Sobre os perigos que cercam os que buscam ser democráticos

Daniel Medeiros publica no Plural um capítulo de seu novo livro, Guia Prático sobre Democracia para Jovens

O Plural publica abaixo, com exclusividade, um dos capítulos do novo livro de Daniel Medeiros, professor de História e Filosofia. O Guia Prático sobre Democracia para Jovens pode ser comprado aqui.


Na última parte desse guia, vamos refletir um pouco sobre as dificuldades que encontramos no dia a dia para o exercício da Democracia. Essas dificuldades costumam vir da oposição ou da indiferença dos outros. Mas também, muitas vezes, provêm de nós mesmos. Isso porque nem sempre elegemos a cidadania como uma prioridade, como uma condição necessária a uma “boa vida”, como diziam os gregos. E uma boa vida depende do bem comum. É fato incontestável que bens individuais, sucesso profissional, família estruturada, bons amigos, tudo isso é fundamental. E por isso não há nenhum problema de natureza ética desejar viver assim. O problema é que nossa vida ocorre sempre em contexto e, por isso, há sempre os outros à nossa volta. Logo, querer viver bem em meio a pessoas que não vivem bem só é possível se ignoramos essas pessoas. Acontece que, mesmo quando as ignoramos, elas não deixam de existir e nem de exigir uma vida boa também. E isso afeta a história de todo mundo, sem distinção.

Muita gente acha que é possível que alguns tenham direito a amigos, família, profissão e bens e outros não. Observe que não estou falando em graus diferentes de direitos, mas em “sim” e “não”. Se há quem tenha mais e outros que tenham menos, contanto que todos tenham o suficiente para não faltar o necessário para ninguém, parece ser esse o ambiente mais adequado para chamarmos de democrático. Mas fora dessa situação, há desequilíbrio entre os direitos básicos dos cidadãos e quando isso chega no limite, a Democracia deixa de fazer sentido. Porque a Democracia pressupõe uma igualdade de condições básicas para que todos possam viver uma vida boa, mesmo com variações de grau, mas nunca com uns “sim” e outros “não.”

O que pretendo derivar desse pensamento é o seguinte: enquanto não há condições legais e materiais para que todos os cidadãos possam viver uma vida boa, com o mínimo necessário para isso – que é o que costumamos chamar genericamente de direitos- haverá um deficit democrático, e é tarefa de todos os que prezam pela Democracia buscar equalizar essa situação, por meio de ações no mundo público.

Logo, o que podemos concluir é que, mesmo que eu tenha tudo o que preciso para ter uma vida boa, isso não me exime de observar a vida dos que me cercam e de defender que haja o suficiente para todos aqueles com os quais eu compartilho a denominação de “cidadão”. Essa é a ideia. Por isso, desde o começo desse livro, enfatizo que a Democracia não é um regime político fácil de existir, porque exige coisas que a Natureza não dá, cobrando de nós um comportamento que vai além do “natural”. Por isso passamos a chamar as pessoas e os grupos sociais que entendem essa diferença, de civilizados, isto é, aquele que vivem como cidadãos.

E você, considera-se um cidadão? Acha possível que a nossa sociedade melhore o seu grau de cidadania? O que é preciso enfrentar, combater, para que nos tornemos uma Democracia mais eficiente? Vou dar alguns exemplos nos capítulos a seguir. Se você se identificar com os problemas que vou apontar ou identificá-los em seu contexto social, saiba: você tem um trabalho para realizar e uma Democracia para aperfeiçoar. Ou ajudar a salvar, dependendo da gravidade da situação.

Lição 15: a balança dos interesses

Quero iniciar essa lição convidando-o a imaginar a vida de um jovem adulto, uma pessoa qualquer entre os milhões de jovens brasileiros. Vamos chamá-lo de “você”. Mas a história dele não é exatamente uma história comum, como veremos.

