Ensino domiciliar não pode ser implantado no Paraná mesmo que governador sancione lei

Para especialistas, Constituição não dá competência a deputados estaduais para decidir sobre o tema, e LDB ainda não contempla modalidade

O projeto que autoriza a prática do homeschooling no Paraná, aprovado em 1ª votação na Assembleia Legislativa (Alep) nesta terça-feira (24), não tem condições legais de prosperar no Paraná. Para constitucionalistas, mesmo que confirmada em definitivo pelos deputados e sancionada pelo governador Ratinho Jr. (PSD), a proposta é inviável diante da ordem jurídica atualmente estabelecida – motivo pelo qual a intenção vem sendo interpretada mais como um aceno a bases eleitorais do que como uma movimentação objetiva em relação ao tema.

Nesta quarta (25), o PL voltou ao plenário para 2ª votação, mas foi retirado de pauta por  emenda apresentada pela oposição. O teor do documento, que agora será analisado pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), pede que a escolarização formal em instituição de ensino siga como a única modalidade pedagógica aceita no sistema da educação básica paranaense.

Ao que tudo indica, a discussão só não ganhará os tribunais do país se o Executivo decidir usar seu poder de veto. Na Assembleia, a proposta deve ser referendada sem obstáculos, pois leva a assinatura de 35 dos 54 parlamentares da Casa. Na apreciação desta terça, foram apenas sete votos contrários ao projeto, que institui o ensino domiciliar no Paraná amparado no argumento de que a escolha entre ensino escolar e homeschooling compete aos pais e não ao Estado.   

A justificativa da proposta pega embalo na pandemia da Covid-19, que fechou escolas ao redor do mundo por causa dos riscos da contaminação e obrigou países a adotarem um sistema de educação temporário a distância, cuja base foi e tem sido a própria casa dos alunos. Como referencial, o PL buscou respaldo em pesquisas do Instituto DataSenado feitas em 2019 e 2020. A comparação entre os dois anos mostrou aumento de 20% para 36% de famílias brasileiras interessadas no ensino domiciliar, embora a maioria – 61% – ainda seja contra a modalidade. Mas não só. O grupo de deputados também defende o homeschooling como uma medida de economia. “O governo brasileiro gasta anualmente R$ 11.818,00 por aluno do Ensino Fundamental e R$ 36.378,00 no Ensino Médio (…). Nos EUA, Homeschooling gera uma economia ao governo de U$ 20 bilhões ao ano (…)”, diz o texto.

A vontade dos parlamentares, no entanto, não deve ser suficiente. O debate esbarra em aspectos jurídicos muito bem definidos que hoje não contemplam o exercício do ensino domiciliar como prática regulamentada na educação e, ao mesmo tempo, não permitem que mudanças estruturais no sistema sejam analisadas individualmente por entes federativos. Ou seja, embora estados e municípios tenham competência concorrente com a União para legislar sobre ensino, nenhuma decisão pode ferir o conjunto de diretrizes básicas da educação no Brasil.

“O problema em relação ao homeschooling é que essa autorização para que estados e municípios legislem tem que ocorrer respeitando as normas gerais da União, que nesse caso é a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), e ela não autoriza essa modalidade”, observa Paulo Schier, advogado e professor de Direito Constitucional do Centro Universitário Autônomo do Brasil (UniBrasil). “É claro que o estado pode legislar sobre o Ensino Médio, por exemplo, definindo um currículo desde que respeite o currículo mínimo, definindo questões sobre os materiais didáticos, mas jamais revogando uma norma geral que veda isso”.

O professor de Direito Constitucional do mestrado em Direito da Universidade Positivo (UP), Carlos Strapazzon, relembra que nenhuma das atualizações da LDB validadas pelo Congresso até agora estabeleceram diretrizes gerais para viabilizar a educação no ambiente domiciliar. Para o docente, que é doutor em Direito, regular o homeschooling é um objetivo legítimo e válido, mas insustentável a partir de iniciativas que, ao invés de propor alterações à legislação específica, simplesmente a ignoram.

Hoje, assim como o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a LDB, instituída em 1996 como norma padrão para as diretrizes e bases da educação nacional, obriga a matrícula e a frequência de crianças e adolescentes em escolas formais, além de estabelecer o ensino como responsabilidade compartilhada entre família e Estado – como o faz a própria Constituição Federal. Paralelamente, o Plano Nacional de Educação (PNE) aprovado pelo Congresso para o decênio entre 2014 e 2024 como uma espécie de agenda de investimentos para o período também não inclui o ensino domiciliar entre as metas às quais devem ser dadas prioridades pelos gestores  públicos.

