Axé e resistência: terreiros reivindicam políticas públicas

Sem dados, o segmento faz esforços independentes para ser ouvido pelo município e busca apoio na Assessoria de Promoção da Igualdade Racial

Nas palavras do ativista Adegmar José da Silva, o Candieiro, “não se faz política sem dados” – e uma das marcas da invisibilidade dos terreiros em Curitiba e Região Metropolitana é justamente a escassez de levantamentos realizados pelo poder público. Não existe um número oficial de casas de axé na região, nem se sabe quantas pessoas se autodeterminam candomblecistas ou umbandistas na atualidade.

Em 2004, a equipe do documentário “Para ver a Umbanda passar” produziu um inventário mencionando 300 terreiros na Grande Curitiba. Este ano, o Fórum Paranaense de Religiões de Matriz Africana (FPRMA) fez um levantamento independente e conseguiu cerca de 200 respondentes, mas diz que esses números não representam a realidade. “A gente identificou duas dificuldades. A primeira é que começamos a fazer por autodeclaração e divulgamos o formulário na internet para os dirigentes dos templos se cadastrarem, mas encontramos resistência porque os povos de terreiro têm medo de se identificar”, aponta o baba Flávio Maciel.

racismo religioso
Foto: Nathalia Ritter

O segundo obstáculo encontrado pelo FPRMA foi a falta de verba para intensificar os esforços. “Conversamos com a prefeitura, e a partir da nossa iniciativa ela se movimentou, fazendo um levantamento por meio das regionais. Depois, vamos poder trocar figurinhas sobre esses dados. Há pouco tempo eles também nos consultaram sobre uma possível abertura de edital para fazer mapeamento. A gente tem que demandar. Sem investimento, só conseguimos contar com o WhatsApp. Com o apoio da estrutura pública, a gente caminha mais.”

De fato, a Assessoria de Promoção da Igualdade Racial de Curitiba tateou um levantamento próprio, mas teve ainda menos sucesso e informou à reportagem que os dados do Fórum estão “mais atualizados”. “Nós mobilizamos um cadastramento para tirar esse povo da invisibilidade. A gente vê que os administradores das regionais, que são os subprefeitos, conhecem os pastores e os padres, mas não conhecem – ou reconhecem – os pais de santo como líderes religiosos”, fala a assessora de políticas de promoção de igualdade racial do município, Marli Teixeira Leite.

A fim de estreitar os laços, a tarefa de cadastrar os templos ficou a cargo dos gestores, mas a iniciativa foi impactada pelo racismo religioso. “Tivemos dificuldades porque alguns dos funcionários são de outras religiões, principalmente evangélicos, e se recusaram a ir até os terreiros”, afirma a assessora. “Outro problema é que alguns terreiros não têm o interesse de se identificar pra se proteger. Então, a gente respeita. Existe a possibilidade de a Fundação Cultural abrir edital ou fazer chamamento para realizar um levantamento sério.”

O último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), publicado em 2010, somou 17.898 filhos de umbanda, candomblé e outras religiosidades afro-brasileiras em todo o Paraná. “Eu acho esse número bastante acanhado. Numa ‘conta de padeiro’, estimo uns 1.500 terreiros em Curitiba, o que nos levaria a 30 mil fiéis. Mas friso: é uma estimativa”, diz Paulo Tharcicio Motta Vieira, o diretor da Federação Umbandista do Paraná (FUEP).

O pesquisador Thiago Hoshino, que estuda as religiões de matriz africana há mais de dez anos e integra o Fórum Paranaense de Religiões de Matriz Africana (FPRMA) e a Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde (RENAFRO), concorda com a percepção do colega, mas chuta ainda mais alto: ele fala em pelo menos duas mil casas. 

