Após fraude, programa de proteção a adolescentes já tem contas atrasadas

Saque de R$ 580 mil por empresa deixou programa com caixa quebrado. Inadimplência aumenta dúvidas sobre proteção de crianças e adolescentes acolhidas pelo programa

O desvio de R$ 580 mil do Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte do Paraná (PPCAAM) pela entidade executora Associação para a Vida e Solidariedade (Avis) já começou a corroer a segurança dos acolhidos. Sem recursos, o programa entrou em situação de inadimplência e passou a atrasar parte do pagamento dos aluguéis necessários para abrigo das vítimas. Apesar de minimizar os impactos do desfalque, a Secretaria de Estado da Justiça, Família e Trabalho (Sejuf) dobrou o pedido de socorro feito ao Fundo Especial para a Infância e Adolescência (FIA) e decidiu, diante do escândalo, mudar a gestão interna da política.

A realocação do comando do programa – que passará do departamento de Promoção e Defesa dos Direitos Fundamentais e Cidadania (Dedihc) para o de Políticas para Criança e Adolescente (DPCA) – aparece como uma das primeiras respostas emergenciais dada pela equipe do governador Ratinho Jr. (PSD) diante da pressão provocada pelo impacto no andamento dos trabalhos. Mas representantes de instituições ligadas ao programa ressaltam que a medida por si só ainda é insuficiente para mostrar controle. Sem dinheiro em caixa, as dívidas que começam a se acumular elevam o grau de preocupação com a segurança dos 22 adolescentes sob proteção.

A incapacidade de quitar contas veio à tona em reunião virtual extraordinária do Conselho Estadual da Criança e Adolescente (Cedca) nesta quarta-feira (28). Aos presentes, a representante do departamento orçamentário da Sejuf confirmou que o rombo e a situação jurídica atrelada ao impasse já afetaram contratos de aluguel de carros e casas usadas para abrigo de vítimas. O setor considerou como crítica a situação e alertou que, sem a entrada de verbas, o PPCAAM pode seguir em direção a uma “onda muito maior de inadimplência”.

A secretaria foi questionada pelo Plural sobre os débitos em atraso, mas não prestou contas sobre as pendências, conforme solicitado.

Diretamente à pasta, o jornal perguntou sobre o montante da dívida acumulada até agora e o quanto a falta de pagamentos pode interferir nas atividades de garantia de proteção das crianças e adolescentes abrigados. Em nota, a Sejuf se limitou a responder que tem “recursos em caixa suficientes para saldar os compromissos e a manutenção do programa sem afetar as vítimas” e que busca soluções jurídicas para a normalização “no menor prazo possível”.

“O custo mensal do programa é aproximadamente R$ 120 mil, sendo que a Sejuf está em fase de apuração dos valores pendentes de pagamentos pela entidade Avis”, disse.

A Avis, organização sem fins lucrativos conveniada e responsável por colocar em prática as ações do PPPCAAM no Paraná desde 2010, quando o programa foi instituído no Estado, acusa juridicamente seu ex-diretor-presidente, Marino Galvão, pelos desfalques. À parte do impasse interno, as implicações do sumiço das verbas obrigaram o Executivo a assumir os trabalhos e as pendências financeiras. Soma-se ao imbróglio o fato de os credores terem relação contratual direta com a entidade, e não com o Governo do Paraná.

Em meio ao escândalo, a associação ainda dissolveu seu corpo técnico de funcionários. Foram desligados, inclusive, membros da equipe técnica diretamente envolvida nas atividades de proteção – alguns dos quais seguem trabalhando de forma voluntária para evitar que o programa imploda de vez.

Beco sem saída

Hoje, o governo do Paraná não tem servidores próprios especializados para atuar na área e nem verbas específicas previstas em orçamento para lançar chamamento público de contratação de entidade substituta em regime emergencial. O beco sem saída fez a Sejuf mais que dobrar o pedido inicial de R$ 700 mil feito ao FIA, fundo de recursos para projetos de proteção e defesa dos direitos da criança e do adolescente cujo destino das verbas é definido pelo Cedca.

Na reunião desta quarta, o conselho deliberou por expandir o repasse extraordinário mensal de R$ 140 mil ao PPCAAM de agosto de 2021 até março de 2022, montante que pode chegar a R$ 1,6 milhão caso o governo não consiga costurar no prazo de um ano a renovação do convênio do programa com o Governo Federal, responsável por 80% do dinheiro que mantem o PPCAAM nos estados. O atual contrato do Paraná vence no dia 11 de agosto, mas o próprio Cedca prevê osbstáculos após o episódio de fraude.  

