Nunca Raramente Às Vezes Sempre fala sobre aborto com respeito e sem julgamentos

Ficção de Eliza Hittman traz narrativa permeada de silêncios e angústias

A princípio pode parecer pantanoso o tema do longa Nunca Raramente Às Vezes Sempre. Um filme sobre aborto soaria a muitos como que uma palestra sobre o embate entre moralidade e livre arbítrio. O que Eliza Hittman (roteiro e direção) faz nessa obra, contudo, é algo muito peculiar e corajoso. Primeiro porque em nenhum momento há qualquer julgamento de sua protagonista; segundo porque, cinematograficamente, somos estimulados a perscrutar a narrativa a partir de quase nenhuma base, pois pouco sabemos sobre a personagem.

Autumn (Sidney Flanigan) é uma adolescente que se vê grávida em uma cidade conservadora dos Estados Unidos. Com ajuda de sua prima, viaja para Nova Iorque para fazer um aborto. O mágico de Nunca Ramaramente… é como que Hittman confecciona sua mise en scène com uma câmera que está a todo momento ao lado da protagonista, sem discursos enfadonhos ou diálogos informativos. Não que essas escolhas sejam novas, mas são, sim, difíceis de serem vistas por aí. Quando Autumn chega à clínica, por exemplo, vemos vários religiosos que fazem uma oração em frente ao estabelecimento. A cena de uma jovem prestes a fazer um aborto sendo escorraçada por fanáticos está encalacrada no nosso imaginário, mas aqui é diferente. Assim como a câmera de Hittman não julga sua protagonista, também não julga seus outros personagens. O conflito sugerido na sequência está presente sobretudo nos nossos pensamentos.

Na clínica ela é acompanhada de forma profissional e respeitosa, mas descobre que precisará passar mais dias na cidade, o que é um problema financeiro para as primas. Aqui está o fiapo de tensão construído para dar algum motor à história, vide as noites insones perambulando pelo metrô da grande cidade. Em apuros por falta de dinheiro, acabam por aceitar os galanteios de um jovem que conheceram na viagem de ônibus. A aproximação mais interesseira do que afetiva é vista pelo filme como um esforço necessário, uma dose de submissão, e é um dos momentos mais sublimes dos 101 minutos de duração.

O que há de mais tenso é o que está fora de campo. Ou seja, o que não nos é revelado. A gravidez, por exemplo, parece ser fruto de violência sexual e sabemos disso apenas em meias palavras. É daí o título, que se refere a um questionário aplicado a pacientes na clínica de aborto. E nós não sabemos em profundidade sobre o que aconteceu porque Autumn assim o deseja. É ela quem dá as cartas, mesmo em um momento de tanta fragilidade.

Nunca Raramente… está filiado àquela linha de filmes independentes americanos em que a narrativa é calcada no que há de mais humano, mais preocupada com as dores e os anseios de seus personagens do que nas peripécias que possam soar surpreendentes aos olhos do espectador. Algo comum ao cinema de John Cassavetes (Noite de Estreia, 1977), por exemplo. Justamente por causa desse estilo, é que a mãe de Autumn é interpretada pela cantora Sharon Van Etten, que surge no filme para emprestar uma certa aura, um elemento de conexão entre público e obra. Sharon Van Etten faz música indie, em um estilo muito próximo do encontrado e almejado pelo filme.


Para ir além

Nunca Raramente Às Vezes Sempre

202, FIC, 101min. Disponível para aluguel nas plataformas Google Play, Claro Videos, Apple iTunes e Looke. Disponível para assinantes no Telecine e Now.

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