Terreiros invisíveis

A Secretaria de Urbanismo de Curitiba garante que não é possível fazer um levantamento de quantos terreiros têm alvará no município. “Essa inscrição é feita a partir do código de Classificação Nacional de Atividades Econômicas (CNAE), que os categoriza como atividades de organização religiosas e filosóficas”, argumenta o órgão. No total, até agosto de 2021, foram emitidos 126 alvarás nessa categoria – um número irrisório se pensarmos em todos os templos religiosos com endereço na cidade. 

Mesmo que houvesse uma categorização por religião, os dados não seriam capazes de traçar um panorama fidedigno, visto que os terreiros foram historicamente empurrados para a “ilegalidade”, e por isso se recusam a oficializar as casas perante o Estado. “Às vezes você passa na frente de um terreiro e não vê nem placa, porque eles não querem sofrer represálias. Não querem que o governo os investigue, principalmente o pessoal mais velho, que sofreu com a ditadura. Tudo isso deixou marcas, querem ficar no canto deles”, comenta baba Flávio Maciel.

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Foto: Nathalia Ritter

A maioria das casas de axé só busca regularizar os documentos quando o poder público assim exige. O Conselho de Política Étnico Racial de Curitiba (Comper) oferece respaldo jurídico e administrativo aos terreiros, e por isso recebe pencas de solicitações de sacerdotes nessa situação. “A prefeitura pede regulamentação, estatuto, CNPJ, alvará, que infelizmente 90% dos terreiros de Curitiba não possuem”, conta a ya Regiane Sacerdote, presidenta do Comper.

A experiência de Sacerdote, que também faz parte do Fórum das Religiões de Matrizes Africanas de Curitiba e Região Metropolitana, aponta para fatores como medo, desinformação e falta de representatividade no legislativo como principais impeditivos para a regularização das casas. “Ainda se tem na cabeça que um terreiro é montado só com um salão, uma cozinha e pronto. A espiritualidade faz o resto. Isso remete aos terreiros antigos, marginalizados, que viviam no anonimato. Agora se faz necessária a regulamentação. Também falta uma união das pessoas na defesa da religião. Nós não vemos vereadores umbandistas ou candomblecistas assumidos.”

“Hoje, existe lei exigindo que a regularização da documentação seja feita, então, precisamos dividir a responsabilidade com o poder público”, reforça baba Flávio Maciel. “Para os templos de outras religiões, talvez o processo seja mais fácil, porque muitas vezes começam como filiais e subsedes, além de terem um aporte financeiro diferente. Mas temos direitos e deveres, né?”

Queda do alvará

Enquanto as religiões de matriz africana se queixam de negligência, a bancada evangélica cresce a todo vapor. Hoje, são pelo menos nove representantes na Câmara dos Vereadores de Curitiba, cidade cuja prefeitura contratou, em 2017, o pastor Fernando Klinger como assessor para assuntos evangélicos, sem que existam assessorias focadas em outras religiões.

No fim de 2020, os parlamentares Osias Moraes e pastor Marciano Alves, ambos do Republicanos, apresentaram um projeto de lei que busca dispensar a exigência do alvará de funcionamento para templos religiosos. O argumento dos vereadores tem a ver com a função prática do documento: se o alvará serve para controlar e fiscalizar a atividade econômica, por que os templos religiosos, cuja “principal finalidade é promover conforto espiritual”, precisariam dele? “O documento que está sendo dispensado não é tarifado e por isso a prefeitura não deixa de arrecadar com a retirada do mesmo”, pontua a assessoria de Moraes.

O projeto, que segue em tramitação, tem potencial de beneficiar os terreiros, embora não sejam o público-alvo dos proponentes. “Se a queda do alvará seria interessante pra nós? Pode ser que sim. Mas quando a casa abre as portas, ela também precisa pensar em segurança, e o alvará oportuniza essa preparação. Pra tirar o alvará tem de ter extintor, saída de incêndio, iluminação identificada para o caso de apagão, acessibilidade…”, argumenta baba Flávio Maciel.

