“A identidade é um território de poder”: construindo a não binariedade

Conheça a história de três pessoas que vivenciam a travessia

Caio Taner de Lima sofria muito bullying na escola. O principal motivo era que, ao nascer, foi-lhe atribuído o “sexo feminino”, mas ele nunca deu conta de performar essa tal “feminilidade” que a sociedade exigia. Por conta disso, os colegas o agrediam com xingamentos variados, todos partindo de uma mesma leitura: a de que ele era uma “garota masculizada”. “Aos 16 anos, comecei a falar pra minha mãe que não conseguia me identificar como mulher nem como homem, mas ela não gostava de conversar sobre isso. Eu compartilhei a mesma impressão com o meu psiquiatra da época e ele disse que eu podia ter um transtorno de personalidade”, relembra.

Joã Klüber viveu algo similar. “Eu sempre fui o que se lê como uma criança estranha. Aos 8 anos, me chamaram de viado na escola, eu entendi aquilo e não gostei. Parece que o meu corpo se organizou diferente pra tentar não sofrer mais esse tipo de constrangimento”, elu relembra. “Cresci entre mulheres e ouvi bastante que era o homem da casa. Não era algo que eu gostava de escutar, mas precisava fingir que sim. São coisas que a gente vai decupando ao longo dos anos.” 

Stéfano Belo sofreu com um agravante cultural. Sua família é de São Luis (MA) e se fixou em Feira de Santana, no sertão da Bahia. “Nasci em uma família evangélica, com um pai pastor. Nesses ambientes a gente aprende que nasceu pra ser cisgênero, mas eu sofria muito. Primeiro pensei que fosse um homem gay – e pra me assumir foi horrível. Depois eu percebi que não era igual aos outros gays, porque minha subjetividade estava em outro lugar.”

O trio tem algo em comum: na vida adulta, longe das expectativas da família nuclear e com acesso a um novo repertório de informação, todes descobriram a não binariedade e encontraram um lugar de conforto e identificação.

(Des)construção

Você tem alguns minutos e uma dose de disposição para repensar coisas que aprendeu desde criancinha? Para compreender a não binariedade, é preciso, antes, problematizar o binário de gênero, ou seja, a ideia de que existem apenas dois gêneros possíveis: o masculino e o feminino. “Essa coisa de ser mulher ou ser homem é localizada temporal, histórica, geográfica e culturalmente. Não foi em todas as épocas, em todos os lugares e em todas as culturas que a sociedade localizou as expressões, características físicas e formas de se relacionar dentro desse binário”, começa Neilton dos Reis, professor da Universidade Estadual de Minas Gerais (UEMG) que se dedica a estudar os gêneros não binários.

Ele nos provoca a refletir sobre a suposta naturalidade do que entendemos como “sexo feminino” e “sexo masculino”. “Isso é construção social. É tudo fruto de uma sistematização de ideias que na nossa cultura ocidental moderna vem com o advento da ciência. Claro que não é a ciência que inaugura o binarismo, mas as justificativas que deslegitimam os gêneros não binários circundam uma suposta biologia natural, como se a biologia fosse algo dado.”

Em outras palavras, por conta da maneira como fomos educados, tendemos a limitar corpos, expressões, sentimentos, atividades e até objetos inanimados a duas caixinhas, mas na verdade existe uma diversidade muito grande de possibilidades. Você já ouviu falar, por exemplo, em pessoas intersexo? “Não é só o XX ou XY que é viável. Existem outras recombinações genéticas que são tratadas, não por acaso, como patologias, mas que na verdade são apenas outras combinações que possibilitam a vida. O gênero é tido na nossa sociedade como uma construção social em cima de um corpo. A vagina está associada a ser mulher e o pênis a ser homem. Isso constitui o binário de gênero. Quando é ambíguo, desde cedo é aconselhado fazer uma cirurgia de ‘readequação’ para ficar de um lado ou outro.”

Os gêneros não binários são aqueles que não se conformam com ser homem ou mulher, por isso divergem dessa construção binária. “Não binário é um termo guarda-chuva pra falar de várias experiências. A não binariedade questiona o ‘ou’. Existem pessoas que se colocam numa soma: são homens e são mulheres. Isso é uma quebra do pensamento binário oposicional e excludente. Existem pessoas que não se veem nem como homem nem como mulher. E assim por diante.”

