Adeus, Roberto Innocente. E muito obrigada

Nena Inoue se despede do diretor italiano radicado em Curitiba, vítima da Covid

Roberto Innocente foi mais um nas 500 mil vitimas da Covid que morreu antes da vacinação E sim, ele era do chamado grupo de risco: hipertenso, diabético e com mais de 60 anos. Mas foi especialmente, vitima da vacina tardia, que poderia ter iniciado em março de 2020, mas começou somente em janeiro de 2021. Ele morreu em abril de 2021, vitima da exposição (des)necessária para cumprir um edital com prazos exíguos que desconsideraram a pandemia. Vítima enfim duas vezes, no mínimo, do descaso desse governo matadouro.

Mas também vitima de seu amor pela Arte, pelo Teatro, pela Comedia dell’Arte. Vitima de sua urgência em realizar, criar, propor, mudar e de nunca parar e seguir, seguir. E seguiu. E nós aqui e agora, seguimos, sem ele. E sem tantos e tantas que que nos deixam, dia a dia. Falo pois, do artista cidadão, único, especial e eterno e que aqui chamo também de mestre:

Roberto saiu da Itália e veio para o Brasil, em 2005, numa parceria do Teatro Guaíra e o Conservatório de Adria, através de uma articulação do Maestro Alessandro Sangiorgi, na época maestro da OSP. E eu então Diretora Artística do Teatro Guaíra, que há 10 anos não levava ópera aos palcos, convenci o diretor administrativo que ópera inclusive, não dava “prejuízo” e assim fizemos “La Bohème”, com direção do mestre que veio de sua terra exclusivamente para esta parceria. E como disse Sangiorgi, era impressionante como o Innocente entendia tudo de ópera.

Bom, a esta altura, ele já apaixonado pelo Brasil e por uma brasileira (a primeira das muitas mulheres que se enamorou e namorou), me disse que gostaria de ficar/voltar para o Brasil e me entregou uma cópia de seu portfolio: enorme, impressionante. E fiquei matutando como trazê-lo de volta e, como “La Bohème” foi sucesso de publico, propusemos então montar “La Serva Padrona”, uma opereta para poder circular pelo estado e claro, com ele na direção.

E propus também que abríssemos uma espécie de estagio/assistência para estudantes/estudiosos/profissionais de cada área e chamamos jovens artistas para assistências de regência, figurino, cenário (este do próprio, como o espetáculo de sua autoria que se seguiram). E fizemos uma chamada publica para a seleção de atores para compor o elenco.

E foi nesse teste, no mini Guaíra, com 20 atores pré-selecionados que vi a maestria desse diretor admirável que conduziu tudo com domínio e humor que eu nunca havia visto antes e soube então que além de um diretor de Opera, tínhamos ali um grande diretor de Teatro, do Teatro da Comedia Dell’Arte. Fiquei impressionada com seu fazer e nem lembro mais se comentei com ele ou não de meu assombro. Acho que não. Mas ele sempre soube que desde que o vi, reconheci sua maestria.

Fizemos assim “La Serva Padrona”, que ficou linda. E como o desejo dele era ficar na Terra Brasilis propus uma oficina sobre a Comedia dell’Art, que eu e mais a torcida do Flamengo e do Corinthians juntas, só tínhamos acesso em imagens de livros e que uma grande parte do público nem sabia do que se tratava, na pratica (eu mesma, qdo aluna do curso de Teatro, só tive acesso a uma ou outra imagem de um arlequim perdido em meio a imagens de livros).

E ofereci então meu espaço do Espaço Cênico (na época ACT- Ateliê de Criação Teatral, uma parceria com o Luís Melo), onde Roberto e eu assumiríamos o riso do que viria. Assim, divulguei a oficina e os atores que já integraram o elenco de La Serva Padrona, vieram todos: Ana Rosa Tezza, Ariane, Ricardo Leandro, Patrícia Ramos, Bruno aos quais se juntaram outros atores, como Cleber Borges, Martina Gallarza, Larissa Crocetti, Renata Bruel, Sol Faganello, Yamba Candfield, Dani Biselli, Caelen Teger, Pedro Inoue e tant_s outr_s que não lembro bem e que resultou na criação do Grupo Comedia Dell’ACT que ficou 3 ou 4 anos no ACT/Espaço Cênico e fez dois lindos espetáculos: “As Calcinhas da Flor”  e “Aconteceu no Brasil, enquanto o ônibus não vem”, trabalhos premiadíssimos em todo o estado e fora de e com apresentações constantes na rua (na XV e no Largo da Ordem).

E o grupo capitaneado pelo mestre que nunca desistia de seus atores, treinava; ensaiava; criava suas mascaras (desde o entalhe na madeira até o momento sagrado de colocar no rosto e ir a publico); carregava cenário; montava, desmontava; brigava, se amavam, apresentavam… e arrasavam. Tínhamos enfim, um grupo de Teatro de Rua, na Curitiba fria, o que convenhamos, era no mínimo, um ato de coragem.

Ele também deu oficinas sobre Comedia dell’Arte fora da terra das Araucárias (pro pessoal do Moitará, no Rio de Janeiro, por exemplo). E atuou em espetáculos, filmes e tais.