Você nasce e, desde cedo, é cercado de todos os cuidados. Em todos os eventos importantes sempre há um presentinho para Você e no seu aniversário, dia das crianças, Páscoa, Natal, muitos presentes. Você também é cercado por pais presentes e carinhosos, além de tios e avós e um monte de primos que brincam e às vezes brigam com Você. Os anos passam e Você vai para uma escola particular, com muitas atividades, laboratórios, aulas de inglês, esportes, professores preparados que nunca faltam ou atrasam. Nas férias, Você viaja e começa a conhecer o mundo: vai a parques, museus, visita cidades históricas, tira fotos, posta nas redes sociais e ganha muitas curtidas das suas centenas de amigos virtuais. Você vira um adolescente saudável, culto, feliz. Entra para uma Universidade prestigiada, consegue um estágio em uma empresa multinacional graças aos seus talentos e também uns telefonemas do seu pai, desenvolve projetos, mostra seu valor, é contratado, passa alguns anos no exterior se aperfeiçoando, volta e constitui família, iniciando um novo ciclo de estabilidade com seus filhos.

Mas Você é uma pessoa que sabe que o mundo não é assim com todo mundo e outras pessoas, igualmente talentosas estão agora desempregadas, algumas até passando necessidades. Há, além disso, outras desproporções gritantes ao seu redor: favelas, famílias inteiras morando em casebres com um só cômodo, em ambientes insalubres e perigosos. E nessas famílias há jovens como Você, mas vivendo vidas muito diferentes da sua.

Você tem consciência dessa diferença, porque é sensível e observador. Nas aulas de redação da escola, por exemplo, Você aborda esses temas e assume uma posição de crítica a esse contexto, acreditando que o mundo não deveria ser assim. Sofre até algumas críticas de seus colegas, que têm opiniões diferentes, associando esse cenário à falta de interesse ou esforço dessas pessoas que poderiam estudar mais ou trabalhar mais para sair do lugar onde vivem e da condição que as cerca. Alguns exemplos são citados: o cidadão X que viveu na favela e hoje é um cientista importante; o cidadão y, que começou vendendo bala nos sinaleiros e hoje é um empresário de sucesso. Por outro lado, enfatizam os que se tornaram criminosos violentos ou traficantes de drogas, quando poderiam ter evitado tudo isso se tivessem força de vontade.

Você não discorda de nada disso, mas parece que falta algo, como um jogo de montar com algumas peças perdidas. É nesse momento então que Você começa a especular, a usar o famoso “e se” e a analisar, em um diálogo de si consigo mesmo, as implicações da aplicação desse “e se”. Por exemplo: e se fosse ele quem nascesse nas condições sem condições das favelas pelas quais o carro de seu pai passa todos os dias para levá-lo para a escola, ou para a aula de inglês, ou para o shopping? Como seria ter de trabalhar desde muito cedo, ganhando um salário mínimo ou até menos, estudar em uma escola de periferia de noite, sem tempo para estudar em casa, sem computador, sem ambiente adequado, sem professores adequados ( muitas vezes, sem professores), cansado, mal alimentado e morrendo de sono o tempo inteiro? Como seria se sentir com raiva, se sentir injustiçado e não ter nada que possa fazer para mudar aquilo no curto prazo? Ser discriminado, humilhado e muitas vezes agredido pelo simples fato de não ter nada e não aparentar ser ninguém?  Todos dizem, sem parar: estude pra arranjar um bom emprego, mas o estudo não é bom, é de noite, é cansativo e não é fácil suportar o sono que vem o tempo todo. Você imagina já quase adulto e sem falar uma palavra certa de inglês, matemática é um mistério, química e física então são só nomes que aparecem em uma prova de vestibular. Você para de estudar no Ensino Médio, quando muito, porque faculdade particular não tem como pagar e pública não tem como passar, mesmo com as cotas. Nessas horas chega o cara que te oferece isso e aquilo, mas em troca tem de fazer aquilo que Você não quer fazer, mas às vezes Você tem vontade de esquecer seus escrúpulos e só se dar bem. Afinal a ideia de se dar bem está em todos os lugares e sempre precisa de algo que Você não foi criado pra ter.

