Apesar de o homeschooling ser proibido, 3 mil famílias educam os filhos em casa no PR

Especialistas explicam que escola é mais do que conteúdo e é essencial para desenvolvimento das crianças

Há sete anos os dois filhos de Paulo [a identidade do pai educador foi resguardada por receio de retaliação] não vão à escola. Os adolescentes recebem educação em casa desde o ensino fundamental e hoje estão se preparando para o vestibular com uma rotina de estudos definida pelos pais.

“Acordam cedo e por volta das 7h tomam café da manhã. Em torno das 8h30 começam a estudar e vão até as 12h. Almoçam e às 14h retomam os estudos, dependendo do que está programado no dia para ser feito”, conta o pai.

A família de Paulo está entre as 3 mil que adotam o homeschooling (ensino domiciliar) no Paraná, modalidade proibida no Brasil, mas que nos últimos anos tem mobilizado uma parcela significativa de pessoas e parlamentares para que seja regulamentada. 

“O ambiente escolar era muito ruim, gerava uma exposição precoce dos nossos filhos a coisas que ainda não eram compatíveis com a idade que tinham”, afirma Paulo, sobre o motivo que levou a família a optar pela educação domiciliar.

O pai educador, como ele se define, conta que os filhos estudaram em escolas regulares até o 4º e o 6º ano e que, após adotarem o homeschooling, “cresceram na independência para a obtenção do conhecimento”.

Um dos objetivos da educação domiciliar é o autodidatismo. Cada vez mais eles se tornaram protagonistas no processo educativo e não meros repetidores de um modelo já estabelecido”.

Paulo, pai educador

Como não existem regras para fiscalizar o modo como as crianças que estudam em casa devem ser avaliadas, cada família define seu modelo.

Os filhos de Paulo, por exemplo, não fazem avaliações periódicas. Para comprovar que realizaram o ensino fundamental, as crianças obtiveram a certificação através do Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos (Encceja), que na verdade é utilizado para aferir habilidades e saberes de pessoas que não concluíram o ensino fundamental ou médio na idade adequada. 

“Avaliamos o aprendizado através do acompanhamento das tarefas diárias. O que temos são as evidências materiais que estão estudando (cadernos, livros, etc), além é claro, dos resultados que já obtivemos no Encceja, ENEM e vestibular da UFPR”, explica Paulo.

Quem são as famílias educadoras?

De acordo com o representante da Associação Nacional de Educação Domiciliar (ANED) no Paraná, Ismar Amaral Pereira, apesar de não haver regulamentação para essa modalidade, estima-se que hoje 30 mil famílias adotem o homeschooling no Brasil, sendo que 10% delas estão no Paraná. 

“São muitas famílias interessadas, principalmente após a pandemia, quando muitos pais começaram a acompanhar mais de perto as atividades escolares dos filhos e viram que ensinar em casa, além de possível, traz ‘n’ outros ganhos para as crianças e para a família”, afirma Pereira.

O número de pessoas envolvidas com o homeschooling é pequeno se comparado com o contexto brasileiro, que tem 46,7 milhões de estudantes na Educação Básica, segundo dados do Censo Escolar de 2021. Só no Paraná são 1 milhão de alunos matriculados no ensino regular. Mas, segundo a ANED, a quantidade de famílias que procuram o ensino domiciliar cresce uma média de 55% ao ano.

“São famílias que estão preocupadas com a formação educacional dos filhos e que entendem que podem fazer mais por eles que as modalidades de educação existentes hoje. A liberdade para educar é um requisito importante, poder prover um ensino personalizado, focado nas necessidades individuais das crianças. Cada criança tem seu ritmo, suas habilidades e suas dificuldades.”

Em geral, conforme a ANED, a educação domiciliar é realizada por famílias com situação econômica superior à média daquelas com crianças em idade escolar e há estudantes de todas as faixas etárias.

Batalha jurídica

Em março deste ano, o Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR) declarou inconstitucional a lei que regulamentava o homeschooling no Paraná. Proposta pela Assembleia Legislativa em 20 de setembro de 2021, a lei que formalizou a oferta da educação domiciliar incorreu em um impasse legal, uma vez que a competência para legislar sobre o tema é da União, não do estado. 

