Ler para uma criança pode salvar o país

O mundo de quem desenvolve a capacidade de pensar o abstrato é mais complexo, mas também maior e cheio de possibilidades

Crianças são seres incríveis. Quando nascem, elas são tão frágeis e sem muita mobilidade. Saquinhos de fofura chorando por colo, peito e fralda limpa. Nos seis primeiros anos, o bebê passa por um desenvolvimento físico absurdo, com o qual é difícil não se impressionar. Mas há também um desenvolvimento intelectual significativo, um que levará um bebê de um mundo de manchas e dependência física e emocional a um ser independente.

O pai ou mãe que tem o hábito de ler para o filho/filha consegue acompanhar parte desse desenvolvimento. Quando o bebê é pequeno até dá para tentar ler uma história, mas o que criança acompanha é a entonação, o ritmo das palavras.

Mais um pouco e é hora dos livros de cores, texturas, formas. Depois as histórias curtas com ilustrações chamativas. Mas não são só os livros que mudam. Nesse período, até os seis anos, a criança passa primeiro por uma fase de pensamento concreto, descobre a diferença entre grande e pequeno, alto e baixo. É o momento das dualidades: bem ou mal, bonito ou feio, claro ou escuro.

Daí em diante a criança começa a desenvolver o pensamento abstrato. É esse tipo de pensamento que permite que ela supere as dualidades e perceba, entre o branco e o preto, os muitos tons de cinza. É assim que ela passa a ser capaz de entender conceitos como o de saudade. É quando as histórias simples, com vilão e a mocinha, ganham novas cores.

É sob essa nova capacidade intelectual que ela é capaz de ver que os personagens não são bons OU maus. Muitos dos bons livros infantis para essa fase exploram essa complexidade tanto em temas simples, como a chegada de um novo irmão, quanto em situações mais complexas, como a morte de um familiar, a separação dos pais, a solidão.

A literatura tem aí um papel fundamental em ajudar nesse amadurecimento que é tanto emocional quanto intelectual. Um mundo complexo, cheio de nuances pode ser assustador, mas também impressionante. É como quando deixamos de pensar no mundo como as ruas em torno de nossa casa, a escola, a casa dos avôs e começamos a perceber dimensões maiores: a cidade, o estado, o planeta, o universo.

A imensidão do universo pode ser avassaladora, mas também suas possibilidades.

É justamente essa capacidade de lidar com essa complexidade, com o incerto, o invisível, o abstrato, que é fundamental no desenvolvimento intelectual da criança e do futuro adulto. Sem esse salto do concreto para o abstrato no futuro esse adulto terá dificuldade em encarar problemas sem tornar tudo binário.

Não é que a pessoa não tenha a capacidade de pensar o abstrato, mas ela ainda se apega ao conforto daquele mundo bidimensional da infância, em que o lobo mau era mau e a chapeuzinho vermelho era boa e o caçador salvava o dia matando o animal. Um mundo simples é um mundo mais fácil de se gerenciar.

O nosso próprio cérebro é acostumado a simplificar as coisas para facilitar nossa vida. Numa rua movimentada, ele coloca em segundo plano o barulho para permitir que você se concentre nos sons importantes: a voz da pessoa com quem você está conversando, o apito do sinaleiro de pedestre avisando que o tempo para atravessar está acabando.

Mas um intelecto desenvolvido dentro do desafio da complexidade é capaz de entender que pode compartimentar as coisas para tornar sua análise mais simples, mas sem perder de vista o todo. É assim que a humanidade se tornou capaz de ter entre os seus especialistas em poeira lunar, mas que apesar da especialidade, conseguem inferir a partir das informações que coletam de seu objeto de pesquisa informações sobre o universo mais amplo.

Mas quanto mais a humanidade evolui, mais assustador o mundo se torna para quem precisa mantê-lo pequeno, gerenciável. E mais apegadas ao binário essas pessoas se tornam. É daí que surge o radicalismo. A necessidade em separar o mundo em times: direita e esquerda, crentes e ímpios, bons e maus, brancos e negros.

Veja o branco que vê diferente do negro, por exemplo. Ele se apega a uma ideia de valor atrelada a um fato: a cor da pele. O mundo dele é simples, pequeno, separado entre os brancos e os demais. Ele pode até mesmo conviver com negros, pardos, indígenas, ocidentais. Mas a vida dele se resume a achar que por ser branco ele é especial. Isso, claro, é muito mais simples do que ter que construir uma identidade própria, ter mérito próprio.

Não é só na infância que conseguimos desenvolver a capacidade de lidar com o complexo, mas ler para uma criança ajuda muita a acelerar e aprimorar esse processo. A torná-lo mais natural e a complexidade que deriva dele mais palatável. Uma criança que lê não sofre quando percebe que a Chapeuzinho não é uma pessoa boa. Ela também colocou a vovô em risco ao desrespeitar a regra da mamãe.

Pelo contrário, com o amadurecimento, a leitura das mesmas histórias ganha novas dimensões, se torna mais rica, prazeirosa. É esse prazer que nos ajuda a superar o medo do desconhecido, do complexo e a gostar do desafio.

É como achar o Wally. Às vezes, ficar diante da página cheia de pequenos desenhos cheios de detalhes é frustrante e quase nos convencemos que talvez dessa vez os produtores do livro tenham esquecido de colocar o Wally ali. Mas daí nossos olhos percebem o gorro, ou os olhos, a camisa e achamos a criatura. E aquela satisfação gostosa de resolver um desafio nos faz virar a página e continuar procurando.

Esse prazer vem do esforço intelectual, não do comprometimento com as próprias certezas. É esse processo intelectual que permite que discussões sejam produtivas e não monólogos agressivos entre pessoas incapazes de mudar de ideia. É isso que nos permite não perder a esperança nem a vontade de resolver um problema quando não é possível resolvê-lo de forma simples.

Uma criança que lê será um adulto capaz de dialogar. E só isso já torna o futuro um lugar melhor.

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