E então Você balança a cabeça, afasta esse “e se” e diz pra si mesmo: “ah, mas quando o cara quer mesmo, dá o seu jeito”. Ou: “tem muita gente que tem índole ruim, não adianta dar oportunidade que o cara não aproveita”. E Você sabe que, se procurar um pouco, sempre existirão uns dois ou três exemplos para corroborar essa tese.

Em outro momento, Você se pergunta: “e se, além de pobre, eu fosse preto? Você então vai atrás de fontes de informação e aprende que o ano mais violento da História do Brasil foi o ano de 2017, quando foram registrados mais de 65 mil homicídios. Quer saber quem morreu mais nesses anos, se gente como ele ou como as pessoas que ele imagina “e se”. Descobre um documento importante, o  Atlas da Violência – produzido com dados de um importante órgão ligado ao governo, o INPE – e vê que “no período de uma década (2007 a 2017), a taxa de letalidade de negros cresceu 33,1%, enquanto a de não negros apresentou um aumento de 3,3%. Analisando apenas a variação no último ano – o fatídico ano de 2017 – e descobre que “enquanto o índice de mortes de não negros demonstrou relativa estabilidade, com redução de 0,3%, o de negros cresceu 7,2%”. Procura mais e aprende ainda que “75,5% das vítimas de assassinato em 2017 eram indivíduos negros. A taxa de homicídios de negros (pretos e pardos) por grupo de 100 mil habitantes foi de 43,1, ao passo que a de não negros (brancos, amarelos e indígenas) foi de 16,0. Ou seja, para cada indivíduo não negro que sofreu homicídio em 2017, aproximadamente, 2,7 negros foram mortos.”

Outro documento importante, produzido por um outro órgão governamental, o IBGE, mostrou para Você que além de negros, os jovens negros são as maiores vítimas de homicídios no Brasil: “A taxa de homicídios entre homens jovens pretos e pardos em 2017 chegou a 185 a cada 100 mil habitantes de 15 a 29 anos, quase três vezes mais do que os brancos, com média de 63,5”.

E Você continua especulando: e se, além de pobre e preto, eu fosse mulher? “Como seria a minha vida? Você vai olhar as estatísticas, no mesmo Atlas da Violência e descobre que a taxa de homicídios é maior entre as mulheres negras (5,3) que entre as não negras (3,1) – a diferença é de chocantes 71%. Em relação aos dez anos analisados (2007-2017), os assassinatos de mulheres negras aumentaram em 15,4%, enquanto que entre as não negras houve queda de 8%.”

Tudo isso abala Você. O que mais Você descobriria se continuasse pesquisando? O quanto esses números seriam capazes de abalar suas convicções sobre “falta de esforço ou má índole?”

É difícil para Você acreditar que tenha alguma responsabilidade por esses dados. Ele nunca fez nada de errado. Pelo contrário, sempre foi cuidadoso com as regras, sempre foi gentil com as pessoas, sempre foi respeitoso com os mais velhos, nunca brigou ou cometeu qualquer tipo de delito. Ok, certa vez – certas vezes, tá bom – tomou umas taças de vinho e veio dirigindo para casa. E, é lógico, sempre dá um jeito de pagar menos impostos, pegando uns recibos aqui e ali com uns amigos médicos e dentistas. Mas isso não é nada, obviamente. Ninguém pode condená-lo por coisas assim.

Outro pensamento que tranquiliza Você é saber que esses fatos ocorrem há muito tempo, é quase uma coisa “natural” não adianta querer mudar essas coisas, porque é praticamente impossível. Logo, o importante é continuar a fazer o melhor, pagar seus impostos, não causar problemas pra ninguém (ou quase ninguém) e torcer que um dia as coisas melhorem para todo mundo.

A história de Você não é comum porque são poucos os brasileiros que tiveram as condições de vida dele. Comum é a vida dos pardos e negros, dos pobres e desassistidos. Isso também são os dados, os documentos que dizem. Por exemplo: quanto ganha, em média, um trabalhador brasileiro? Segundo o IBGE, em 2017 – o ano mais violento da nossa História, lembra? – mais da metade dos brasileiros teve uma renda média menor do que um salário mínimo.

