A grande ameaça

Nikolas Ferreira terminou seu discurso com a certeza de que explodiria nas redes sociais. "Somos legião". Sim, sem dúvida

Recentemente, por ocasião das homenagens ao dia da Mulher, o deputado federal mais votado do Brasil subiu na tribuna da Câmara para fazer um importante pronunciamento, revelando qual é, na sua opinião, a maior ameaça que as mulheres sofrem nos dias atuais, e ele, como homem que é, estava ali para prontamente se oferecer para ajudar e combater os responsáveis por deixarem todas as mulheres “de verdade” nessa condição de vulnerabilidade.

Para evitar ser acusado de estar se metendo em um assunto que não é da sua conta, já que parece que as mulheres têm voz própria, o deputado colocou uma peruca loira sobre a sua cabeça e anunciou: “agora eu sou uma deputada, agora tenho lugar de fala”. Um ótima solução, pensou, pois assim derrubo as resistências contra mim e posso expor minha defesa das mulheres e minha preocupação em relação a essa ameaça devastadora que paira sobre elas como uma tormenta de efeitos incalculáveis.

A ameaça à qual o popularíssimo deputado mineiro fez referência no seu discurso é, segundo suas próprias palavras, “uma realidade que não é”. Não há como não notar um toque filosófico na sua fala, um apelo ao clássico “O Ser é, o Não Ser não é” de Parmênides. Afinal, na concepção do tribuno, só há o que é desde sempre e, por isso, o que se propõe a mudar é um embuste, uma farsa. Se está na certidão de nascimento, é. Se não está, não é. Irrepreensível o argumento. Não há o que objetar, imaginou, mas sim combater com todas as forças essas pessoas que perturbam o caráter essencial da realidade.

O deputado trouxe exemplos definitivos sobre o perigo que afeta as mulheres brasileiras. Mais exatamente, quatro exemplos, quase todos exemplos de outros países: uma nadadora, uma jogadora de vôlei, uma corredora e uma lutadora de MMA. Pobres mulheres! Sorte ter um deputado tão antenado, disposto a correr riscos em defesa de seus interesses. Afinal, como ficarão as esportistas do sexo feminino agora, quando pessoas do sexo masculino que se assumem como mulheres ganharem todas as suas medalhas e baterem todos os seus recordes?

Não é possível perceber a trama maligna que se esconde por trás dessa “conversa” de gênero? Não está claro que alguém precisa proteger as mulheres contra esses oportunistas que enfrentam suas famílias, a sociedade, expõem-se a todos os riscos de rejeição social e violência – lembrando que o Brasil é o país que mais mata mulheres trans no mundo – para, enfim, recompensa de tantos sacrifícios, ficar com as medalhas esportivas e as vitórias nas quadras e nos octógonos?

Mas a ameaça não para aí. Há ainda os banheiros. Alguém precisa impedir que essas pessoas entrem nos banheiros para espiar as mulheres na sua intimidade. Pois está claro que as mulheres trans continuam com o propósito (brutalmente machista) de violar a intimidade das outras mulheres, subindo no vaso do reservado para as flagrarem ali, como tarados sem peias. Curioso que o feminicídio – outro recorde brasileiro em todo mundo – não causa o mesmo temor e espanto no preclaro deputado, nem mesmo os casos de estupro e abuso sexual de mulheres e crianças, a grande maioria ocorrida dentro dos sacrossantos lares das famílias “normais” e tementes. Dados do Ministério da Saúde informam que 69.2% dos casos de violência sexual contra crianças e adolescentes ocorrem em casa e o agressor tem vínculo familiar com a vítima. Mas isso não é importante. A ameaça são as mulheres trans, as que constituem uma “realidade que não é”.

Ora, o que fazer com alguém que “não é”? O insigne deputado não respondeu a essa pergunta. Tirou a peruca, fez mais uma pilhéria – “tenho gênero fluido”, disse, rindo – e concluiu sua participação, ciente de que explodiria nas mídias sociais, onde borbulha seu público que bate no peito e se diz “maioria”. “Somos legião”. Sim. Sem dúvida.

Sobre o/a autor/a

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

O Plural se reserva o direito de não publicar comentários de baixo calão, que agridam a honra das pessoas ou que não respeitem níveis mínimos de civilidade. Os comentários são moderados por pessoas e não são publicados imediatamente.

Rolar para cima