Após a decisão do TJPR, vereadores autores de um projeto de mesmo teor pediram a retirada da proposta da Câmara de Curitiba

“Não é assim que se faz lei na área da educação. A responsabilidade de legislar sobre as diretrizes nacionais da educação é função do Congresso Nacional. Quem pode introduzir atores novos no processo educacional, como seria o caso das famílias, é a política de estado nacional, que tem que ser aprovada pelo Executivo e pelo Legislativo. Toda vez que uma Assembleia Legislativa ou Câmara de Vereadores legisla sobre isso estão criando um ator novo que não está previsto no sistema nacional e isso não é autorizado pela Constituição”, explica o doutor em Direito e professor do Mestrado em Direito da Universidade Positivo (UP), Carlos Luiz Strapazzon. 

Antes mesmo de ser derrubada, a proposta já era questionada por constitucionalistas e deputados estaduais por esbarrar em aspectos jurídicos definidos que hoje não contemplam o homeschooling como prática regulamentada na educação. 

Strapazzon destaca que, no Brasil, além do acesso à Educação Básica ser um direito de todo o cidadão e dever do Estado e das famílias, sua oferta deve ser gratuita e obrigatória, como previsto no Inciso I do Art. 208 da Constituição.

“Do ponto de vista estritamente jurídico, as famílias não têm o direito de privar os seus filhos da educação escolar. Elas precisam optar pela matrícula em escolas públicas ou privadas (que podem ser confessionais, laicas, etc). Quem não está fazendo isso está violando um direito das crianças de terem educação escolar”, diz Strapazzon.

De acordo com o professor, situações em que as crianças não estão matriculadas em escolas por estarem sendo educadas em casa podem ser denunciadas ao Ministério Público, que poderia intervir em prol dos direitos das crianças.

O constitucionalista explica ainda que, em um primeiro momento, a Constituição brasileira não impede que o país regulamente a prática do homeschooling como um modelo de educação. No entanto, o atual sistema educacional é muito bem regulado e institucionalizado, tendo diretrizes constitucionais fixadas em leis, amplos protocolos e divisão de funções entre federação, estados e municípios, que atuam na regulação, financiamento e avaliação desse sistema.

Isso significa que as famílias poderiam exercer um papel protagonista, e não apenas complementar, na educação das crianças, mas, para isso acontecer, seria preciso alterar a lei nacional e esses novos atores teriam que se alinhar às diretrizes da legislação. 

“Não é simples replicar o sistema educacional brasileiro no ambiente doméstico. Isso seria privar a criança de coisas importantíssimas para o desenvolvimento dela. A educação no Brasil é um tema de toda a sociedade, não só das famílias ou de um grupo escolar específico. Se fizéssemos um levantamento estatístico de quantas são as famílias brasileiras que estão em reais condições de reproduzir no ambiente doméstico esse modelo de educação, nós iríamos encontrar um percentual infinitesimal”, explica Strapazzon.

Na visão do doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e professor de Direito Constitucional da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), Antonio Kozikoski, apesar de as famílias terem um papel na promoção da educação, elas não podem reivindicar para si, no contexto legal atual, o direito de educar as crianças. 

“O que temos hoje é um certo vazio legislativo do plano federal. Não existe uma lei federal estabelecendo normas gerais a respeito do ensino domiciliar e isso fez com que o STF [Supremo Tribunal Federal] reconhecesse há pouco tempo que o homeschooling não pode ser realizado.”

Kozikoski explica que, embora não haja nenhum tipo de penalidade ou sanção direta para as famílias que praticam a educação domiciliar, uma consequência do homeschooling pode ser a entrada em universidades, que, legalmente, podem exigir dos estudantes o diploma formal de conclusão do ensino médio. 

No entanto, a negativa da instituição, para Kozikoski, pode ser questionada na Justiça, já a decisão do Supremo de não autorizar o ensino domiciliar é recente.

“A gente tem um hiato que tem que ser bem cuidado. Na ausência de um sim ou de um não, algumas pessoas optaram por esse modelo [do homeschooling] partindo do pressuposto que a Constituição fala em dever da família. Uma pessoa que começou a ensinar a criança em casa há cinco anos, num cenário em que não existia a decisão do STF proibindo o homeschooling, o que devemos fazer com ela? Para mim, o Poder Judiciário tem que olhar para essa situação de transição e partir do pressuposto da educação como um direito de todos e o acesso à universidade como universal”, explica o especialista, que não vê problema para a regulamentação do homeschooling no país, desde que seja previsto legalmente.