Outra informação: segundo a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), no Brasil, mais da metade dos brasileiros adultos não conseguiu concluir o Ensino Médio, o que afeta diretamente a possibilidade de conseguir melhorar a renda salarial. Segundo um estudo dessa mesma organização, entre 46 países, o Brasil é segundo com pior rendimento, perdendo apenas para a Costa Rica.

E quando lembramos que o Brasil é um país continental e tentamos entender essas diferenças regionalmente, aprendemos que elas são muito expressivas. Por exemplo: No Distrito Federal, 33% dos jovens adultos chegam à universidade. No Maranhão, o Estado com o menor PIB per capita do Brasil, esse número é de apenas 8%.

Ou seja, o nosso personagem, Você, é um privilegiado. Ele não somente tem como pode exercer todos os seus direitos, com folga e sem qualquer tipo de privação. Poucos são como Você.

O complicado é quando Você tem de se posicionar em relação ao quadro geral da sociedade na qual ele está inserido. Colocar-se no lugar dos outros. Perceber a distância entre os outros e uma média razoável, que seria aquela na qual todos pudessem usufruir dos seus direitos sem privação ou temor. Direitos que são os elencados na Constituição Federal e que são considerados fundamentais, isto é, básicos, necessários, indispensáveis.

Você não é responsável pela pobreza dos outros, mas precisa responder à pergunta: por que a maioria de seus concidadãos não têm acesso àquilo que para Você é “comum”? Você seria uma espécie de cidadãos premium, uma espécie de figurinha que veio ao mundo carimbada para receber o pacote de direitos constitucionais e as outras, as “figurinhas comuns”, a elas serão destinadas os pacotes básicos, com alguns parcos direitos e muitos outros, quase todos os outros não?

Percebam que não estamos falando do extra, daquilo que o dinheiro pode comprar ( viagens internacionais, carros do ano, clubes privados, banheira de hidromassagem, vinhos franceses, roupas de grife, etc e etc), mas do fundamental, do necessário, daquilo que deveria estar à disposição como garantia para todos os cidadãos: vida digna, com saúde, educação, moradia, segurança, liberdade, ausência de medo e de opressão.

É muito complicado para nós, quando estamos mergulhados em um ambiente de direitos abundantes, compreendermos o sofrimento que é ser desprovido desses direitos. Normalmente, quando vivemos em um ambiente sem falta de direitos, reclamamos de não sermos atendidos imediatamente, ou com a delicadeza e eficiência que sabemos que merecemos. Imagine para qualquer como Você esperar anos por uma cirurgia ortopédica, enquanto sofre com dificuldade para andar, sentindo dores, mas tendo de continuar trabalhando porque precisa pagar as contas e alimentar os filhos? Imagina ser maltratado por um agente público porque é negro e está mal vestido e, só por isso, não é ouvido, não é respeitado, não é atendido como todos os cidadãos deveriam ser.

A Constituição brasileira, no seu artigo terceiro, que compõe o Título I, “Dos Princípios Fundamentais”, diz assim: Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: e divide esses objetivos fundamentais em quatro itens, como tarefas primordiais do país, de todos, autoridades e cidadãos.

I – Construir uma sociedade livre, justa e solidária;

II- Garantir o desenvolvimento nacional;

III – Erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV – Promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Esse era o plano dos constituintes. Uma sociedade livre, desenvolvida, justa, na qual ninguém seria pobre e marginalizado e a todos caberiam, sem qualquer distinção, a possibilidade de uma vida boa.

Para Você, nosso personagem nessa reflexão, todas essas condições e possibilidades foram dadas. Para a grande maioria da população brasileira, particularmente os pretos e pardos e ainda mais particularmente as mulheres pretas e pardas, não.

Você, nosso personagem, ficou confuso entre seus privilégios, seus direitos, seus esforços, sua vida boa e a necessidade de se posicionar e agir em favor de uma sociedade democrática para todos e não somente para pessoas como ele. E você, o que acha disso? De que forma você acha que deveria agir para que os fundamentos do nosso Estado de Direito se tornassem uma realidade efetiva e permanente para todos?

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