“Não é inconstitucional, não tem nenhuma proibição nem é nenhum absurdo regular a educação domiciliar”, salienta o docente da UP. “Mas a educação básica no Brasil não é feita de qualquer jeito. Existe uma lei nacional com diretrizes gerais, de direitos e deveres. Existe a Constituição dizendo que os estados devem priorizar o cuidado e a manutenção da educação básica e ajudar os municípios na educação fundamental; que os municípios têm que priorizar a educação fundamental, mas ninguém pode fazer isso a torto e a direito, como bem quiser. Nós temos uma política nacional de educação e isso é uma política de Estado, não é uma política de governo”, acrescenta.

Outros estados

O debate sobre a institucionalização do ensino domiciliar não é exclusivo do Paraná. Estados como Rio de Janeiro, Pernambuco e Santa Catarina também têm projetos semelhantes em trâmite no Legislativo. Em São Paulo, o Conselho Estadual de Educação se antecipou a uma possível autorização federal e criou limites para a prática da modalidade nos municípios paulistas. No Rio Grande do Sul, os deputados aprovaram proposta em dois turnos, mas o objetivo de regulamentar o homeschooling entre os gaúchos foi barrado pelo governador Eduardo Leite (PSDB). “Basicamente, o veto se deu por conta de o governador entender que o tema está envolto em insegurança jurídica, na medida em que há o entendimento de que o tema do ensino domiciliar deve ser normatizado por lei federal”, explicou nota publicada em 2 de julho pela Secretaria Estadual da Comunicação do Rio Grande do Sul para esclarecer o indeferimento.

Anteriormente ao debate gaúcho, a Câmara Legislativa de Brasília já havia aprovado, em dezembro de 2020, projeto para permitir ensino exclusivo em casa. A proposta teve anuência do governador Ibaneis Rocha (MDB), mas vem sendo questionada pelo Sindicato dos Professores no Distrito Federal (Sinpro), que apresentou à Justiça do Distrito Federal uma ação direta de inconstitucionalidade (ADI) para suspender os efeitos da lei. A pedido do Ministério Público distrital (MPDFT), O processo está suspenso desde julho porque a legislação, embora válida, ainda está sem regulamentação.

Proporcionalmente à expansão do tema, crescem também os embates jurídicos a respeito. Em 2018, com repercussão geral reconhecida, o plenário do Supremo Tribunal Federal entendeu por maioria que o ensino domiciliar não fere a Constituição, muito embora só seja aplicável se houver criação e aprovação pelo Congresso Nacional de lei específica para regulamentar a modalidade.

Embasada na decisão da Corte, o Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR) acolheu ADI proposta pelo deputado estadual Professor Lemos (PT) e decidiu em junho deste ano, por unanimidade, que nenhuma prefeitura ou Câmara Municipal tem o direito de aprovar o ensino domiciliar, sendo as decisões isoladas um vício de inconstitucionalidade de ordem formal.

“É flagrante a inconstitucionalidade formal da lei municipal a qual visa estabelecer balizas à prática do ensino fundamental, na medida em que impõe padrões comportamentais a serem observados pelos pais dos alunos e pelo Município, criando ditames para sua atuação, aviltando assim a Constituição Federal que prescreve ser privativa da União a competência para legislar sobre as diretrizes e bases da educação nacional (…)”, argumentou a desembargadora Maria José Teixeira, relatora do processo movido contra lei aprovada em Cascavel, no Oeste do Paraná.

Em setembro de 2020, os vereadores autorizaram a prática do homeschooling no município. Ao judiciário, a Câmara Municipal justificou a edição da lei diante da inexistência de legislação federal ou estadual sobre a matéria e da ausência de proibição à criação da modalidade de ensino consistente na educação domiciliar. Amparada pela Associação Nacional de Educação Domiciliar (ANED), o Legislativo pediu improcedência da ação, mas o TJPR acatou o argumento do deputado e reiterou a competência privativa da União para legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional. Por abrir precedente, a decisão do judiciário paranaense poderá suspender os efeitos de lei semelhante aprovada e sancionada em Toledo, também no Oeste, em dezembro do ano passado.

A movimentação parlamentar no Oeste justifica, politicamente, o trâmite da pauta Alep. O texto foi proposto inicialmente pelo deputado Marcio Pacheco (PDT) – com base eleitoral concentrada na região. Mas por se tratar de um tema de grande visibilidade e com uma bandeira cada vez mais forte, o projeto atraiu a maioria dos parlamentares da  Casa.

