Podcast – A era da burrice

Ignorar algo não é ser burro. Ser burro é achar que sabe e não aceitar quando alguém aponta o erro

Existem pessoas que são burras. Isso é um fato que  Sócrates já apontava na Atenas do século quinto antes da era comum. Burra é a pessoa que julga saber coisas que não sabe e que, diante dessa revelação nada faz ou, pior, irrita-se com quem tenta ser seu interlocutor.

Há uma  diferença clara entre os burros e as pessoas ignorantes, que somos todos nós, em um grau maior ou menor, mas sempre imenso. O burro não é o que não sabe, já que todos não sabemos quase nada; é o que recusa a ideia de que não sabe e tem raiva de quem lhe aponta, mesmo que com a melhor das intenções, a sua burrice. O burro é um perigo para os que o percebem. Foi o que aconteceu com Sócrates, que teve de enfrentar acusações descabidas, sem provas ou consistência, mas que foram suficientes para condená-lo à morte. Enfim, as pessoas burras, quando são muitas, são capazes inclusive de matar.

O desenvolvimento das redes de comunicação social criou um problema para as pessoas burras. O problema é que elas podem ser desveladas com maior facilidade em suas afirmações sem consistência e em seus conhecimentos inexistentes mas carregados de convicção em sua verve. Agora, basta uma breve consulta no site de buscas e lá temos nós os dados, as citações, as imagens, os longos arrazoados dos especialistas. É um verdadeiro “caça-burros” e suas certezas sem pé nem cabeça. É muito comum o constrangimento do burro e, nestes casos, não é raro arranjar-se um inimigo para a vida toda.

Dos que caçam burros, a juventude – assim como na época de Sócrates – é a que mais se diverte com esse tira-teima com os mais velhos, principalmente nas salas de aula. Quantos professores posaram de sábios na época em que os alunos e alunas não dispunham de uma enciclopédia à mão? Agora a conversa é outra. As pessoas burras estão nuas, diante de seu antigo séquito de admiradores. Não é difícil imaginar o ressentimento, que é a sensação de incapacidade de não ser algo que se gostaria de ser e a transferência para o outro da responsabilidade por essa falta.

Por outro lado, as  redes sociais também foram uma incrível oportunidade para os burros e pagamos todos um alto preço por isso. Oportunidade que exige uma operação complexa, difícil, árdua mesmo, mas que vem apresentando ótimos resultados. Trata-se de inundar a internet de notícias falsas e, assim, quebrar os referenciais de conhecimento, enxovalhando os veículos de comunicação tradicionais e as fontes do saber científico , bem como suas publicações. Um contra-ataque certeiro e que atingiu principalmente os jovens, os mesmos alegrinhos que queriam desmascarar a falta de conhecimento dos mais velhos e que  agora se veem perdidos em meio a tantas versões sobre o mesmo fato.

Verdadeira cruzada entre moros y cristianos, a burrice dos que não sabem e têm raiva dos que sabem versus os que queriam saber mas não sabem como fazê-lo, criou o que, em um outro contexto, o poeta Torquato Neto chamou de “geleia geral”. Nesse ambiente confuso e atordoante, os burros são os maiores beneficiados, avançando seus exércitos e cooptando milhões de desertores dos seus “inimigos”, encurralando assim as pessoas que precisam de tempo, dedicação e paciência para que o conhecimento possa ter alguma validade e eficácia. Porque vencer a ignorância leva tempo e dá trabalho. Sócrates já dizia que conhecer é como um parto, longo e difícil. E que ele, o filósofo, era o parteiro: não cabia a ele dizer o que conhecer mas apenas ajudar na busca. Ou seja, os atrativos para superar a burrice não são muito bons, principalmente nesses tempos de soluções fáceis e intuitivas, de tradutores automáticos, de vozes no celular que encontram endereços para nós e leem os textos que eventualmente as faculdade pedem para conhecermos e que temos preguiça de sequer passar os olhos neles.

Agora, a cartada final: é cada vez mais difícil desmascarar um burro escondido no “eu acho”, “é a minha opinião”, “é meu direito pensar como eu quero”, “quem é você para me dizer que é assim?”, “prove que eu estou errado?”, e tantos outros disfarces. Com essa estratégia matadora – literalmente –  eles não apenas se multiplicam como musgo – para lembrar uma metáfora de Hannah Arendt – como acabam, na sua burrice, esquecendo que são burros. É a metamorfose completa. Agora eles não se escondem mais, não temem ser desmascarados, porque sua burrice está no poder. Nas praças, os jovens não questionam mais nada e Sócrates é só um velho rabugento que fala coisas que ninguém ouve ou dá atenção.

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2 comentários em “Podcast – A era da burrice”

  1. A grande sacada! Gostei desse texto. Representa muito bem o comportamento das pessoas que só lêem as manchetes e acham que conhecem profundamente o conteúdo. Parabéns!

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