Karina tinha 13 anos quando foi expulsa de sua casa, em Joinville, no norte de Santa Catarina. Ela é a mais velha entre quatro irmãos e tinha acabado de se assumir homossexual para a família. Rejeitada pelo padrasto, Karina precisou escolher: ou ela iria para as ruas sozinha, ou o marido da mãe expulsaria todos.
“Ele não aceitou, me bateu e me tirou de casa”, relata. Foi então que Karina seguiu para Blumenau, onde um homem a acolheu durante dois anos. Para sobreviver, aos 15 anos Karina entrou para a prostituição, e foi nesse contexto que se descobriu trans. “Eu sempre fui assim, sabe. Mas já fui pra igreja, já raspei minha cabeça, já tentei de tudo para ver se eu mudava – essas ideias que passam na mente da gente ou que as pessoas dão.”
Sem lugar para ficar, a jovem passou por Balneário Camboriú, Foz do Iguaçu, Itajaí, Jaraguá do Sul, Penha, Navegantes, Piçarras, até chegar em Curitiba, em abril de 2021. Hoje, aos 25 anos, ela relata como a falta de assistência e o preconceito contra a população LGBTQIA+ ferem sua existência e a mantém em uma das posições de maior vulnerabilidade da sociedade.
Com o sonho de sair da situação de rua e voltar para a casa da mãe, Karina diz se sentir encurralada e impotente diante de uma sociedade baseada na lógica cisheteronormativa (em que a cisgeneridade e a heterossexualidade são tidas como um padrão). “O povo não aceita travesti e transexual em trabalho nenhum. Se tivesse um emprego eu não estaria nessa condição, mas não aceitam. Os abrigos [da Fundação de Ação Social] também são complicados porque a gente é rejeitada. Já ouvi de travestis que passaram por lá”, afirma.
Sobreposição de vulnerabilidades
De acordo com o Grupo Dignidade, que atua junto do movimento LGBTQIA+ curitibano há mais de 30 anos, a maior parte das pessoas em situação de rua da comunidade são mulheres trans e travestis. Assim como Karina, a entidade estima que existam pelo menos outras 30 mulheres transgêneras que vivem nas ruas de Curitiba.
“Esse é um número baseado nos atendimentos da instituição. Mas não há dados oficiais. Esse é o nosso maior desafio e um dos piores problemas porque a gente acaba não tendo como quantificar a população LGBTI e isso obviamente acarreta na dificuldade de formulação de políticas públicas e investimentos”, destaca Rafaelly Wiest, Conselheira Consultiva do Grupo Dignidade e Diretora Administrativa da Aliança Nacional LGBTI+.
Rafaelly explica que, embora não seja regra, são dois os motivos principais que levam a população trans à condição de rua: a não aceitação da família quanto à orientação sexual e identidade de gênero da pessoa, e o excesso do uso de drogas ilícitas e álcool.
Além da violência a que as mulheres transgêneras são submetidas diariamente nas ruas, a situação mais preocupante na visão do Dignidade é a auto medicação hormonal e o elevado risco de contração de Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST). “Por conta da extrema vulnerabilidade, a saúde delas fica muito prejudicada.”
De acordo com Rafaelly, a realidade de crueldade, opressão e abandono que atravessa as pessoas da comunidade LGBTQIA+ é extrema no Brasil. Sendo o país que mais mata essa população no mundo pelo 13º ano consecutivo, de acordo com a ONG Transgender Europe (TGEU), cada vez mais há no Brasil a deslegitimação das pautas de Direitos Humanos e o consequente aumento do racismo, machismo e LGBTfobia. Sozinho, o país acumula 38,2% de todas as mortes de pessoas trans no mundo.
Em 2021, conforme dados do Dossiê Assassinatos e Violências contra Travestis e Transexuais, publicado pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), o Brasil executou 140 pessoas trans, sendo 135 travestis e mulheres transexuais. Houve também 79 tentativas de assassinato. Só no Paraná foram sete homicídios – esses números desconsideram a grave subnotificação dos casos, que reforça ainda mais a invisibilização do grupo.
“Nos últimos anos as pessoas passaram a se sentir autorizadas a serem preconceituosas. Se a população LGBTI que não está em situação de rua já tem toda essa realidade de discriminação, de não conseguir estudar e encontrar lugar no mercado formal de trabalho, não ter apoio da família, não ter acesso à saúde e à garantia de direitos fundamentais…imagina para quem está em situação de rua. Estando nessa situação, a pessoa literalmente não é enxergada. E quando é, sempre tem as barreiras por conta da sua identidade de gênero. É uma realidade muito complicada”, reflete Rafaelly.