E nesse meio tempo, ele queria o que sempre quis: ficar definitivamente no Brasil. Mas tinha que encontrar um jeito para e uma das alternativas seria casar com alguma brasileira. Então eu, já “casada” três vezes, mas solteira no papel, propus que poderia me casar com ele, uma vez que minha intenção de não casar no papel era/é crônica e clara  (apesar de que meu namorado na época estranhou não comentar com ele antes, mas é que essa minha “oferta” pro Roberto saiu de improviso, não deu tempo pra pensar, debater e tals, desculpa aí…), ao que o Roberto me agradeceu e respondeu que não seria preciso, pois estava com  “uma boa mulher e aguardava uma novidade e tudo se resolveria”.

Ela era Silene, uma mulher preta, linda, forte, porreta. Eles se apaixonaram, casaram, não foram felizes para sempre, descasaram e tiveram dois filhos, Fernando e Marisa, os “tesouros da vida” do melhor pai que conheci. Ele morou em alguns bairros de Curitiba mais distantes e por fim, estava no centro e toda vez que nos encontrávamos ele estava com uma namorada nova, “a mulher da vida dele”, que de fato eram mesmo, todas, enquanto eram. Afinal trata-se de um homem inteiro, de verdade, intenso, nada era pela metade e não adiava nada nunca niente.

Mas voltando ao teatro: fomos e estávamos indo até que a partir de um atrito com o grupo, a confiança se perdeu. Propus então não mais seguir. E nos separamos. E alguns dos atores seguiram com o Roberto e outros novos se somaram e ele cria outro grupo, que fazia sua própria produção. E em 2005, nasce o ARTE DA COMEDIA, que fez vários trabalhos que nem sei quantos, propostos e dirigidos pelo mestre incansável que fazia acontecer e que, entre muitas, estabeleceu uma parceria com a UFPR, na Santos Andrade.

Mas apesar desse atrito com o “ex” grupo, minha relação com o Innocente não se abalou e sempre que nos encontrávamos, deixávamos claro o respeito que tínhamos um pelo outro. Éramos gratos pelo encontro e reconhecedores do que fizemos juntos que, sabíamos, era importante pra nós e pra esta cidade, Curitiba nossa tribo, salve, salve.  Ele via minhas peças, eu as dele e as vezes não gostávamos desta ou daquela e deixávamos claro os porquês de, tanto quanto o reconhecimento de nossa parceria ao trabalho que fizemos, mas em especial, éramos cúmplices em silencio por sermos incuravelmente, fazedores de teatro.

Acho que poderíamos ter nos encontrado mais. A ultima vez que nos falamos, liguei pra saber como estava (era inicio desta pandemia interminável, que nos tira o trabalho, a entrada de dinheiro, o chão, o caminhar) e ele me disse que “estava apertado, mas que contava com a resposta de alguns editais que foram aprovados, mas ainda não captados e que logo deveria entrar algum”. Acionei pois o pessoal do Arte Salva para alguma ajuda e, por pura imobilidade, não doei em espécie, não comprei suas mascaras e nem suas esculturas de couro que ele colocou na internet para venda afim de “se virar”. E neste país do Deus acima de todos, onde as pessoas se viram sozinhas, o mestre continuou como sempre, se virando: por ele, pelos filhos e pelo grupo. Pelos outros.

E hoje, ao acordar, me veio a paternidade perdida, de meu pai que se foi, dos filhos do Roberto, seus atores, seu grupo, seus amigos.

Saudades irreparáveis desse homem de teatro que apesar do legado imenso que deixa, se foi… e hoje não mais. Falando em pai, meu filho ator – que tb integrou o Comedia Dell’ACT e o Arte da Comedia – me falou dia desses que o Roberto foi o diretor que teve mais cuidado com ele, que mais o cuidou. E hoje sei que esse cuidar é essencial. Eu mesma, devia ter cuidado mais.

A última vez que nos encontramos Roberto comentou o quão submisso era o povo brasileiro que engolia tudo e não se rebelava contra as atrocidades desse governo, ao que eu respondi: “mas foi esse mesmo povo que elegeu o que aí está, então tem que ir ao fundo do poço pra ver se um dia reagem”. E ele disse: “não pode Nena, não pode”. E sim, não pode mesmo.

E quando o Galindo  depois de ler um texto que postei no Facebook sobre a morte do Roberto, me sugeriu escrever um texto sobre, hesitei of course, pois não escrevo, apenas expresso o que sinto, então este texto vem sim com a carga emocional da minha vivencia, do poderoso encontro com meu caríssimo amigo ítalo brasileiro, que provavelmente me diria sobre a perda/morte de alguém querido: “lamento, Nena, mas temos que seguir”.

E levo isso pois. Seguir, com pesar, mas seguir.

Gracias Roberto Inoccente, por não desistir e pelo seguir!

PS: Ah sim, o protagonista deste texto, obteve sua cidadania brasileira e eu soube depois de sua morte, através da Syl, uma companheira de luta, que ele também foi parceiro do MST.

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