Culpar doenças mentais por atentados em escolas é problemático, dizem especialistas

O debate sobre a violência em ambientes escolares, assim como possíveis respostas para esse cenário, precisa considerar uma abordagem ampla e multifacetada

A sequência de episódios violentos e ameaças de ataques em escolas no Brasil impulsionou o debate sobre a saúde mental de crianças e adolescentes, assim como possíveis soluções para a violência cometida em instituições de ensino. No entanto, especialistas ouvidos pelo Plural alertam que a questão é complexa e envolve muito mais que a culpabilização dos atos violentos nas doenças mentais. 

Responsabilizar exclusivamente os distúrbios psíquicos por violências que ocorrem em ambientes escolares é uma resposta simples demais a um impasse que envolve diversos fatores estruturantes da sociedade brasileira. 

Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) apontam que 86% dos brasileiros sofrem com algum transtorno mental, como ansiedade e depressão. Isso não significa, no entanto, que essas pessoas necessariamente são ou se tornarão violentas.

“As pessoas que têm condições de sofrimento psíquico, via de regra, são vítimas de violência, não as perpetradoras. O risco de ‘culparmos’ esses ataques nas doenças mentais é a gente reforçar o discurso estigmatizante do isolamento e da inaptidão para a vida em sociedade por parte dessas pessoas”, afirma o psicólogo, coordenador da Comissão de Psicologia Escolar do Conselho Regional de Psicologia do Paraná (CRP-PR) e membro da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional (ABRAPEE), Pedro Braga Carneiro.

Segundo ele, os fatores que levam alguém a praticar atos de extrema violência, como no caso dos ataques às escolas, vão além de uma questão de saúde mental. “Não é um aspecto meramente individual do adolescente que atacou a escola, há todo um contexto social que precisamos olhar. O sujeito que entra com uma faca ou uma arma numa escola querendo matar outras pessoas é reflexo de um contexto social violento e de assimetria de poder em que determinados grupos prevalecem sobre outros”, pontua.

“[A violência nas escolas] é um fenômeno multifacetado. Estamos falando de dentro de uma sociedade moldada e atravessada pela violência, que perpetua discursos de ódio, que por sua vez estruturam nossas relações sociais. A escola não é um elemento à parte dessa sociedade. Elas refletem esse sistema em que, às vezes, para alguém poder ser escutado, amado ou respeitado, precisa usar da violência”, afirma o psicólogo e professor Paulo Vitor Palma Navasconi.

Para Navasconi, além de naturalizar a violência, o cenário sócio político brasileiro favorece e intensifica comportamentos autodestrutivos e de agressividade perante o outro. Isso irá respingar justamente nos adolescentes que estão vivenciando a construção de sua identidade. “A saúde mental vai muito além da ausência de sofrimento e patologias. E quando associamos um diagnóstico ou um transtorno psíquico ao ato violento, a gente deixa de compreender toda a gama que vai formar essa ação, deixa de caracterizar vários outros fatores. Somos levados a usar um olhar causalista e isso é problemático porque continuamos estigmatizando aquela pessoa que tem um sofrimento psíquico.”

O médico psiquiatra e membro da diretoria da Associação Paranaense de Psiquiatria (APPsiq), Cleverson Higa Kaio, destaca que o conceito de saúde mental está associado à capacidade de alcançar e manter um funcionamento psicossocial e a capacidade de perceber, compreender e interpretar o mundo. No Brasil, segundo ele, cerca de 10 a 20% das crianças e adolescentes apresentam algum tipo de transtorno mental, sendo que o impacto dos transtornos psiquiátricos é considerado o mais prejudicial entre todos os problemas médicos na população que tem entre 10 e 24 anos.

“É importante termos um olhar preventivo para a saúde mental na infância e na adolescência. Não podemos afirmar que o jovem com transtorno mental é ou será um agressor, mas todos que apresentam fatores de risco deveriam ter acesso a uma avaliação da saúde mental como prevenção primária, começando pela escola ou na atenção primária à saúde.”

Foto: Seed

Não é tão simples

De acordo com estudiosos da Educação e das Ciências Sociais, ao discutir atentados em ambientes escolares, assim como possíveis respostas para esse cenário, é preciso considerar uma abordagem mais ampla e multifacetada. 

“Quando a gente fala sobre saúde mental, violência e juventude, nunca pode ser do ponto de vista individual. Essa é uma discussão que carrega questões históricas, políticas, sociais, culturais e também subjetivas dos indivíduos”, diz a socióloga Eliane Basílio de Oliveira.

Na avaliação de Oliveira, somado à formação da nação brasileira pela violência e à ascensão do discurso de ódio, existem pelo menos outros dois aspectos que contribuem para a intensificação de comportamentos agressivos nos jovens: o avanço da lógica neoliberal, que esvazia políticas públicas e aflora um discurso empresarial de competição e individualismo, e a pandemia de covid-19, que por conta da inação de governantes brasileiros trouxe um sistema de exterminação da vida.

