Ciência e arte, uma reflexão sobre esta simbiose

Hoje um trabalho científico pode ser julgado mais pela sua apresentação gráfica do que por sua relevância

Tipicamente, a ciência é construída por uma abordagem metódica rígida e por uma racionalidade incrédula que se baseia na construção, e desconstrução, de hipóteses por meio de comprovações experimentais. Portanto, imaginar que a ciência possa se confundir, em alguma medida, com uma manifestação artística parece ser algo inconcebível. Como pesquisador, percebo que há uma preocupação crescente dedicada aos aspectos estéticos da apresentação de dados científicos.

Seja quanto à formatação dos resultados que ilustram os artigos (figuras, gráficos, tabelas, animações, etc.) seja em seminários, palestras, vídeos e outras modalidades de comunicação científica. Há pouco tempo, inclusive, a Elsevier, empresa que faz a curadoria de uma gigantesca base de dados da literatura mundial (Scopus) instituiu uma opção de exibição de resumos gráficos dos artigos (graphical abstracts) publicados em suas milhares de revistas. Em paralelo, a urgência em se fazer a divulgação de dados científicos em mídias sociais, e mesmo na imprensa tradicional, torna crescente essa preocupação estética.

Constrói-se, portanto, uma perspectiva de se apresentar resultados que podem ter sua relevância detectada muito mais em função de sua qualidade gráfica, com concepção visualmente envolvente, do que devido à sua importância científica. Além disso, o  próprio texto científico, tradicionalmente muito hermético, também não escapou incólume. Cada vez mais a compactação se torna a palavra chave das revistas, chegando ao ponto de termos de resumir um estudo de anos em três a cinco frases (highlights) de até 85 caracteres cada. É quase um exercício de filtragem da informação científica por meio de lentes oriundas da publicidade e propaganda.

Zygmunt Bauman.

Estas constatações apontam para uma imensa atomização do conhecimento científico, que deverá ser de tão fácil digestão, pois será consumido, e excretado, numa velocidade só vista no século atual. Baseado nesta premissa, fortemente ancorada no mundo líquido de Bauman (1925-2017), vemos que a atual ciência líquida se associa a uma estética pasteurizada (quase kitsch), repleta de gráficos cintilantes e frases impactantes. Então questiono: esta manifestação estética da ciência moderna poderia ser, de fato, uma evidência de aproximação com a arte?  

Cada vez mais a compactação se torna a palavra chave das revistas, chegando ao ponto de termos de resumir um estudo de anos em três a cinco frases (highlights) de até 85 caracteres cada. É quase um exercício de filtragem da informação científica por meio de lentes oriundas da publicidade e propaganda.

Pois bem, vejamos, sucintamente, como o pensamento humano pode dar conta desta relação, a começar pela concepção de arte. A pedra fundamental a respeito da reflexão sobre a beleza foi colocada por Platão (428-348 a.C.) que, por sua vez, referenda o belo como sendo unicamente possível mediante a reprodução, absolutamente fiel, da natureza. A beleza só seria alcançada, não pelos sentidos, estes erráticos e deformantes, mas sim pelo pensamento, oriundo de áreas mais nobres da alma, único a ser capaz de instituir concepções verdadeiras do belo, sem influências dos empirismos sensoriais. Para Platão, o artista constituía-se numa figura desprestigiada, até mesmo desprezível, por desrespeitar a natureza com suas imitações imprecisas e aberrantes daquilo que é perfeito. O artista, com sua leitura sensorial de mundo, condenaria a sociedade a um afastamento ainda maior do mundo, perfeito, das ideias. 

O contraponto subsequente foi produzido por Aristóteles (384-322 a. C.) que centrou seu pensamento na ocorrência de um ajuste cósmico da existência, confluindo para uma vida próspera, justa e feliz, portanto, eudaimônica. Sendo assim, para Aristóteles, a beleza, mediante sua contemplação sensorial, seria a tradução material da eudaimonia. Logo, a arte perde seu caráter utilitarista, possuindo agora um valor intrínseco inequívoco auferido pela emoção provocada em seu observador. Esta percepção claramente se aproxima muito mais de nossa visão contemporânea de arte e beleza. Podemos ir mais longe ainda nesta perspectiva. A conversão do mundo em arte, a partir dos sentidos do artista, permite que possamos atribuir novos valores a este mundo, sem com que fossem apreciados antes dela. Vê-se que, a partir dessas duas concepções, que constroem o pensamento clássico, não há nenhuma possibilidade de se entender a ciência como sendo portadora de alguma beleza, afastando-a por completo da arte. 

