Povos indígenas têm sistema próprio nas aldeias para punir criminosos

No Paraná, os Kaingang têm um sistema criminal próprio, que segue uma hierarquia de crimes e punições dentro das aldeias

Na concepção política-cultural do Ocidente, ditada pelos brancos, o encarceramento é a resposta óbvia na resolução de conflitos. Mas os povos originários do Brasil têm uma compreensão diferente. No Paraná, os Kaingang têm um sistema criminal próprio, que segue uma hierarquia de crimes e punições dentro das aldeias.

A observação é de Florencio Rékayg Fernandes, doutorando em Antropologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), intérprete vinculado ao Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR) e indígena Kaingang natural de Rio das Cobras, a maior terra indígena do Paraná. Com quase 19 mil hectares, 85% dos quais compostos por mata nativa, a região é formada por 4 mil indígenas das etnias Kaingang e Guarani divididos em 11 aldeias, que ficam em dois municípios paranaenses, Espigão Alto do Iguaçu e Novas Laranjeiras, a cerca de 400 quilômetros de Curitiba.

Cacique

Segundo Fernandes, cada comunidade indígena, por uma questão cultural, tem um sistema prisional e uma legislação interna. Outras etnias podem se organizar de formas distintas, mas para os Kaingang de Rio das Cobras, o cacique de cada aldeia é responsável por determinar quem vai realizar a apuração e investigação da infração cometida: a polícia indígena ou a polícia “de fora”, dos brancos. Essa decisão depende, primordialmente, da gravidade do crime para a comunidade. 

“Se for um problema grave, o indígena corre o risco de sofrer uma reação da família da vítima, por exemplo. Se o cacique achar que o indígena é uma ameaça para toda comunidade, ele chama a polícia e a pessoa responde à Justiça fora”, afirma.

Caso contrário, o acusado é julgado e, se for pertinente, preso no sistema de carceragem de Rio das Cobras. Das 11 aldeias da região, apenas quatro não possuem cadeias.

Polícia indígena

Conforme Fernandes, para fazer parte da polícia de Rio das Cobras, que é majoritariamente formada por jovens, o indígena precisa se voluntariar. Em raros casos, são os caciques que solicitam a atuação de membros das aldeias no policiamento.

“Não tem salário, mas participar da polícia é uma forma de mostrar que você quer ser da liderança indígena, e acaba sendo uma aprendizagem”, conta Fernandes, que também fez parte do grupo quando era mais novo. 

A estrutura do policiamento tem uma lógica bem definida. Em cada aldeia, um grupo de guardas é responsável pelas rondas diárias, pelo encaminhamento das pessoas ao cacique local (como se fosse uma intimação) e por marcar e realizar as audiências.

“É muito bacana porque a gente defende e cuida do nosso povo. E nada escapa aos olhos da polícia indígena porque eles estão sempre fazendo rondas, sempre cuidando.” 

Além disso, os policiais têm carros adaptados e contam com a ajuda do carcereiro, responsável pela cadeia central, que é maior se comparada às outras.

Em Rio das Cobras, indígenas têm uma polícia própria. Foto: Unicentro/Reprodução

Infrações e penalidades

Em Rio das Cobras, caso o indígena seja condenado, ele pode cumprir outros tipos de pena, a depender do crime e da avaliação do cacique, antes da prisão. Por exemplo, há a possibilidade de prestar serviços à comunidade ou executar a sentença em outra aldeia. 

Pela legislação interna, algumas infrações podem gerar prisão, sendo o tempo mínimo de reclusão de cinco dias e o máximo de 20. Desobedecer o toque de recolher das aldeias, normalmente fixado às 23h, separação ou divórcio (20 dias de reclusão na cadeia), ameaças (cinco dias), brigas durante eventos festivos (cinco dias), são alguns exemplos. Determinadas práticas podem não estar previstas no Código Penal, mas a comunidade considera crime, como por exemplo o adultério, que rende cinco dias de prisão.

Se no entendimento do cacique o crime foi grave, o infrator pode ser banido temporariamente da aldeia em que reside. Nessas situações, o indígena é enviado a outra comunidade por um período que varia de um a dois anos. 

Segundo Fernandes, o problema mais comum em Rio das Cobras é o alcoolismo. Hoje, como algumas aldeias ficam próximas a rodovias, há muitos acidentes envolvendo carros e pessoas, mortes, estupros e conflitos. Por esse motivo, o cacique passou a chamar a “polícia dos brancos” e, agora, a ronda é feita pelos dois grupos policiais, em conjunto.

Exclusão

Na visão do antropólogo Felipe Kamaroski, que atua desde janeiro de 2022 como perito da Justiça, há uma problemática em usar a prisão, como atribuída pela concepção da cultura ocidental branca, para resolver conflitos de povos originários.

“A gente precisa conceber que existem outras formas de vigiar e punir. Outra questão é a ideia de que o Judiciário é o único capaz de punir e readequar as pessoas. É muito desproporcional a forma como o nosso estado trata as pessoas que não seguem a Justiça”, afirma.

Outro ponto controverso para Kamaroski é a desconexão dos indígenas com as comunidades resultante de anos presos em penitenciárias estaduais. “A gente tira essas pessoas das comunidades, elas ficam anos longe, e depois o sistema joga elas para fora. Você exclui essa pessoa da comunidade, no momento que ela sai do sistema penal, ela já não encontra uma correspondência como ela havia deixado na comunidade que ela nasceu e viveu.”

De acordo com Florencio Rékayg Fernandes, a realidade e a organização de Rio das Cobras, além de coletivas, podem sofrer alterações a qualquer momento. “É muito dinâmico. Cada cacique que entra tem direito de mudar a legislação interna cultural da comunidade.”

Ele também destaca como a prisão de uma pessoa indígena produz impactos não apenas na vida dela como na comunidade inteira, gerando consequências individuais e coletivas. Um exemplo é quando lideranças religiosas são presas. Isso pode dificultar a realização de rituais e cerimônias essenciais à existência de determinados povos. “A gente precisa pensar sobre isso porque um membro que se perde na nossa comunidade é um membro que se perde na história Kaingang.”

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