Uma das saídas seria o acolhimento feito pela assistência social de Curitiba. O problema é que, conforme relata Rafaelly, a população LGBTQIA+ é discriminada e reprimida nos abrigos, o que acaba acarretando na permanência desse público nas ruas. “O acolhimento é um desafio, porque muitas pessoas transgêneras sofrem uma dificuldade de aceitação e respeito. Há relatos até de violência.”
Por isso, uma das soluções buscadas pelo Grupo Dignidade é a criação de um centro de acolhimento para abrigar pessoas LGBTQIA+ em situação de vulnerabilidade social, como existem em São Paulo (Casa Florescer) e no Rio de Janeiro (CasaNem).
“Seria uma casa em que a gente poderia não só acolher essas pessoas, mas dar um atendimento psicológico-social e tentar fazer com que elas retomem o senso de cidadania e retomem suas vidas como um todo, os estudos, trabalhos e o cuidado com a saúde”, descreve Rafaelly.
Assistência
Atualmente no Brasil não existem políticas públicas específicas para pessoas transgêneras em situação de rua. O que acontece são projetos, ações pontuais e políticas locais. No âmbito municipal, Curitiba dispõe de mecanismos oficiais para assistir à população LGBTQIA+ e criar espaços de diálogo. Um exemplo é a Assessoria de Diversidade Sexual e Gênero, vinculada à prefeitura, que pensa estratégias e políticas públicas voltadas à comunidade.
Além disso, há também o Comitê Técnico de Saúde Integral à População LGBTI e o Centro de Orientação e Aconselhamento (E-Coa), que tem como foco a prevenção em HIV, Aids e outras doenças sexualmente transmissíveis.
Procurada pela reportagem, a FAS informou que a garantia de acesso aos serviços socioassistenciais, atendimento humanizado e respeito à identidade de gênero às travestis e mulheres trans em situação de rua está entre os compromissos institucionais da fundação.
Atualmente, há sete mulheres transgêneras em abrigos da FAS. O número diminuiu desde agosto de 2021, quando constavam 16. A fundação explica que os abrigos são separados por gênero e que pessoas trans são acolhidas voluntariamente em unidades femininas e em vagas específicas dos hotéis sociais.
“A Política de Assistência Social atende aos indivíduos e famílias que dela necessitam. O atendimento em nossos serviços se dá de forma universal, compreendendo as necessidades sociais apresentadas por estes, bem como procura assegurar seus direitos afiançados e proteção integral, favorecendo a inclusão, a promoção e reinserção social”, disse a FAS em nota.
Segundo o Coordenador do Núcleo da Cidadania e Direitos Humanos (NUCIDH) da Defensoria Pública do Paraná (DPE-PR), Antonio Vitor Barbosa de Almeida, antigamente a FAS oferecia como serviços de acolhimento a pessoas transgêneras a Casa de Passagem LBT e a Casa de Passagem Bairro Novo. Contudo, agora, a fundação passou a destinar esse segmento da população apenas aos hotéis.
Na visão de Almeida, é preciso oferecer um serviço socioassistencial que leve em consideração as especificidades de atendimentos para pessoas transexuais e travestis, coisa que a FAS não entrega. “A fundação sustentou que aguardava a elaboração do Plano Municipal de Políticas da Diversidade Sexual para a implantação de outras políticas públicas destinadas a este segmento social. Esse plano trataria, inclusive, da eventual construção de casas de acolhida destinadas exclusivamente a travestis e transexuais.”
Diante da inexistência de uma política específica oferecida pela FAS à população LGBTQIA+, Almeida informou que entre os protocolos instaurados e a atuação da Defensoria estão o acolhimento de mulheres trans em situação de rua, atuação em casos de ofensas transfóbicas, articulação a fim de efetivar o acesso à população trans ao direito de cirurgias de transgenitalização e de retificação do nome, além de ocorrência de condutas preconceituosas e intolerância.
O Coordenador do NUCIDH ainda destacou o esforço da Defensoria para a implantação do programa “Moradia Primeiro”, que consiste na construção de unidades habitacionais destinadas à população em situação de rua e LGBTQIA+ mediante eventual taxa ou aluguel com valor proporcional ao rendimento do beneficiário. O Plano de Trabalho para a execução dessa política, no entanto, ainda não foi aprovado pelo Governo do Paraná.