essa opção estava clara e as condições políticas nos impeliam a seguir alargando a democracia que havíamos conquistado a duras penas. No fundo, me parece, essa era a principal reivindicação das ruas em Junho de 2013. De lá para cá avançamos pouco, retrocedemos muito e os inimigos continuam a vencer.

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