Do final do século passado para o início deste século, foram surgindo termos em lugares e momentos diferentes. Então, não há uma sistematização, mas pode ser que você já tenha se deparado com classificações como “gênero fluido”, “agênero”, “demi gênero”, “queer”… Segundo o pesquisador, a lista tende sempre a ser incompleta e com possibilidade de ampliação porque, a partir do momento que entendemos que os gêneros são inventados, podemos reinventar. 

Outra coisa importante a se considerar é que boa parte das pessoas não binárias dizem que são, sim, transgênero. “Elas tendem a reivindicar o lugar de pessoas trans porque não se identificam mais com o gênero designado quando nasceram”, explica Neilton. A lógica é esta: se não são cisgênero, são transgênero.

O contrário é passível de discussão. “Existem pessoas trans que se reivindicam homens ou mulheres e ponto. Elas não deslegitimam a não binariedade, mas se localizam dentro desse binário”. Ao mesmo tempo, outros grupos dizem que todas as pessoas trans são não binárias, porque elas estão questionando o binário de gênero. “Ainda que se identifiquem como homens ou mulheres, não é o mesmo ser homem ou mulher da cisgeneridade que nunca é questionada. Pensando em termos de discussão acadêmica, faz sentido. Mas por não ser uma reivindicação da maioria que eu acesso, não faço essa defesa.”

Travessia

Klüber, de quem falamos lá no começo, vivia em Ponta Grossa. Veio para Curitiba estudar piano e foi na faculdade que conseguiu se soltar minimamente. “Havia uma inquietação quando eu ia preencher formulários. Geralmente tinha duas opções e eu não sabia qual marcar. Às vezes eu marcava homem porque sentia que precisava, às vezes eu marcava mulher porque sentia que queria foder com o sistema. Quando tinha uma outra opção, eu ficava mais feliz.”

O grande estalo veio em 2016, com o lançamento do filme Garota Dinamarquesa. “Eu me vi na protagonista, uma mulher trans no começo do século 20. Aquilo mexeu comigo em algum lugar estranho… Eu me senti identificada. Mas existe uma transfobia muito arraigada na gente que dificulta o processo, eu ainda tô me soltando disso e entendendo o que eu quero com o meu corpo.”

Hoje elu tem 23 anos e se identifica como pessoa não binária desde 2019. “Ano passado eu comecei a fazer terapia com uma especialista em gênero. Desde então venho abrindo caminho para entender o que me constitui e a partir disso sentir o que é mais pulsante neste momento, mas é uma transição lenta.”

Stéfano ouviu falar de não binariedade aos 26 anos, quando começou a participar da Selvática Ações Artísticas, em Curitiba. “A Selvática é uma selva mesmo, sabe? São várias espécies, pessoas com corpos diversos que criam interseccionando gênero, raça e classe. A gente se provoca e pratica o diálogo. Foi um lugar que me ajudou a perceber, por meio da convivência com outras pessoas trans, que eu também era trans. E descobrir a não binariedade foi algo tão novo, tão instigante… Quando eu li sobre, achei que era a minha vida.” 

Dez anos depois, aos 36, ela se identifica como travesti, trans e não binária. “Muitas pessoas falam que é falta de coragem de me assumir como mulher trans, mas a não binariedade não é uma transição inacabada, não é uma confusão… Na verdade, me perceber não binária foi um dos maiores alívios da minha vida. Quando você entende a sua identidade, tem a oportunidade de se curar dos processos de dor do passado. A sensação de tempo perdido é uma realidade, mas daqui pro resto da minha vida eu quero viver isso com bastante dignidade, em paz e sem violência.”

Caio começou a reivindicar esse nome há três anos. Agora ele tem 25. “Quando entrei na faculdade, contei o meu sentimento de não-pertencimento para alguns amigos e eles me indicaram uma pessoa que estudava gênero. Foi quando eu descobri a não binariedade. Eu li sobre e me identifiquei como agênero e como Caio. Não sei se vou ficar com esse nome pra toda a vida, mas no momento é como me sinto confortável.”

“Há autores que dizem que existem tantos gêneros quanto pessoas no mundo”, diz Caio. Foto: arquivo pessoal

Em meio à travessia, ele acabou se interessando pelos estudos de gênero e atualmente é mestrando em Filosofia. Seu jeito de observar o mundo mudou bastante ao longo dos anos e a percepção social passou a despertar curiosidade. “As pessoas ainda me leem como uma mulher lésbica masculinizada. É curioso. Quando eu me identificava como mulher, elas diziam que eu era muito masculino. Agora que eu não me identifico como mulher, eu sou muito feminino. A binariedade sempre tenta enquadrar as pessoas em alguma coisa.”