O projeto de lei em discussão pelos deputados do Paraná concentra em dez artigos as diretrizes do que seria o ensino domiciliar permitido no estado. Se aprovado, admitiria o homeschooling desde que o aluno estivesse submetido periodicamente a avaliações próprias do sistema educacional. O registro atualizado das atividades pedagógicas também está entre as exigências, porém deixaria de ser uma obrigação caso a criança ou o adolescente estivesse matriculado em uma “instituição de apoio ao ensino domiciliar”.

O texto não trata de requisitos específicos previstos hoje pela política nacional de educação, ignorando como ocorreria a transferência de recursos e de material didático e a qualificação dos pais para conduzir o conteúdo, por exemplo, deixando a cargo do Poder Executivo a regulamentação da matéria.

“Eu vejo que o problema de uma iniciativa como esta que está sendo feita na Assembleia Legislativa é a precipitação. A meu juízo, se Supremo Tribunal Federal e até mesmo o Tribunal de Justiça do Paraná forem coerentes com o que diz o artigo 24 da Constituição, essa lei não pode ser validada. Não pode entrar em vigor porque não pode obrigar nem criar o direito de fazer isso porque o projeto não dá a resposta para as grandes perguntas da política nacional de educação”, diz Strapazzon.

Articulação federal

Enquanto estados e municípios investem em tentativas isoladas, atendendo expectativas de eleitores, parlamentares federais também se articulam para abrir caminho ao homeschooling. Na Câmara Federal, as deputadas Chris Tonietto (PSL-RJ), Bia Kicis (PSL-DF) e Caroline de Toni (PSL-SC) elaboraram projeto para modificar o Código Penal e impedir que as sanções relacionadas ao crime sejam aplicadas a pais ou responsáveis que ofertarem a modalidade de educação domiciliar. A investida tenta desvincular o crime de abandono intelectual de pais ou responsáveis que decidam não mandar filhos a uma instituição de ensino formal de ensino.

O ensino domiciliar é uma ideia que agrada a gestão de Jair Bolsonaro (sem partido). Em lista de prioridades encaminhada ao Congresso em março deste ano, o presidente da República inseriu a regulamentação do ensino domiciliar. Levantamento da Agência Brasil feito em maio mostrou que ao menos 15 projetos sobre o tema tramitam no Congresso. Um deles, que estabelece as regras do que seria o ensino em casa, tramita sob relatoria da deputada paranaense Luísa Canziani (PTB).

Apesar das discussões em avanço, as propostas que movimentam parlamentares de estados e municípios ainda são muito rasas, avaliam os especialistas, e, sem base legal, não devem, por ora, surtir efeito prático a não ser em seus redutos eleitorais.

“Certamente os deputados sabem desse óbice, eles sabem que existem decisões do Supremo Tribunal Federal, sabem que o próprio Tribunal de Justiça do Paraná já deu decisão dizendo que municípios e estados não podem decidir. Então para que aprovar esse projeto de lei? Simplesmente por uma razão ideológica. Aquela história de que existe uma demanda de determinado grupo político, bolsonarista, que sempre trouxe essa bandeira. Agora você aprova isso e diz ‘eu fiz minha parte’”, analisa o advogado e professor Paulo Schier.

Sob o entendimento de que o objetivo de regulamentar o homeschooling é válido, embora os procedimentos isolados não estejam corretos, o docente da Universidade Positivo pondera que as casas legislativas estaduais perdem tempo ao atravessar as normas vigentes sem movimentar o Congresso para encaminhar propostas sólidas de mudança na legislação federal.

“Eles estão levantando uma poeira. O eleitor fica com a impressão de que ‘o meu deputado estadual fez a sua parte’, mas isso não é uma forma correta de dar uma resposta às bases eleitorais. A forma correta seria movimentar a bancada dos deputados federais do Paraná junto com outras bancadas federais para apresentar proposta de mudança na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional para a educação domiciliar. Isso seria o correto porque resolveria o problema e atenderia a necessidade dessa parcela da população que se acha em condições de fazer o que as escolas brasileiras fazem. Acho que muita gente vai ficar muito surpresa quando os critérios surgirem”, analisa Strapazzon.

Até o fechamento desta reportagem, o governo do Paraná não havia respondido se pretende vetar o PL do homeschooling que deve ser aprovado em 2ª votação na Alep. O líder do governo na Assembleia, o deputado  Hussein Bakri (PSD), foi um dos que votou favoravelmente à proposta. Além disso, o secretário de Estado da Educação do Paraná, Renato Feder – que já recebeu convite do presidente Jair Bolsonaro para assumir o MEC – é apontado como favorável à regulamentação do ensino domiciliar como modalidade de ensino.

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