Considerando a ocorrência do giro antropocêntrico, que aqui ilustro com o pensamento de Kant (1724-1804), percebe-se que o conceito de beleza passa a ser transferido, definitivamente, do objeto representado para o espectador. Ou seja, a beleza é um atributo da percepção individual, não sendo, portanto, uma teoria universal, porém com pretensão de sê-la. Segundo esta visão moderna, o juízo estético é um produto dependente da relação entre percepções sensoriais e os sentimentos provocados no indivíduo. Tal amadurecimento do conceito estético permite uma dimensão interpretativa muito mais ampla da arte em suas formas de manifestação. Com efeito, não seria absurdo considerar a ciência, por meio de suas linguagens de comunicação, um poderoso estado de manifestação artística. Entretanto, certamente, esta afirmação não encontraria eco no pensamento de Descartes (1596-1650), pai fundador do método científico, desta maneira, do pensamento crítico moderno. 

René Descartes.

Embora Descartes não tenha abordado diretamente a questão da percepção do belo, seu ideal de perfeição perpassa, necessariamente, pelo cartesianismo que falha ao não conseguir explicar os sentimentos individuais produzidos pela arte. Sendo assim, não haveria uma estética em Descartes, propriamente dita. A razão, como faculdade para se investigar a verdade, se faz como elemento fundador da ciência, distanciando-a de qualquer conclusão estética, portanto, artística. Até este ponto percebo que a concepção de arte e do belo parecem ser muito mais complacentes e plásticas do que a de ciência, inerte e pétrea desde a sua fundação. Logo, concluo parecer ser mais plausível a arte considerar a ciência como uma expressão artística do belo, do que a ciência tolerar ser instituída como uma possível forma de arte.    

Com efeito, não seria absurdo considerar a ciência, por meio de suas linguagens de comunicação, um poderoso estado de manifestação artística. Entretanto, certamente, esta afirmação não encontraria eco no pensamento de Descartes (1596-1650), pai fundador do método científico, desta maneira, do pensamento crítico moderno. 

Mas há ainda outra ponderação a qual não devo me furtar e que produziu poderosa influência sobre a reflexão pós-moderna sobre o belo. Nela, Nietzsche (1844-1900) concebe um juízo estético em que ironicamente não é dirigido ao belo, enquanto resultado final do fazer artístico, mas ao belo inato e oculto do gênio que o cria. Este deslocamento de referencial, em direção ao criador da arte, e não para o observador, é referendado pela existência de uma potência criativa do artista como sendo uma força ativa por excelência. O paralelo que traço aqui é entre artistas e cientistas, como sendo ambos, eminentemente, movidos por forças ativas geradoras da criação de suas obras. Assim, para o cientista, a beleza residiria nessa essência criativa que se traduziria em inspiração, ou melhor, numa vocação pragmática para a construção de modelos experimentais e teóricos capazes de decodificar a natureza e seus significados. O produto final deste processo, por assim dizer artístico, se afastaria da frieza protocolar dos gráficos bem como da sobriedade semiótica, ficando muito mais próximo da constituição das hipóteses de trabalho, da abordagem verificadora destas e, finalmente, da própria produção de conhecimento.

Os consumidores de conhecimento científico, assim como os de arte, tendem a uma valoração excessiva de seus produtos, em detrimento de seus agentes geradores, sendo esta uma injustiça apreciativa, segundo Nietzsche. Portanto, mesmo neste ambiente de efervescência criativa (falo em nome da academia), a acentuada tendência de uniformização formal acabaria por aplacar qualquer ímpeto subversivo ao sistema vigente. Isso significa que caso o cientista proponha qualquer discussão, formatação ou mesmo abordagem, que fuja ao que é corriqueiramente tolerado, ele será rechaçado imediatamente com a denegação de sua proposta. Não precisamos nos aventurar muito, basta olharmos para a quantidade ínfima de artigos que trazem, e discutem, resultados negativos na literatura. Em oposição, destaco a profusão de publicações que trazem achados pleonásticos, exemplificando o que se chama de ciência incremental.

Por óbvio, a ciência, por meio de suas revistas, congressos, comunicações, mídias contemporâneas e sua hierarquia, ergueu um imponente e fortificado sistema de dominação, e de violência simbólica, característica deste campo social científico. Campo este que, como nos ensinou Bourdieu (1930-2002), possui autonomia e habitus específicos, assim como uma forte dominação consentida, consequentemente, afastando qualquer possível aproximação da ciência com a arte, ou qualquer outra assimetria desautorizada.

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