Para ele, o ideal seria que a gestão municipal conversasse com terreiros, para que entendessem a necessidade da documentação antes de chegar uma notificação da fiscalização. Ele sugere ainda uma ação afirmativa de reparação histórica. “A burocracia poderia ser simplificada, porque os mais velhos muitas vezes nem sabem escrever o próprio nome. Eles poderiam fazer um mutirão para facilitar esse acesso, com redução de custos.”

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Foto: Nathalia Ritter

Também é do ponto de vista histórico que Hoshino questiona a necessidade dos documentos. “Exigir que o licenciamento de um terreiro tenha CNPJ é um absurdo, porque não é assim que esses povos se organizam tradicionalmente. É preciso fazer o movimento contrário: o poder público deveria entender o modo de vida dos povos tradicionais e adaptar sua legislação aos movimentos que muitas vezes antecedem a organização do Estado do Brasil.”

À reportagem, ficou claro que o tema carece de uma discussão mais ampla, não só entre os representantes da religião, mas também entre os praticantes. “Precisamos ensinar à população que as políticas públicas também são feitas pra gente. Como nunca foi feito um plano pensando em nós, povos tradicionais de terreiro, vivemos à margem há tanto tempo que acabamos nos acostumando com a invisibilidade”, opina baba Flávio Maciel. “Precisamos ser mais ouvidos. Às vezes, somos chamados para validar o que já foi articulado e pensado. Mas vamos chegar lá.”

“Ninguém faz política pública sem dinheiro”

Na falta de um braço da Prefeitura de Curitiba para cuidar dos assuntos dos povos de terreiro, é a Assessoria de Promoção da Igualdade Racial que abraça as demandas do segmento. Em entrevista ao Plural, a assessora Marli Teixeira Leite citou diversos episódios de racismo religioso que vem acompanhando desde que tomou posse do cargo, há dois anos, sendo que a maioria tem a ver com documentação irregular. “Geralmente os casos que nos chegam são complicados de resolver porque já houve um avanço a nível judicial. Então, o que nós temos feito é tentar entender a questão e depois organizar reuniões ampliadas, porque não dá pra preparar uma defesa sem ter conhecimento da essência do problema.”

Ela disse que o Ile Asè Ayra Kiniba e a Tenda de Umbanda Pai João e Caboclo Flecheiro, citados na primeira reportagem da série Axé e resistência’’, estão em seu radar, mas também mencionou a Tenda Umbanda Pai Tomé e Mãe Rosário, no Abranches, que há dois anos recebeu uma ordem de reintegração de posse da área que ocupa desde 1978. Há um pedido de tombamento do terreiro parado no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Recentemente, a Casa Espiritual 7 Caminhos, localizada na Cidade Industrial de Curitiba (CIC), também procurou auxílio burocrático. “Eles estão numa área irregular e a Cohab está atuando para despejá-los. Já solicitamos reunião com a Cohab. Em seguida, podemos chamar outros órgãos para a discussão, para poder auxiliar na regularização da casa.”

Na prática, o que a assessora pode fazer é articular o diálogo com as secretarias e os grupos que representam o segmento. A tentativa, agora, é de aprovar um plano municipal para poder fiscalizar os órgãos. “Esses dias nós soubemos que no Pará foi aprovado o primeiro plano municipal voltado especificamente para os povos de terreiro”, observa. “Aqui em Curitiba, nós estamos com o primeiro Plano Municipal de Promoção da Igualdade Étnico Racial (PLAMUPIR), e que tem questões ligadas aos terreiros, mas não só.”

A defesa dos direitos humanos e o enfrentamento às violências e ao racismo são eixos do PLAMUPIR, de acordo com a assessora. “Temos como objetivo desenvolver ações afirmativas que coíbam a intolerância religiosa, com quatro ações pautadas na elaboração de materiais informativos, promoção de debates, diálogos intersetoriais com o poder judiciário e o diálogo intersetorial com os segmentos que atuam neste tema”, comenta. “A ideia do plano é que todas as secretarias assumam um compromisso baseado no Estatuto da Igualdade Racial instituído pela Lei 12.288/10. Se for aprovado, também será lei e as ações poderão ser monitoradas por nós. Já passou em todas as comissões, e a gente acredita que vá para votação nas plenárias em novembro. Estamos bastante esperançosos na aprovação.”

