No último dia em Chicago, meu primo Thiago embarcou para o Brasil e o Paçoca precisava chegar em Memphis, no Tennessee, 850 km ao sul, onde eu iria me encontrar com o Tovico, ou o Tovo ou, como sempre o chamei, o tio Tovo. A primeira parada foi em mais um nada no meio do nada (já tenho phd em nada no meio do nada), Sullivan, no estado de Indiana, onde o povo fala um sotaque que é impossível de entender.
A segunda parada foi em Nashville. Era um destino que eu tinha expectativas baixas – na minha cabeça, somente a cidade do country, gênero que nunca esteve no meu radar. O que eu não sabia era que Nashville é terra de muitas terras diferentes, em dois cantos obrigatórios. Um é o printers alley – “printers” porque era uma viela onde antes ficavam as gráficas. O outro, este mais badalado, a Broadway Street, que fica lotada de gente bêbada a partir das cinco da tarde, de qualquer dia da semana, com um mar de botecos com música ao vivo de tudo quanto é tipo. A maioria dos bares toca cover, mas a qualidade das bandas é altíssima. Em geral, não se cobra a entrada – a turma toca por gorjeta. São músicos jovens, talentosos e com vida duríssima: alta competição e remuneração baixa. O clima é de festa, com turistas trôpegos usando trajes de cowboy, indo de bar em bar para escutar as bandas.
Depois de uma semana, finalmente chego em Memphis, em um camping ao lado de Graceland, o complexo com a casa de Elvis e mais um museu faraônico. Tio Tovo chegou à meia noite de um domingo e, durante as escalas nos aeroportos, fomos combinando o nosso encontro por whats. Nos três primeiros dias ele ficaria em um hotel no centro de Memphis. Eu mesmo fiz questão disso, porque por mais que o Paçoca tenha um conforto decente, para descansar depois de uma viagem longa, certamente o hotel seria melhor.
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Segunda de manhã, tio Tovo manda mensagem, o Uber tinha chegado. Cristovão Tezza, o romancista, estava ali naquele camping ao lado da casa do Elvis para fazer uma viagem de motorhome comigo. Inacreditável. Antes eu havia mandado dezenas de mensagens explicando as dificuldades na vida na estrada, já pedindo desculpas pelos eventuais problemas. Ele sempre respondia com um “fique calmo, fui mochileiro, acampei muito na vida”, e depois recebia duas figurinhas de whats, uma com o rostinho sorrindo de óculos escuros e a outra com um brinde de canecas de chopp.
A gente se abraçou, expliquei como era a vida no camping e fiz a apresentação do Paçoca. A impressão dele, acho eu, foi positiva. As pessoas se surpreendem, o negócio é mais ajeitado do que parece. Comentei que, ao contrário dele, virei hippie já velho, fui careta antes. Ele gargalhou alto, como costuma fazer o dia todo, e disse que isso não fazia sentido, afinal não existe hippie com o glamour do Paçoca.
A primeira missão da viagem foi fazer um vídeo para a TV Cultura. Havia um especial sendo gravado sobre a Denise Stoklos e como o primeiro trabalho artístico do tio Tovo foi ter sido iluminador de uma peça dela, nos anos 70, pediram um breve depoimento. Gravei com o celular na sala do Paçoca, na mesinha que vira uma cama de solteiro – o espírito dos anos 70 estava presente.
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Começamos os trabalhos turísticos com Graceland. Não é o tipo de lugar que eu ou o tio Tovo viajaríamos para os EUA para conhecer. Mas como estava na cidade, por que não? Nossos interesses eram diferentes dos demais visitantes, que eram mais peregrinos do que turistas. Claro que achamos tudo hiper mega kitsch. Mas a gente se divertiu e, mesmo para os não convertidos, é impossível não reconhecer a imensa influência de Elvis sobre o mundo.
Então, vamos almoçar. Quem é da família sabe. Com os Tezza, almoço começa no máximo às 12h e precisa terminar ali pelas 12h05. Senão o povo fica nervoso. Uber para o centro e aí que a coisa complica. É difícil achar almoço acessível nos EUA que não seja fast food. Um restaurante com talheres de verdade costuma custar uma facada. Na nossa saga atrás de um almoço decente em Memphis, paramos no Flying Fish. Foi acertado: comida caseira bem-feita em um lugar descontraído. Nós pedimos um grelhado de catfish, o bagre local. Estava ótimo, acompanhado de um feijãozinho parecido com o nosso e do primeiro brinde de cerveja da jornada.
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Almoço resolvido, demos uma primeira volta para fotografar. Memphis não é exatamente uma cidade bonita, mas há prédios que se destacam e um bairro que preservou os antigos casarões. Depois de nos refestelarmos na fotografia, cada um foi para sua sesta e descansar para a agitação da noite.
Assim como a Broadway Street de Nashville, Memphis também tem o seu próprio endereço de festa e música, a Beale Street. A noite não estava das mais animadas – era a segunda-feira do meio do outono, completamente fora de temporada. Mas o barzinho que escolhemos para a primeira incursão alcóolica-fotográfica-musical, o B.B. King Blues Club, fundado pelo próprio Blues Boy King, estava lotado para ouvir a B.B. King All Star Band. É uma banda mais comercial (a maior parte do repertório nem era de Blues, mas de Soul), mas como tudo o que tenho visto na música ao vivo dos EUA, de altíssimo nível. De lá, demos uma investigada no restante da Beale Street – bandas muito boas, mas o público era escasso.
Na terça-feira, após a primeira ressaca da jornada alcóolica-fotográfica-musical, iniciamos os trabalhos turísticos no Sun Studio, um dos estúdios mais célebres do mundo, onde algumas das músicas mais icônicas dos EUA foram gravadas. O estúdio é relativamente pequeno e abriga um acervo fonográfico e cultural invejável – são fotos que vão de Elvis a U2, guitarras e microfones históricos, muitos discos de ouro. Saímos a pé para mais um safári fotográfico e chegamos no Rendezvous, a churrascaria famosa de Memphis. Talheres e pratos de plástico, uma boa costelinha de porco servida e a certeza de que uma churrascaria no Brasil é muito melhor.
Pausa para a sesta e à noite demos mais uma volta pela mítica Beale Street. Comparativamente, Nashville é mais diversa e vibrante que Memphis – mas Memphis é mais autêntica. E mais violenta também. Aqui a segregação é visível. Impossível não reparar as mesas em que só há brancos ou em que só há negros – até a amizade interracial parece rara.
A questão racial americana ficou ainda mais presente na manhã do dia seguinte, quando visitamos o museu dos direitos civis. O museu foi montado dentro do Lorraine Motel. Na varanda externa de um dos quartos do motel, em 4 de abril de 1968, Martin Luther King foi assassinado. O museu fica em um espaço pequeno, perturbador e indispensável. E as exposições temporárias mostram o quanto que o racismo permanece presente.
Abalados com o que vimos no museu, fomos em direção ao estacionamento, onde o Paçoca nos aguardava. Começamos a estrada em direção ao delta do Mississipi. Era o início da viagem de motorhome pela Highway 61, a mítica rodovia do Blues.