“A violência e o ódio não vêm da criança, vêm de um processo de educação que ela recebe na escola, na família, nas redes sociais, das relações com a vizinhança. E a violência é uma maneira de ser visível dentro da nossa sociedade, é essa a linguagem aprendida e praticada. Então quando esse jovem não tem sua dor observada, acolhida, vista como importante, ele vai encontrar outro espaço para isso.”

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Conforme a doutora em Educação e coordenadora de Pedagogia da Universidade Positivo (UP), Valéria Brasil, em uma cultura de apologia ao ódio permeada pelo país, é fundamental tratar os casos de violência nas instituições de ensino como parte de um contexto e não casos isolados. “Esse sujeito se torna violento não por acaso. Existem meios e métodos de cooptação que são direcionados para esses jovens.”

Foto: PMPR

Diálogo e cultura de paz

Os especialistas são unânimes ao afirmar que a solução para a questão deve ser pensada de forma complexa e multidisciplinar, passando pela reconstrução das relações sociais e do espaço da escola como um local inclusivo, protetor e responsável, que atenda os estudantes com algum tipo de sofrimento não apenas em momentos de violência extrema.

O psicólogo, doutor em Educação, professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e pesquisador sobre a prevenção da violência em ambientes educacionais, Josafá Moreira da Cunha, afirma que ao invés de focar na identificação do perfil de quem tem risco de ser violento, seria mais eficaz realizar uma avaliação de ameaças. Do ponto de vista prático, as instituições de ensino teriam protocolos com orientações visando situações de risco e sugestões do que a escola pode fazer para desescalar a situação e dar encaminhamento para o estudante no momento em que ele está dando os primeiros sinais. 

“A maior parte das situações acabam sendo resolvidas dentro da escola. Tentando resolver o problema antes que ele se escale, também evitamos medidas punitivas que perdem eficácia. Toda vez que um estudante brigar na escola nós vamos usar as medidas máximas, mobilizando polícia e cercando a escola? Isso não é sustentável.”

Outro ponto seria focar no diálogo e em discussões abertas sobre os problemas que estão acontecendo dentro das escolas. “Os estudantes precisam ter voz no ambiente escolar para compartilhar suas preocupações, que podem ser sobre segurança, mas também podem envolver outros fatores. É preciso ouvir os profissionais de segurança quando ocorre um ataque, claro. Mas existem outros conflitos no dia a dia escolar que podem estar gerando desconforto e os estudantes precisam ter esse ambiente mais aberto na escola”, afirma Cunha.

O professor ressalta, no entanto, que a violência é multifatorial e há tipos distintos que precisam ser abordados de formas diferentes. Ou seja, a maneira como a sociedade opta por definir a violência vai determinar como será a reação a ela. “Se acreditamos que o problema é o bullying vai ser um tipo de resposta, se achamos que o problema são as armas, será uma resposta diferente.”

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Para o sociólogo, doutor em Ciências Sociais e professor de Mestrado em Direitos Humanos e Políticas Públicas da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), Cezar Bueno de Lima, hoje, o maior desafio da sociedade brasileira no enfrentamento e prevenção a atos violentos nos ambientes escolares é estabelecer uma relação de proximidade entre as pessoas.

“Quando você conhece e confia em alguém, você coloca os problemas e dificuldades que está sentindo para aquela outra pessoa. É preciso recuperar a capacidade de falar de ‘pequenas’ coisas e resolver ‘pequenos’ problemas, que acabamos naturalizando, como o bullying e furtos, por exemplo. Isso pode ajudar a prevenir muitas situações.”

Lima aponta que a população precisa entender que o conflito é parte estruturante da vida em sociedade e que a resposta não é sua eliminação. “A questão que se coloca é outra: eu tenho maturidade para resolver um conflito que não passe pelo desejo de morte e extermínio do outro? Devemos sensibilizar as pessoas para resolver problemas de uma maneira que exclua o desejo irracional da vingança e da punição, oferecendo talvez uma perspectiva de restaurar um conflito, não simplesmente punir e segregar o outro.”

O problema, na visão do especialista, é que os brasileiros têm a tendência de utilizar a violência como a primeira opção de resolução de um conflito e não como última. Por isso, é necessário discutir perspectivas de solução não punitivas. “Qual o papel do armamento na sociedade? Vale a pena a gente ter uma arma como um elemento à nossa disposição para resolver um conflito sabendo de antemão que não temos preparo para isso? Será que queremos resolver esses conflitos ou será que, de maneira consciente ou inconsciente, estamos reproduzindo a própria espiral desse conflito?”, reflete.

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Segundo Eliane Basílio de Oliveira, enquanto o Brasil reproduzir uma ideia de educação que coloca crianças e adolescentes como competidores, a violência será cada vez mais presente. “A violência sempre existiu, mas a maneira como estamos lidando e alimentando ela tem trazido resultados extremamente perversos. A gente precisa pensar nas causas, quando ficamos só nos sintomas não saímos do lugar. Só reprimir não vai dar resultados, principalmente quando colocamos o policial mal formado, mal pago, violento, na porta das escolas armados.”