Bicha não binária?

Gênero e identidade sexual não são a mesma coisa. O gênero trata de uma identificação própria, uma maneira de se colocar no mundo. A sexualidade fala das nossas relações romântico-afetivas. Isso se confunde muito na nossa cultura. “Eu sou um homem gay. Na infância, era aquela típica criança viada e isso era automaticamente ligado a ser mulher por eu ter ‘trejeitos’ ou, mais tarde, por gostar de meninos. A sexualidade é frequentemente atrelada ao gênero porque o binário vai pressupor, em função das normas, um desejo. Se eu sou homem, pressupõe-se automaticamente que deveria gostar de mulheres e assim por diante”, fala o pesquisador Neilton dos Reis.

Ele explica que no caso da não binariedade, também há uma quebra dessas identidades sexuais. “Se eu não sou homem nem mulher, talvez não faça sentido ser gay ou lésbica. Mas é importante a gente pensar que essas identidades são políticas mais do que marcam práticas sexuais.”

É o caso de Klüber, que se diz “bicha” não binária. “Existe um espectro de pansexualidade, mas eu digo que sou bicha. É uma forma de facilitar a compreensão das pessoas e de ressignificar o xingamento. É político. A minha identidade é um território de poder – e as bichas precisam desse poder simbólico.”

Violência

Se por um lado reconhecer que faz parte de algo é um alívio, por outro, a pressão social não diminui. Pelo contrário. Todas as três pessoas com quem conversamos têm inúmeros episódios de violência para contar, a começar pelas histórias de família. A mãe de Klüber, por exemplo, chorou bastante e teve dificuldade para entender sua não binariedade, de modo que só recentemente passou a adotar o pronome “ela”. 

“Às vezes eu me sinto gênero fluido, às vezes me sinto agênero. Não costumo me categorizar, mas quando eu fecho os olhos e sinto o meu corpo, longe do julgamento das pessoas, é assim que eu me sinto”, afirma Klüber. Foto: arquivo pessoal

Quando Caio contou sobre sua descoberta ao pai, que é psicólogo, ouviu que não se sentia mulher “porque não tinha transado ainda”. Stéfano também não foi compreendida: “A minha mãe não aceita. A minha família acha que é bizarrice da minha cabeça e que eu tenho que me assumir mulher de uma vez, mas isso é uma violência, porque eu não sou. Eu não sei se consigo ser totalmente eu com a minha família.”

O mesmo processo de rejeição ocorre em outras áreas, como a vida acadêmica. Caio ainda não reivindicou o nome social, mas teve o trabalho de conversar com todos os professores sobre como quer ser chamado. Mesmo assim, já se deparou com o “nome morto” nas listas compartilhadas com a turma. “Nem todos os professores foram receptivos à minha pesquisa, porque discuto a não binariedade”, relata.

Stéfano está cursando Psicologia e já se viu no centro de vários conflitos. “O meu nome social é o meu próprio nome de nascimento. Toda vez que mudam os professores, tenho que conversar sobre pronomes. O professor já entra em sala de aula com uma visão totalmente binária. Essas questões vão gerando violências, entende? Uma aluna se nega a me tratar no feminino e já disse aos colegas que não é obrigada por lei, porque não é o gênero que consta no meu RG.”

Para a artista, o confronto se tornou simplesmente exaustivo e perigoso. “Já cansei de explicar, mas são tantas feridas que se abrem que hoje em dia eu prefiro viver em paz. Pra mim é uma tristeza, mas tem coisas que eu não posso abrir mão porque senão eu vou morrer, ficar depressiva, vivenciar um mundo totalmente sem afeto.”

O cansaço vem de um longo histórico de violências. Além das mais sutis e simbólicas, Stéfano já sofreu agressões físicas. “Uma vez eu estava com um amigo na praça e chegaram dois assaltantes. Um deles ficava repetindo que tinha que ‘matar esse traveco’. Também já apanhei no meu sertão. Eu estava na rodoviária e um vendedor começou a encasquetar comigo. Ele ficou me encarando com uma cara de ódio e eu mantive o olhar, então ele veio pra cima de mim com porrada. Foi coisa de ficar roxa mesmo.”