Os demais trabalhos da Assessoria giram em torno de ações informativas e nomeações. Ela cita o vídeo “Povo de Santo”, gravado na gestão anterior, e que agora “circula em datas de comemoração e protesto”. Uma das datas importantes para o calendário do município é o 21 de janeiro, Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa. “Nós produzimos ações para que a sociedade tenha conhecimento da intolerância e possa combatê-la. Colocamos nos ônibus, fazemos seminários… É uma forma de democratizar essa informação.”

“Outra coisa que a gente tem conseguido construir é a participação de representantes de terreiros em órgãos públicos de controle social onde acontecem as decisões”, diz Leite. “Temos 3 yas no Comper. A mãe Regiane Sacerdote, da Tenda de Umbanda sete Raios de Luz, é a atual presidenta do Conselho. A ya Cris, da Associação Religiosa Cultural AFRO ARCA, também faz parte. Ontem, recebemos a indicação da ya Edimar Mathias, do Centro Cultural Humaitá. Ela também vem somar.” 

“Ao Conselho de Patrimônio, concorremos com duas yas e ficamos na suplência. Ontem, também soubemos que o oloye Robson de Ogum assumiu a Presidência do Conselho Estadual de Povos Indígenas e Comunidades Tradicionais do Paraná… Enfim, São postos importantes para que o povo de terreiro possa falar por ele”, assegura. 

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Foto: Nathalia Ritter

A reportagem apurou que a articulação que culminou na nomeação das três mães de santo que compõem o Conselho de Política Étnico Racial de Curitiba foi realizada pelo Fórum das Religiões de Matrizes Africanas de Curitiba e Região Metropolitana. Já o Fórum Paranaense de Religiões de Matriz Africana fez as indicações ao Conselho de Patrimônio que resultaram na 1° suplência, com ya Fernanda Machado, e indicaram titular e suplente (ya Crica Galdino e ogan Robson Arantes Ogunsola, respectivamente) à cadeira que têm no Conselho Estadual de Povos Indígenas e Comunidades Tradicionais do Paraná. O oloye Robson de Ogum, que assumiu a presidência desse mesmo conselho, também integra o FPRMA.

Quanto ao orçamento destinado ao segmento pelo município, a assessora reconhece que “ninguém faz política pública sem dinheiro”, mas cita apenas as verbas disponibilizadas pela Fundação Cultural de Curitiba (FCC) por meio de editais. Há alguns meses, o FPRMA solicitou uma cadeira no Setorial da FCC e recebeu um posto provisório.

Mesmo com os avanços, as dificuldades de se fazer políticas públicas para os povos de terreiro são inegáveis. “Eu participei de reuniões com o povo de santo que foram invadidas. Nunca tivemos esse tipo de problema, então a gente percebe que não querem que a gente se reúna e fale sobre o que é importante para essas pessoas”, opina a assessora. Apesar das agruras, ela recomenda que os terreiros se unam e reivindiquem cada vez mais espaços. “As políticas públicas acontecem conforme a provocação da sociedade.”

Serviço

Quer saber como regularizar o seu terreiro?
Clique aqui e baixe a cartilha explicativa da Assessoria de Promoção da Igualdade Racial de Curitiba.

Denúncias e pedidos de auxílio do poder público podem ser feitos por meio dos endereços:

Conselho de Política Étnico Racial de Curitiba
[email protected]

Assessoria de Promoção da Igualdade Racial de Curitiba
[email protected]

*Esta reportagem compõe a série “Axé e resistência”, que marca o Mês da Consciência Negra no Plural.

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