Na visão dos psicólogos Pedro Braga Carneiro e Paulo Vitor Palma Navasconi, todas as pessoas se formam dentro de um contexto e a realidade brasileira está adoecida. Por isso, intervenções pontuais não funcionarão, será preciso de um trabalho que englobe todos os setores da sociedade. “A solução passa muito mais pela criação de condições de vida digna do que de policiamento ostensivo ou de medicalização no sentido de diagnósticos de transtornos mentais. Ao invés de trabalharmos na identificação diagnóstica de pessoas-problema, podemos caminhar na construção de uma cultura de paz, de colaboração, de alteridade, de compreensão do outro enquanto sujeito e da valorização da diversidade. Não tem tratamento paliativo, precisamos de uma revisão profunda da nossa forma de viver em sociedade”, destaca Carneiro.

Ações no Paraná

O Plural procurou as Secretarias de Educação (Seed) e Saúde (Sesa) do Paraná para entender se há, nas pastas, alguma ação projetada em relação ao atendimento à saúde mental no contexto dos ataques aos ambientes escolares. 

No âmbito da Seed, estão em execução parcerias com o Batalhão de Patrulha Escolar Comunitária (BPEC), da Polícia Militar, que faz patrulhamento e rondas preventivas nas escolas, e com a Polícia Civil, que realiza investigações para identificar autores de mensagens de ameaças a colégios. Além disso, há o projeto de Treinamento de Segurança Avançado, que tem como objetivo preparar a comunidade escolar diante de possíveis situações de violência ou ameaças à segurança dentro das escolas, como técnicas de defesa e combate a atirador ativo. 

A secretaria implementou, em 2023, o programa Escola Escuta, que propõe que todos os colégios da rede estadual tenham ao menos uma pessoa de referência para acolher estudantes que desejam conversar sobre questões emocionais, bullying ou dificuldades que estejam enfrentando. A expectativa é treinar 2,5 mil pessoas para essa função. Há também o aplicativo Bem Cuidar, que oferece atendimento psicológico online e gratuito para profissionais da rede estadual de ensino, e está em andamento a formação de 1,8 mil professores para ação nas escolas visando a prevenção às violências. Por fim, além de palestras e aulas que trabalham temas como racismo, bullying e prevenção ao suicídio, a Seed disponibiliza um guia de orientação com os protocolos a serem seguidos em situações de violência intra e extraescolar.

Ao Plural, a Sesa informou que são estratégias prioritárias na prevenção das violências nos ambientes escolares a promoção da cultura de paz, o desenvolvimento de habilidades e competências socioemocionais, o incentivo às práticas resolutivas de conflitos de forma criativa e não violenta, além do estabelecimento de clima escolar protetivo e acolhedor, onde se priorize o respeito, o apoio social, a inclusão e o cuidado mútuo.

As ações desenvolvidas pela pasta partem do Núcleo Estadual Intersetorial de Prevenção das Violências e Promoção da Saúde e da Cultura de Paz (Núcleo de Paz), do apoio técnico e institucional aos municípios no Programa Saúde na Escola (PSE) e da condução da Linha de Cuidado em Saúde Mental no Paraná. Voltado ao desenvolvimento de ações de promoção da saúde e prevenção direcionada às crianças, aos adolescentes, jovens e adultos da rede pública da educação básica brasileira, o PSE beneficia 5.169 escolas de 396 municípios do Paraná. Já o Núcleo de Paz articula políticas públicas intersetoriais (como saúde, assistência social, educação, segurança pública) para a prevenção de diferentes formas de violências.

Conforme a Sesa, as Unidades Básicas de Saúde (UBS) do território de cada escola são as referências para o acolhimento e a atenção às demandas provenientes das instituições de ensino. “Não existe uma única solução para tornar as escolas seguras, se faz necessário um esforço conjunto e contínuo e com participação de setores das políticas públicas e da sociedade. Os esforços para reduzir a violência escolar são mais bem sucedidos quando usam várias estratégias selecionadas, especificamente, para as necessidades de cada escola.”

“É importante salientar que nem toda pessoa que possua um transtorno mental vai reagir de forma violenta em algum momento de sua vida, bem como nem todos os autores de atentados e massacres às escolas possuíam algum sofrimento e/ ou transtorno mental. Estes casos não podem ser analisados de forma isolada ou fazer uma conexão direta entre violência e transtorno mental, pois incorreria no erro de se estigmatizar e discriminar as pessoas com sofrimento e/ ou transtorno mental”, destaca, em nota.

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1 comentário em “Culpar doenças mentais por atentados em escolas é problemático, dizem especialistas”

  1. Elizete Aparecida de Assis Ribas

    Essa matéria e muito pontual no momento em que estamos vivendo em nossas escolas. Sou professora, psicopedagoga, neuropsicóloga. Vejo que realmente a agressividade está na sociedade, onde muito valores se perderam e precisam ser resgatado, precisamos trabalhar com nossas crianças e adolescentes o resgate de amor próprio de humanidade,se eu não me amo eu não consigo amar e paus precisam ser orientados ,parece que a educação familiar perdeu total seus conceitos. Há muito venho conversando com colegas da necessidade de ser feito um trabalho com nossos alunos para despertar senso de humanidade.

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