Os maus não gritam

Carta aberta à ministra Damares, por colocar mais uma vez a culpa na vítima, e não no agressor

À ministra da Mulher, da família e dos direitos humanos, Damares Alves:

Passei grande parte da minha vida admirando pessoas como você, Damares. Pensar nisso hoje dói fortemente no meu coração, mas também me enche de esperança de que, um dia, assim como eu, outras pessoas passem a enxergar a senhora e o seu comportamento com outros olhos.

No entanto, eu não quero que ninguém, nem a senhora, viva as coisas que eu vivi para abrir meus pensamentos e me tornar mais humana. Me desculpa por falar assim, na lata, mas é isso que falta na senhora e em seus admiradores: humanidade.

Foi quando presenciei, física e emocionalmente, dentro da minha família, cenas de violência doméstica, que comecei a abrir meus olhos para uma realidade que antes estava tão distante de mim.

Mesmo assim, não foi suficiente. Eu precisei de muito mais, para deixar de pensar como a senhora pensa. Eu precisei de uma sociedade que descrimina famílias que não se enquadram no padrão que você defende. Precisei ver pessoas que amo morrendo aos poucos por conta dessa descriminação. Precisei ouvir, da boca de uma amiga aos prantos o relato das muitas vezes em que sua mãe apanhou do seu padrasto. Das muitas vezes em que ela apanhou de seu padrasto.

Precisei chorar no quarto do meu namorado, enquanto implorava para ele parar de fazer algo que eu não queria, sem ser ouvida por nem um minuto sequer.

Nesse dia, e em todos os outros, o meu choro e o meu pedido desesperado para que o sofrimento tivesse um fim, não adiantou de nada. Não somos nós, mulheres, vítimas, que nos calamos. São vocês, ministra. É a sociedade machista, sustentada pela sua fé, pelo governo do qual você faz parte, por todos os seus discursos e posturas, que tentam camuflar o nosso pedido de socorro. Vocês tapam as nossas bocas com as mãos e colocam sobre nós o peso da culpa, quando não há culpa alguma.

Foi isso que, mais uma vez, a senhora publicamente fez no dia 25 de novembro de 2019, quando fracassou em sua tentativa de ser minimamente humana ao falar sobre violência contra mulheres no Brasil. Damares, você nos encheu de culpa. Ao dizer publicamente que o silêncio da mulher incomoda, a senhora colocou sobre nós um peso que não é nosso. A culpa de uma sociedade violenta não é da vítima, é do agressor. A culpa da violência contra mulher no Brasil não é das mulheres que apanham de seus parceiros e ficam caladas, é dos homens que de maneira covarde não só agridem fisicamente, como manipulam emocionalmente.

Mas a culpa também é sua, que coloca esse peso sobre nós.

Quero te convidar a experimentar. Experimente ir até uma delegacia da mulher e denunciar um crime de ódio como a violência doméstica. Escute o policial te perguntar muitas vezes se você tem certeza que deseja continuar com a sua denúncia.

Experimente pedir uma medida protetiva contra o homem que ameaça te matar, mas ainda não o fez.

Experimente explicar para os seus filhos, olhando nos olhos deles, o motivo pelo qual você denunciou e quer prender o pai deles.

Tente contar para a sua família que o seu relacionamento com aquele homem carismático, que trata todas as pessoas bem, que é seu marido e – em muitos casos – provedor financeiro da sua casa, vai chegar ao fim, porque você não se sente segura morando com ele.

Eu te garanto que não será tão fácil como a senhora faz parecer.

A verdade, Damares, é que infelizmente, no Brasil que vivemos – e peço desculpas à Martin Lhuter King, por precisar discordar dele – o que preocupa não é o silêncio dos bons, mas o grito dos maus. Porque quando falamos em violência doméstica, os maus não gritam, mas matam; e as mulheres, vítimas de seus crimes, não estão em silêncio, elas estão cada dia mais caladas à força ou mortas.

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