A volta do parafuso

Reabilitar-se é ir atrás do que nos foi tirado à força. É doloroso e árduo assim como toda busca pelo que é nosso. No caso de uma lesão cerebral, reabilitar é lutar pela conectividade neurológica; é encontrar aquele parafuso que se soltou da cabeça

“Reabilitar é preciso!” É isso que todo sobrevivente de AVC pensa quando acorda. E não tem como ser diferente, é com o muito custo que voltamos a sentir nossas pernas e conseguimos firmar o tronco o suficiente para nos virarmos de lado. No começo tudo é muito difícil, inclusive nos levantarmos da cama. Literalmente. Parece que acordamos absortos na imensidão da nossa própria sequela, encharcados pelo descompasso de líquor que a lesão ocasionou.

Faz mais de quatro anos que acordo embriagada de inconsciência do meu cérebro machucado. Acordo bêbada e cansada, como se estivesse chegado de uma guerra. Demoro alguns segundos para me sentar, tentar sentir minhas pernas e alongá-las antes de colocá-las no chão. Assim começa a minha rotina diária: um movimento de cada vez.

Com o passar dos anos sinto muitas evoluções, é verdade, mas algumas limitações ficaram bem evidentes para mim. Uma delas é na perna esquerda, a que menos tenho sensibilidade. Acredito que a minha lesão atingiu bem a parte referente ao meu fêmur, porque é lá onde sinto mais dor, e do joelho para baixo não sinto quase nada. A sensibilidade se esvaiu ao ponto de eu sentir que fui amputada. Às vezes sonho que não tenho mais a perna esquerda, e não me sinto mais triste neles, meio que me habituei.

Todavia, reabilitar é preciso, então logo nos primeiros minutos do dia me organizo em uma rotina de afazeres muito mais complexa do que na minha primeira vida. Agora, todos os meus movimentos e ações precisam ser bem planejados e executados para evitar quedas, desacordos mentais e compulsões emocionais. Já me acostumei em planejar meu dia a dia semanal, mas quando chega um feriado “surpresa”, toda essa planilha neurológica se desconfigura. Fico perdida no tempo e no espaço: tenho dificuldade em me localizar nas horas, no ambiente do meu lar (às vezes, acredito que estou sozinha em um hotel bagunçado, até me certificar, aos poucos, que estou na minha casa). A mesma sensação ocorre nas ruas. Mesmo tendo morado em Curitiba a maior parte da minha vida, constantemente confundo sua geografia com São Paulo, Belo Horizonte, ou Ottawa quando está muito frio.

Para me localizar, imagino o mapa da cidade como um jogo de tabuleiro. Tenho que redesenhar o mapa e me localizar nele como um aplicativo de celular. Tem vezes em que essa tática funciona prontamente, outras não. Tem horas em que meu cognitivo cai no vazio, bem no buraco da minha cabeça, de tal forma que nada mais faz sentido. Fico perdida no tempo e num lugar que não reconheço, apesar de sempre ter sido meu.

Para evitar um ataque de desespero no meio da rua, elaborei duas técnicas: sentar-me num café mais próximo e esperar alguns minutos para o download da informação que eu preciso chegar ou acreditar cegamente no meu instinto e seguir pelos caminhos que tenho vontade, até finalmente voltar para a casa.

Faço quase a mesma coisa quando estudo cálculos. Não sei se você sabe, mas desenvolvi uma grave discalculia com os AVCs, ao ponto de perder a capacidade de reconhecer números, principalmente o sete e quatro. (O sete é amarelo e bonzinho, o quatro é vermelho e nem tanto amigável. Sei lá por que acho isso). Assim, a matemática se transformou em um curioso desafio, porque agora ela tem menos lógica e mais instinto. Tem contas que não tenho ideia do porquê estou fazendo, só continuo para chegar a um número e escrever ele no canto de um dos meus inúmeros cadernos de reabilitação. Logo depois, me vem alguma questão envolvendo alguma conta na cabeça e vou logo na página marcada. Lá está a minha resposta! Provavelmente aquela conta era para se chegar a ela. (Tá vendo? Agora faz sentido!). Então, é só tirar a prova real na calculadora, que tento usar o menos possível, já que cada raciocínio necessário é uma oportunidade de reabilitar o meu cognitivo desfasado; é mais um motivo para achar um parafusinho que se soltou com o estouro do meu aneurisma.

Delays são constantes em minha segunda vida, ao ponto de eu até ter uma ideia do tempo exato de atraso das minhas conexões mentais: geralmente sete segundos em um dia bom, quinze ou mais em um dia ruim. As consequências disso são relativas: podem ser eficazes para uma conta de cabeça e perigosas para atravessar uma avenida em dia de chuva. Tudo depende do meu físico e do meu estado de espírito daquele momento. Dias bons são tão gloriosos como os dias antes do AVC, naquele tempo em que as sequelas eram inexistentes. Em dias ruins, todas as limitações estão à flor da pele, inclusive as emocionais.

Acho que isso acontece com todo mundo que tem cérebro, mas sinto tudo mais forte tendo um cérebro mais machucado. Tenho noção disso. Acho que todos os integrantes da minha comunidade têm, porque é muito difícil se adaptar a uma realidade que não faz mais sentido. Também pudera, ela fazia parte da estrutura de um cérebro completo, que agora não funciona da mesma forma: está com alguns parafusos a menos.

É uma mudança triste e demora indeterminado tempo para se acostumar. A noção de tempo é algo definido por cada um, trata-se de um traço muito individual. É estranho continuar viva depois de um dano tão avassalador na cabeça. Tem horas que me lembro disso e me sinto como aquelas galinhas decapitadas que continuam a andar porque não sabem que estão mortas. Será que o mesmo aconteceu comigo? Será que eu morri e agora vivo numa realidade só minha? Se isso for verdade, pela primeira vez acredito que minha criatividade deixou a desejar. Poderia estar mais confortável, absorta em um lugar estilo Porto Rico ao invés de estar batalhando tanto por causas impossíveis.

Aliás, talvez acreditar no impossível seja uma sequela do meu AVC, porque de certo modo, tudo que me consideravam impossível, eu venho conquistando em minha luta diária. Tudo é muito demorado e o processo é na base dos “trancos e barrancos”, com muito choro e muito riso em meio a conquistas e regressões invernais. Sim, durante o inverno curitibano perco algumas vitórias recém-conquistadas e tenho medo de que elas nunca voltem. Porém, continuo seguindo a rotina: faço os exercícios diários, e com muito custo, reconquisto cada movimento e raciocínio. Eles são as minhas vontades, meus miolos, meus parafusos enferrujados e perdidos pelo caminho.

Nunca fui tão possessiva e teimosa como agora, outras qualidades sombrias típicas de lesão cerebral, que gosto de ressignificar como traços de determinação. Não desisto mais do que quero, sou sobrevivente de AVC, faz parte da minha história continuar indo em frente. Um dia de cada vez vou procurando minhas habilidades e memórias pelo caminho. Sonhando e torcendo pela volta de cada parafuso.

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