“E vai piorar, viu! Tenho certeza que vai piorar”

Dias após a reabertura do comércio, curitibanos voltam a circular pela Rua XV e contam suas histórias plurais

Traço uma rota mental para ir ao mercado com generosos desvios. Subo a Alfredo Bufren, dobro no Paço da Liberdade, entro na XV de Novembro, vou e volto. 

Coloco a máscara, faço o truque de passar sabão nas lentes dos óculos para que não embacem, enfio o álcool gel na ecobag e saio do prédio – bem de frente para a praça Santos Andrade, onde uma pessoa em situação de rua dorme. Vejo a churrascaria grande do lado de casa, os sebos, a sapataria e a loja que vende artigos de umbanda de portas abertas. Paro pra comprar um incenso e me dirijo ao calçadão mais famoso da cidade. 

A rua mais famosa da Capital reabre para o comércio. Foto: Jess Carvalho

Há movimento, mas o cenário é atípico. Percorro-o inteiro. 

A olho, estimo que mais da metade das lojas estão funcionando. Algumas, as de departamento, mantêm operações restritas à entrada e estruturam filas para que os clientes paguem o cartão. Pessoas de máscara e com sacolas de farmácia se misturam a outras comendo coxinha enquanto escolhem uma pochete. Tem quem tome sorvete de casquinha com a máscara no queixo. Tem quem desfile sacolas e mais sacolas de lojas de sapato com a máscara no queixo. Sempre ela na paisagem: a máscara no queixo.

Lojas de departamento são bastante procuradas. Foto: Jess Carvalho

Sou abordada por um homem simpático carregando um isopor no ombro. Proponho: falo com você se você falar comigo, o que acha? – depois me apresento como repórter do Plural. Ele balança a cabeça negativamente e argumenta que a casa para onde trabalha não permite que dê entrevistas.

Mais à frente, olho surpresa para um sujeito com visual místico tirando cartas numa mesa bem elaborada, e as meninas animadas à sua frente. Ele me devolve a atenção como quem tem uma revelação a fazer. Concluo que talvez não esteja pronta.

Já na altura do Bondinho, avisto pessoas reunidas em descontração, desfrutando dos raios solares. Grupos ocupam mesas de bares do calçadão, uma parte sem máscara e bebendo cerveja sem pressa.

Clientes descontraídos. Foto: Jess Carvalho

Paro na moça sentada num dos bancos ali perto, também sem máscara. Espero que termine de tirar uma selfie e puxo um diálogo. Ela se identifica como Dayane dos Santos, 28 anos.

-Eu trabalhava como garçonete em bares à noite e nessa loja aqui, que reabriu agora (aponta para um comércio de bijuterias). Fui mandada embora dos dois empregos. Aqui, eu fui demitida e nos bares eu trabalhava como taxa. Então vamos ter que esperar até voltar o movimento pra gente voltar a trabalhar.
– E como tá a sua quarentena?
– Pra mim tá complicado, né? Eu sempre fazia academia, trabalhava bastante, então ficar em casa agora tá complicado. 
– E tá fazendo o que aqui pela XV?
– Só batendo perna mesmo. Dar um ar, sair um pouco de casa.
– Não dá medo?
– Não, acho que é tranquilo. Você não tá exposta, perto das pessoas, não tem aglomeração… Acho que é importante, né? Mas se não tá no meio de aglomeração, acho que é tranquilo. 
– Como você tá se mantendo financeiramente?
– Tô tendo a ajuda de amigos, porque nem o Auxílio eu consegui receber. Meu aluguel tá atrasado, tá complicado, mas vamos levando até ser resolvido.

A volta

Agradeço, desejo boa sorte e sigo, agora fazendo o caminho de volta. Observo uma mulher carregando várias sacolas, mexendo no celular, distraída. O sinal está aberto. Repito o protocolo de me apresentar e propor uma entrevista, mas ela responde que está com pressa e atravessa na faixa. 

Do outro lado da rua, César José de Souza, 63 anos, dono de um carrinho de tapioca, topa o papo.

– Como tá o movimento?
– A princípio, ainda pequeno, eu acredito. Poucas pessoas, todo mundo transitando de uma maneira só resolvendo os problemas; consumo bem baixo. 
– E como o senhor tá se mantendo?
– Comecei ontem, na verdade. Fiquei 40 e poucos dias parado. Ainda não dá pra se manter, mas a gente tá mais se apresentando. Voltei. Não tem um sentido de ganho ainda, não. 
– Mas tá tudo bem voltar ou foi uma questão financeira?
– É claro que a questão financeira influenciou muito, mas também o fato de você poder voltar, poder trabalhar, já anima um pouco. 
– Como tá se protegendo?
– A gente tá muito no álcool gel e na máscara. 

Cesar Souza aguarda os clientes. Foto: Jess Carvalho

Digo que estou grata e caminho. Logo cruzo com Billy Guedes, 40 anos, que canta a plenos pulmões, voz e violão.

– O que tá fazendo por aqui?
– Ah, eu moro aqui.
– Na XV?
– Na Barão do Rio Branco. Há 20 anos. Tô por aí… Eu sou de Santos.
– E mesmo na quarentena, não dá medo de vir pra rua?
– Como assim quarentena?
– A do coronavírus.
– Eu não sei qual é esse medo. O maior medo que eu tenho é de ligar na TV Globo, ali eu tenho medo mesmo, né? Aí eu vou mais pra Record. 

Ele me pergunta se pode falar os nomes das emissoras, já que estou gravando. Respondo que sim. Billy continua…

– É que nóis frequenta mais a igreja. E aí a gente sabe que Jesus é a cura do mundo. Todos vamos morrer um dia, né? Eu sei que eu posso morrer também, o problema é depois…
– Entendi. Então tá tranquilo?
– Tô bem tranquilo. Cê vai perguntar: por que cê não usa máscara? Até que eu tentei, mas eu me coço demais, pra cá e pra lá… 
– Coça o nariz?
– Sim. Daí eu me afasto das pessoas, mas eu tenho a máscara aqui, entendeu? Assim, em alguns momentos tem que usar. Mas como que eu vou cantar com máscara? Diz que até pra fazer amor agora tem que dar um metro e meio. 

Billy Guedes e seu violão. Foto: Jess Carvalho

Quero saber se ele se sente evitado, mas ele me garante que não – e graças a Deus.

– Inclusive diminuiu as pessoas ignorantes agora, entendeu? Porque tinha muito ignorante antes do corona, entendeu? Não sei se é a palavra, sabe, ignorante, mas é uma pessoa sem noção.
– Agora tá bom?
– Hoje tá muito bom, bem legal, tá ótimo. Que me perdoem as famílias vitimadas com a situação que aconteceu. Tá morrendo gente, a gente sabe, mas em Curitiba tá bem ótimo, né? Aí cê vê São Paulo, depois cê vai lá pra Itália, pra França, pros Estados Unidos… É, procê ver. Infelizmente, né!? 
– Mas aqui em Curitiba não dá medo?
– Apocalipticamente falando, é isso aí. É o que tinha pra esse momento. E vai piorar, viu! Tenho certeza que vai piorar.

Sobre o/a autor/a

1 comentário em ““E vai piorar, viu! Tenho certeza que vai piorar””

  1. Maria Lúcia Gonçalves Bueno de Souza

    Olá Jess, vc fez uma reportagem com Billy Guedes, ao que tudo indica ele é amigo do meu irmão Vicente Júnior que está desaparecido desde junho de 2021.

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