“As pessoas falam que não binariedade é uma coisa nova. Sim, pode ser, como autodeclaração identitária, mas essas identidades sempre existiram e foram pouco nomeadas”, fala Stéfano. Foto: arquivo pessoal

Não à toa, são poucos os dados disponíveis sobre essa população, mas sabemos que o Brasil é o país que mais mata pessoas trans. A expectativa de vida é de 35 anos por aqui. “E a gente não sabe quantas dessas pessoas trans que morreram eram não binárias. Há um apagamento até na hora da morte”, diz Stéfano.

Documentos

Nenhuma das três pessoas que dividiram suas trajetórias com o Plural reivindicou uma retificação de gênero. O argumento é unânime: a burocracia é enorme. Nós já mostramos por aqui que mesmo os pais de bebês intersexo têm dificuldade de manter o campo “sexo” neutro nos documentos, especialmente no Paraná.

No ano passado, pela primeira vez uma pessoa não binária conquistou esse direito no Brasil. Aoi Berriel, de 24 anos, precisou entrar com um processo para ter o “sexo não especificado” na certidão de nascimento. O pedido foi realizado através da Defensoria Pública do Rio de Janeiro e a decisão abriu caminhos para novas sentenças similares. A Defensoria Pública do Paraná ainda não recebeu nenhum pedido desse tipo, mas o coordenador do  Núcleo da Cidadania e Direitos Humanos (​NUCIDH), Júlio Salem Filho, afirma que é possível correr atrás do direito.

“Essa é uma questão ainda não consolidada do ponto de vista da legislação. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), ao editar a resolução que trata da retificação administrativa de prenome e gênero, não fez constar expressamente a hipótese de pessoas não binárias, deixando de prever o gênero neutro. Todavia, há decisões do Poder Judiciário autorizando a retificação nesses termos”, ele pontua. “Portanto, ainda é necessário acionar a justiça, já que os cartórios não estão aceitando administrativamente.”

Caso seja do seu interesse, a Defensoria Pública pode oferecer assistência jurídica. Clique aqui para obter informações sobre o setor de registros públicos e aqui para saber mais sobre o NUCIDH.

Cartilha de bons modos

A gente sabe que a desconstrução leva tempo, mas se você tiver disposição, aí vão seis dicas práticas para minimizar gafes e violências.

  1. Não presuma o gênero pela aparência

Pessoas não binárias podem ter qualquer tipo de aparência. É preciso entender que aparência não é indicativo de gênero. A definição da própria identidade é coisa intransferível. Que tal buscar desconstruir essa leitura binária de mundo no dia a dia?

  1. Cuide dos pronomes

Primeiro de tudo: observe o grau de intimidade que você tem com a pessoa. “Se for alguém que está comendo no restaurante que eu trabalho, interessa saber o pronome?”, questiona Neilton. Você pode buscar a neutralidade. 

Mas se fizer sentido dentro da relação de vocês, pergunte o pronome de preferência da pessoa. Por exemplo: para escrever esta reportagem, precisamos fazer essa pergunta para todes. Klüber prefere pronomes neutros ou femininos. Caio prefere os masculinos. Stéfano prefere os femininos. Todes têm suas razões. 

“Eu uso pronomes femininos como provocação. Vejo que muitas pessoas me chamam de ‘ele’ quando digo que sou não binária, mas eu quero que a pessoa perceba que me movi do gênero masculino e esse pronome não me cabe mais”, exemplifica Stéfano.

  1. Busque informação

Seja honesto consigo mesmo sobre a sua dificuldade em entender a não binariedade. Com humildade, busque ajuda dentro da sua rede de contatos ou material orientativo na internet. Tem muita coisa disponível!

  1. Pessoas não binárias não são Google

“Não ache que por a pessoa não ser binária, ela vai ser um dicionário. Na dúvida, pergunte se ela está a fim de responder a sua dúvida. Se ela não estiver, procure no Google”, indica Caio.

  1. Não fetichize

Dispensa explicações, certo?

  1. Abrace a causa

Você pode exercitar uma escuta atenta para além das suas relações. Já se perguntou de que formas dá pra somar na conquista por direitos dessas pessoas? Às vezes dá pra ir a uma manifestação; às vezes dá pra ajudar numa vaquinha; às vezes dá pra conversar com o seu círculo sobre respeito à diversidade. As possibilidades são muitas.

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3 comentários em ““A identidade é um território de poder”: construindo a não binariedade”

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