“O não fazer a lei é uma opção legislativa válida. O Congresso pode não se sentir maduro para enfrentar esse tema e não regular. Mas eu creio que tem espaço para legislação federal e que a família pode ter o direito de avocar para si essa atribuição com os ônus e bônus que disso decorre. Só não poderia haver uma imposição porque aí seria uma delegação para o particular de uma atribuição que é estatal”, explica o especialista.

Escola é mais do que conteúdo

Assim como foi questionada do ponto de vista jurídico, a prática do homeschooling também vem sofrendo críticas por parte de profissionais da educação por vários motivos, como dificultar a socialização dos alunos, impedir o contato com diferentes pensamentos, aumentar a desigualdade, a marginalização social e a exposição à violência doméstica.

Andréa Bezerra Cordeiro é professora do Departamento de Planejamento e Administração Escolar do Setor de Educação da UFPR, onde leciona uma disciplina voltada ao trabalho pedagógico em espaços de educação não formal (fora da escola) e à educação informal, aquela realizada no âmbito das relações íntimas sociais, com a família, por exemplo. 

Para a docente, apesar de a família ser uma instância educadora fundamental, ela não deve ser a única. Além do ambiente doméstico, a criança aprende em espaços culturais (museus, bibliotecas, cinemas), na mídia e, principalmente, na escola. 

Na visão da educadora, nas instituições de ensino a criança tem a possibilidade de conviver com os seus pares e outros adultos que não apenas as figuras de autoridade da família, estabelecer laços e começar a reconhecer sua identidade. “A maneira de pensar da criança muitas vezes vai entrar em contraposição com a maneira de pensar do outro e ela vai aprender a lidar com isso. Esse é um ponto que pode parecer assustador para algumas famílias, mas na verdade é um elemento muito salutar para o desenvolvimento de um pensamento verdadeiramente livre e reflexivo”, destaca.

“A gente tem a escola como uma garantia de direitos. Além de ser um espaço de pluralidade, de vivenciar outras formas de pensar, de conhecimento que não está só nos livros, a escola também faz parte do que a gente chama de rede de proteção”, afirma Andréa, que destaca o papel da escola na segurança alimentar de crianças e famílias de baixa renda e na denúncia de possíveis casos de violência e abusos.

“As crianças não pertencem aos pais. Elas são seres sociais, cidadãs que têm direitos (à proteção, alimentação) e a escola é, muitas vezes, a instância que vai estar ali para olhar para essa criança nessa dimensão dos direitos.”

Andréa Bezerra Cordeiro

Na visão da pedagoga, mesmo em países onde o homeschooling é regulamentado e autorizado, como os Estados Unidos, esse acaba sendo um sistema frágil e perigoso, porque nenhuma família consegue suprir, igualmente, as demandas e necessidades que as instituições de ensino são capazes de atender.

“O pai saber matemática ou português não significa que ele vai ter a mesma formação que uma pessoa que estudou um curso de licenciatura durante quatro anos para entender os métodos e formas diferentes de ensinar. As crianças não aprendem todas da mesma maneira e a escola tem uma equipe pensada para essas situações. Dentro de casa, essa relação um a um vai ser limitante no sentido do desenvolvimento de algumas aprendizagens”, diz Andréa.

“A escola é mais do que conteúdo. Ela não está ali só para que a criança consiga fazer um teste, passar no ENEM ou no vestibular, a escola existe para que a gente entenda que nós somos seres da comunidade. Dentro do seio da família, a bolha fica muito restrita. Tirar essa experiência da vivência da escola é mutilar uma parte da infância e da juventude que é muito importante para o desenvolvimento não só social, mas também cognitivo das crianças”, explica a especialista.

“A escola é um espaço importante para as relações sociais, para aprendermos por meio das vivências, convivências e partilhas. Isso, dentro de casa, é mais difícil. Mais do que o conteúdo escolar, essa relação da socialização e estar junto faz com que a gente aprenda muito mais do que só utilizando cartilhas e livros”, pontua a também professora do Departamento de Planejamento e Administração Escolar do Setor de Educação da UFPR, Roberlayne Borges Roballo.

Procurada, a Secretaria de Educação do Paraná (SEED) afirmou que, como não há legislação que regulamente o homeschooling no Brasil, ele não é considerado uma modalidade de ensino. “Crianças e adolescentes em idade escolar que não estejam frequentando a escola são considerados em situação de abandono escolar”, afirmou o órgão em nota.

A Secretaria de Educação de Curitiba informou que a rede pública de ensino da cidade recebe o estudante com base na declaração de matrícula da escola, situação que não ocorre com o homeschooling, uma vez que não é reconhecido por lei.

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