A Sejuf justificou o novo valor pedido para garantir critérios necessários à contratação emergencial de uma nova organização. Com apenas R$ 125 mil restantes em caixa e sem previsão de repasses no orçamento do Estado, a pasta dirigida por Ney Leprevost (PSD) alegou não ter encontrado outra alternativa de fonte de renda para certificar a integridade do pagamento com a futura entidade conveniada.

“Por não termos uma solução de continuidade em relação a recursos, eu peço que o FIA mantenha a excepcionalidade da prorrogação”, apelou Angela Menonça, chefe do Departamento de Políticas para Criança e Adolescente, da Sejuf, para onde migrará o PPCAAM, desligando-se de vez do departamento de Defesa dos Direitos Fundamentais e Cidadania (Dedihc).

A secretaria descartou que a mudança tenha a ver com qualquer irregularidade ou omissão constatada dentro da Dedihc e afirmou que o processo decorre de um novo entendimento da pasta, de que “as políticas públicas devem estar vinculadas aos departamentos da pasta que tratam dos assuntos correlatos, razão pela qual o Departamento da Política da Criança e do Adolescente passará atender ao PPCAAM a partir de 10 de junho 2021”.

“Informamos que não ocorreu nenhuma ilegalidade ou crime por parte de servidores da Sejuf. È necessário deixar claro que a movimentação irregular na conta da AVIS foi realizada exclusivamente pelo seu ex-presidente, sem a ciência e anuência desta secretaria”, diz a nota.

Críticas

Apesar de aprovado, o apelo feito pelo Paraná ao caixa do Fundo Especial para a Infância e Adolescência não passou sem críticas. Conselheiros do Cedca apontaram a necessidade de trazer à discussão uma política permanente de renda para o PPCAAM, a fim de evitar a dependência do programa de fundos como FIA – que deveriam servir de complemento ao orçamento público, e não ser a fonte de recursos original das ações.

A seccional paranaense da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-PR), membro consultor do Cedca, cobrou respostas do governo em relação ao destino do dinheiro. Há receio de a Avis reassumir a execução do programa, caso não haja investidas legais contra a entidade.

Apesar de ter confirmado o acionamento de órgãos competentes para as providências cabíveis, como o Ministério Público do Paraná (MPPR), a Controladoria-Geral do Estado (CGE) e o Tribunal de Contas (TCE), a Sejuf tem destacado que a responsabilidade pelo desfalque é “exclusiva” do ex-presidente da Avis, embora o convênio do governo seja diretamente com a associação.

“Estamos falando de uma entidade de conduta inidônea. O problema do governo é com a Avis e, e sem uma medida legal, isso pode permitir o uso do recuso do FIA por uma entidade que tem problema com o Estado”, pontou na reunião Anderson Ferreira, representante da OAB-PR.

Durante a reunião, a pasta também foi cobrada pelo que os conselheiros apontaram como uma falta de respostas a questionamentos que circundam o desfalque e as consequências do desvio na continuidade do programa. Fundamentado nos princípios do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o PPCAAM é uma estratégia essencial no combate à letalidade infanto-juvenil. Em todo o país, dá guarda a centenas de crianças e adolescentes ameaçadas em contextos distintos, como perseguição pelo tráfico de drogas e submissão por redes de pedofilia e exploração sexual.

No entanto, nenhum representante do Executivo, com competência formal para prestar esclarecimentos, compareceu ao encontro do Cedca, agendado desde a semana passada.

À parte do encontro, o secretário Ney Leprevost já foi convocado a prestar esclarecimentos sobre o futuro das ações e da guarda das 22 crianças e adolescentes ameaçadas que hoje estão sob tutela do Estado. O pedido foi encaminhado em ofício conjunto assinado pelo Conselho Permanente dos Direitos Humanos do Estado do Paraná (Coped) e pelo Cedca, MPPR, Defensoria Pública e OAB-PR.

“Temos cobrado diretamente do secretário uma solução para essa situação. Houve uma interrupção das atividades pela entidade executora, e o Estado tem que assumir”, cobrou a promotora de Justiça Luciana Linero, que se referiu à situação como “agoniante”. Ela chegou a pedir renúncia da presidência Conselho Gestor do PPCAAM diante da falta posicionamento da Sejuf em relação ao rombo, mas voltou atrás depois que a pasta prometeu agilidade.

A Sejuf, por sua vez, respondeu que a pasta “estava representada na reunião e eventuais dúvidas ainda consideradas pendentes serão devidamente respondidas”.

A Avis ainda não se manifestou sobre o caso. No primeiro contato feito com a entidade, na terça-feira (27), a reportagem foi informada de que a associação entraria em contato caso julgasse necessário se pronunciar.

A defesa de Marino Galvão não havia se pronunciado até a publicação deste texto.

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